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quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

[8794] - FELIZ ANO NOVO!...


[8793} - CABO VERDE - 40 ANOS...

11.Quando nem todos os segredos de
bastidores da Independência de
Cabo Verde
foram ainda revelados

Muito mal começa um país onde impera uma única visão do passado e do seu futuro, sem que haja opiniões contrárias no jogo do contraditório e alguém que faça de fiel da balança. Ninguém pode pretender ter o monopólio da razão e da verdade, pelo que não pode haver leituras e pensamentos únicos sobre factos políticos e históricos

Com este artigo, dou por concluída a longa série de artigos alusivos ao tema intitulado, todos publicados no Jornal Liberal durante o mês de Outubro e replicados em blogues amigos. Embora o tempo tenha sido escasso para me dedicar exaustivamente à tarefa da feitura destes artigos, fiz questão de que o marco ─ ano de 2015 ─ não fosse ultrapassado, de modo a situar-se ainda no período das comemorações dos 40 anos da Independência de Cabo Verde, que decorre até ao termo do corrente ano. Que fique bem claro que não pretendi substituir-me a nenhum especialista que use ferramentas científicas, nomeadamente pesquisa em arquivos históricos e outra metodologia apropriada, seja ele historiador, sociólogo ou político. Limitei-me a exercer o meu estatuto de cidadão para analisar retrospectivamente a história recente na óptica dos meus valores actuais. Tratou-se, pois, de uma abordagem de cidadão independente, não identificado com qualquer partido, que viveu o 25 de Abril de 1974 e o processo revolucionário que terminou em 5 de Julho de 1975 com a independência de Cabo Verde e, posteriormente, os acontecimentos que se seguiram até à data da minha saída de Cabo Verde. Como qualquer jovem, vivi intensamente o ambiente tempestuosamente festivo do 25 de Abril, participei nas manifestações de rua que tiveram o seu epicentro no Liceu. Quando se espoletou a ideia surpreendente da Independência, a qual nunca nos tinha passado pela cabeça, os jovens liceais da minha geração aderiram completamente à ideia, adoptaram-na e tornaram-se adeptos dos ideais do PAIGC, um partido que atraía pela novidade, pelas promessas de mudança e progresso, embora até à data do 25 de Abril de 1974 fosse um desconhecido para a maioria.

A ideia que subjaz a estes artigos foi, pois, fazer uma revisão retrospectiva dos últimos 40 anos de Cabo Verde, da revolução do 25 de Abril 1974 ao 5 de Julho de 2015, procurando banir do meu discurso os chavões e estereótipos habituais das narrativas ligeiras e dos “arriére penseés”, para me limitar a um exercício crítico da história recente, com base na factologia que presenciei e vivenciei e que hoje interpreto com o amadurecimento da idade e de uma mente necessariamente mais esclarecida e pautada pelos valores da actualidade. Tentei enquadrar a problemática do Terceiro Mundo e da África, em particular, no contexto histórico mundial dos últimos 60 anos, compreender as revoluções no quadro das quais se inseriu o processo de descolonização realizado por Portugal, aferindo assim a minha visão pelo panorama internacional de então e pelos debates ideológicos que dividiam o Mundo. Questionar factos e trazer a minha interpretação pessoal aos eventos que presenciei, tal foi a minha perspectiva. Tratar esses temas exige hoje um olhar bem diferente, mais distante, sobretudo em tempos em que nos confrontamos com inúmeros desencontros. Os temas dividem, pois existem muitos protagonistas ainda vivos e isso levanta paixões que poucas vezes primam pela racionalidade, pela isenção e pela observância de princípios. Admito que a minha interpretação dos factos pode ser incompreendida numa sociedade que ainda não se libertou do maniqueísmo, em que o “mainstream” politicamente correcto e dominante nos partidos impede o contraditório e desencoraja o debate arejado das ideias. Ao questionar factos históricos, tem que se fazer muitas vezes o papel de advogado do diabo (o que nem sempre é aceite ou bem compreendido pela nossa gente), colocar-se como observador no lado antagónico para tentar escrutinar o melhor possível a realidade, espicaçar os protagonistas na expectativa de que reajam positivamente aos desafios. Embora tentasse ser o mais rigoroso possível, é claro que o olhar de um cidadão leigo, desengajado, sem partido, não evita, contudo, uma leitura política e ideológica dos factos históricos, pelo que uma diferente abordagem dos problemas ou o simples questionamento sobre a veracidade de algumas versões, podem incomodar os detentores do pensamento único e incorrer em condenação a ostracismo: encarado como atitude reaccionária por uns, e perigoso esquerdismo por outros.

Na narrativa que desenhei, muita coisa poder-me-á ter escapado (talvez o essencial), pois na altura a minha compreensão dos factos históricos e da natureza das coisas era-me limitada pela idade e pela pouca vivência. Aceito isso. Convenhamos, no entanto, que 40 anos depois dos eventos que levaram Cabo Verde à independência, existem buracos, se não autênticas crateras na informação, e situações incompreensíveis para o comum dos mortais. Omissões diversas levam muitos a levantar sérias dúvidas ou suspeitas sobre a veracidade linear dos factos, tidos desde então como irrefutáveis, esperando a qualquer momento novas versões e explicações sobre o que aconteceu antes de nos ser revelada a existência de um partido que lutava pela independência de Cabo Verde e pela construção de um estado em solo cabo-verdiano sob sua batuta. Acresce que novas versões requentadas têm aparecido, sim, mas é para dar mais espessura à própria História oficial e sobretudo para impressionar os menos de 40 anos, assim se justificando a misteriosa multiplicação de heróis e factos heróicos não localizados no tempo ou no espaço do arquipélago. Para além disso, as versões de que dispomos hoje carecem de uma verificação objectiva da sua autenticidade e do confronto com o exercício do contraditório. Hélas, como já disse, muito testemunho se perdeu, tendo vigorado unicamente a posição dos vencedores, que hoje configura a versão oficial dos que ainda estão vivos, sem que alguém se preocupe em fazer um levantamento das versões dos que se posicionaram em campo oposto ou divergente, em ordem a garantir-se um legado para a posteridade que se cinja unicamente a critérios de rigor científico e de amor à verdade histórica.

Até hoje, tem havido pouco ou nenhum trabalho rigoroso, imparcial ou suficientemente objectivo sobre o período em questão, à altura da importância do assunto, por ausência de recursos, de material de estudo disponível (os arquivos, incluindo recortes de jornais, programas radiofónicos, etc., ou desapareram ou são inacessíveis, por conveniência dos que preferem a nebulosidade à volta dos factos), e talvez também por não haver ainda suficiente distanciamento temporal. Com o acelerar da História nestas últimas décadas, o tempo e as distâncias contraíram-se, os historiadores e os sociólogos foram apanhados pela velocidade da própria História. Os testemunhos de protagonistas seriam muito válidos, mas a maioria morreu sem revelar o pouco que ia na sua alma. Em geral, eram homens de uma idade avançada, muitos já desapareceram, uns calaram-se para sempre, outros acomodaram-se e não deixaram nenhum testemunho de natureza política ou mesmo os seus pontos de vista, tirando o caso do Dr. Henrique Teixeira de Sousa, que em obra ficcionista escreveu sobre o período revolucionário.

Se foi um erro histórico não se ter organizado um simpósio da reconciliação nacional (envolvendo todos os protagonistas) aquando da comemoração do 20º ou 30º Aniversário da Independência de Cabo Verde, numa altura em que se poderia confrontar os protagonistas ainda vivos, dentro de um espírito de desejável reconciliação, teria sido útil aproveitar a oportunidade dos 40 anos para se realizar simpósios e mesas redondas para debater aprofundadamente o tema, mesmo sem os grandes protagonistas dos eventos de há 40 anos, por terem desaparecido fisicamente ou da cena pública. Até porque ainda é possível contar com os jovens revolucionários de então, que estão na pré-reforma ou mesmo na reforma.

Muito mal começa um país onde impera uma única visão do passado e do seu futuro, sem que haja opiniões contrárias no jogo do contraditório e alguém que faça de fiel da balança. Ninguém pode pretender ter o monopólio da razão e da verdade, pelo que não pode haver leituras e pensamentos únicos sobre factos políticos e históricos. Pela mesma razão, pode inferir-se que nenhuma força política, por mais clarividente ou predestinada que se julgue, tem o direito de impor um único caminho a um povo, passando por cima de outras opções escrutináveis pela opinião pública. Com efeito, os actores políticos não podem basear as suas decisões em visões exclusivistas, sobretudo quando são alinhadas com estratégias ou ideologias que ignoram os caminhos alternativos que se abrem a cada momento na encruzilhada de um povo.

É irónico, se não paradoxal, que no preciso ano de 2015, em que se comemora os 40 anos da Independência de Cabo Verde, morra o último dos grandes protagonistas, o ex-renegado da UPICV Leitão da Graça, que teve a coragem de enfrentar o PAIGC. Reabilitado socialmente, não o foi politicamente, embora conste que teve direito a cerimónias fúnebres quase nacionais. Se hoje se reconhece que alguns cidadãos, como o Leitão da Graça, foram premonitórios em certa visão do futuro, nomeadamente a respeito do dogma basilar do PAIGC, a contranatura unidade Guiné-Cabo Verde, pergunta-se se não estariam com razão relativamente a outras questões. Não conheço depoimentos ou memórias deixadas à posteridade pelo Leitão da Graça, mas certamente que os há. Uma coisa é certa, o ramo cabo-verdiano do PAIGC, actual PAICV, engoliu desde a independência muitos sapos ideológicos e hoje até defende teses e tem práticas políticas contrárias à sua matriz ideológica original, teses essas mais próximas dos sectores ditos reaccionários de 1974, o que não deixa de ser irónico.

Não se pode descurar o papel da potência administrante ou colonial no processo de transição para a Independência de Cabo Verde. O destino do Império português estava todavia inscrito logo na instauração do regime autoritário do Estado Novo e da sua impossibilidade de se reformar e de perceber as mudanças no Mundo resultantes da 2ª Guerra Mundial. A conjuntura internacional dos anos 60, a complexidade crescente do problema colonial, a impossibilidade de manter os territórios pelo simples recurso à via armada, cuja maior evidência era o caso da Guiné, etc., engendrou a crise do regime autoritário de Salazar-Caetano, precipitando bruscamente a sua queda. A transição pacífica das colónias para a independência ou outro estatuto e soluções alternativas aos regimes de partido único, já eram utopia em 1974. Mas um império e uma nação com responsabilidades históricas não podia transferir o poder atabalhoadamente, deixando-o cair na rua ou a mercê dos mais espertos ou oportunistas. Contudo, foi mais ou menos isso que acabou por acontecer.  No caso particular de Cabo Verde, há indícios de conspiração MFA-PAIGC no sentido de entregar o poder exclusivamente a esse partido e arrumar a questão. De resto, o assalto à Rádio Barlavento com a conivência e cumplicidade das forças armadas portuguesas tem toda a feição de um golpe de estado encapotado, que sela o destino do processo de “descolonização” de Cabo Verde. Com a prisão das figuras importantes da oposição e a liquidação dos principais partidos da oposição, e com o êxodo provocado que se seguiu, instaura-se o regime de partido único, calam-se as vozes contrárias, os reticentes são absorvidos, e o PAIGC tem toda a latitude para implementar sem oposição o seu programa político (logo, económico e social centralizado e planificado) para Cabo Verde. Portugal livrava-se assim, a custo zero e num piscar de olhos, de um problema crónico, que seria a gestão custosa, durante um período transição, mais ou menos longo, de uma colónia miserável, ao passo que uma coligação de jovens estudantes revolucionários imberbes e combatentes cabo-verdianos da Guiné ganhavam o ‘jackpot’, a cadeira real do governador. É claro que transferência do poder deveria ter sido faseada no tempo, negociada, estudada, salvaguardando todos os interesses dos protagonistas no terreno e das pessoas residentes nos territórios e na Diáspora (os interesses dos contratado de S. Tomé não foram salvaguardados, acabando todos em situação de apátridas, assim como o de muitos emigrantes na Europa que perderam os seus papéis e estatutos, vendo as suas vidas repentinamente complicadas). Porém, por mais que se recrimine os protagonistas nas colónias, reconhece-se que a revolução do 25 de Abril, depois de ter perdido a rédea dos seus objectivos iniciais, deixou de ter condições para uma transferência de poder colonial de maneira isenta e imparcial e com salvaguarda dos interesses de todos os cidadãos. Tudo se conjugou para que os novos países experimentassem décadas de regimes autoritários, que ao fim e ao cabo foram uma réplica do poder ditatorial que fora derrubado pela Revolução de 25 de Abril. Apesar de tudo, Cabo Verde conseguiu em 1992 sacudir o pesado manto do regime do partido único, enveredar por caminhos mais civilizados, e tem vindo a conquistar o seu espaço no das nações, o que não é ainda o caso das suas congéneres lusófonas. De notar o papel da Diáspora na re-organização da oposição democrática no estrangeiro e a sua contribuição no desgaste do regime de partido único.  Sendo assim, as responsabilidades pelo actual estado político, social e económico das ex-colónias portuguesas, deve de ser, em parte, repartidas entre os regimes instaurados em 1974/75 e a potência colonial.

Para terminar, transcrevo aqui algumas questões constantes na série “Transparência e Objectividade sobre factos da independência de Cabo Verde e da 1ª República” (a lista exaustiva pode ser consultada no blogue Arrozcatum) que publiquei em Julho passado, e que se prendem com a análise e as considerações acabadas de formular:

1-Por que razão outras forças políticas (nomeadamente intelectuais cabo-verdianos de renome e referência) não foram convidadas para a mesa das negociações da independência?

2-Quais foram as posições colocadas na mesa das negociações relativamente à questão da democracia pluripartidária e ao futuro regime a implementar em Cabo Verde?

3-Por que é que não se realizou um referendo para que todos os cabo-verdianos se exprimissem livremente sobre um assunto tão importante para o seu futuro, sendo que a ruptura com a potência colonial e a criação de um novo estado exigiriam ser seladas por uma consulta popular e um veredicto acima de qualquer suspeita?

4-Por que razão as negociações para a independência não garantiram um período mínimo de transição, de pelo menos 5/10 anos, de modo a que todos os cabo-verdianos, independentemente da sua origem, convicção ou ideologia e residência (diáspora), pudessem participar para construir uma sociedade democrática e plural?

5-Como é possível que as negociações para a independência não tenham garantido pelo menos uma infra-estruturação mínima prévia de Cabo Verde a cargo da potência administrante ou da comunidade internacional, evitando os choques económicos e financeiros resultantes do vazio que se alega ter encontrado?

6-Por que é que o período de transição não foi alargado para um tempo mais vasto, por exemplo 5 anos, em vez de meses, de modo a permitir infra-estruturar Cabo Verde e dotar o país de instituições democráticas? Um ano de um governo de transição era insuficiente para um país inviável, sem condições políticas, sociais e económicas para a independência. Competia à potência colonial administrante garantir a investidura de uma administração minimamente viável e com o mínimo de recursos.

7-Qual era o verdadeiro estado das finanças de Cabo Verde em 1975? Como foi possível ter concedido a independência, e tê-la assumido, com os cofres do novo país vazios, como se afirmou, impossibilitando a assunção de todos os compromissos normais do Estado?

8- Que responsabilidade histórica recai sobre a potência colonial por ter pactuado com a implantação de um regime de partido único em Cabo Verde, assim como nas restantes colónias?

29 de Dezembro de 2015

José Fortes Lopes

Referências:

Série “Transparência Sobre Factos da Independência de Cabo Verde e da 1ª República” (In Arrozcatum):
A ─ Os combates da liberdade da pátria
B─Negociações e processo de Independência: a questão do processo de transição
C ─ Implantação da 1ª República no 5/7/1975: a questão da viabilidade do estado e a necessária infraestruração. A questão da oposição
D ─ Inconsistências do modelo político e económico da 1ª República

[8792} - GROSSERIA...

O ex-reverendo Edgar Silva, "paisano" desde 1997 é, como todo o mundo sabe, candidato nomeado pelo Partido Comunista Português às eleições de Janeiro de 2016, para a Presidência da República...
Homem habituado ao púlpito, ou  não fosse ele
mestre em Teologia, entre outras e católicas qualificações canónicas, dificilmente, ao ouvi-lo, alguém diria que já foi padre e, certamente, disse missas cumprindo os rituais da sua religião, naquele tom pacífico e conciliatório que é apanágio desse ritual católico...
É que, na realidade, este ex-padre que rejeitou as prebendas do seu ministério eclesiástico pela visibilidade da política activa é um orador tonitruante, acusador, ríspido que, infelizmente, por vezes desce aos domínios da grosseria quando, por exemplo, ao referir-se ao actual Presidente da República lhe chama "aquela múmia que está em Belém"...
Creio que é infeliz - no mínimo - um candidato à presidência de um país, se referir em tais termos à personalidade que pretende substituir e para cujo cargo foi guindado pela maioria do eleitorado...
Questões de princípios, de personalidade, ou de falta de chá?!

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

[8790] - CRÓNICAS DA RÁDIO BARLAVENTO...

Alguns Poemas
de Baltasar Lopes
pelo Dr. António Aurélio Gonçalves

O comentário brevíssimo para servir de introdução a uma pequena colectânea de poemas de Baltasar Lopes, que serão lidos por Guilherme Chantre, e que foi escrito a convite do poeta Jorge Barbosa, dar-me-á a matéria para a crónica de hoje. A colectânea que vai ser escutada, felizmente, dá-nos uma ideia exacta da arte do seu autor. Pela sua originalidade, pela sua profundeza, pela sua beleza e pelos estéticos que a sua leitura levanta, estes poemas estão naturalmente destinados a um público educado no amor e na compreensão da poesia. São versos para serem meditados. A sua linguagem, o seu fundo de ideias e de sentimentos fá-los bem diferentes daquela poesia a que está acostumada a maioria dos poucos leitores que ainda se interessam por versos. Creio que a sua apresentação pela rádio não favorece  a meditação que exigem. Mas isto, no fim de contas, constitui mais um motivo para que o ouvinte os escute com redobrada atenção.  
Uma qualidade salta ao espírito, logo se toma conhecimento desta poesia: é a sua intensidade de impressão, que nos fica à primeira leitura, de um poder de exprimir que já nos toca e impressiona pela força de choque de um jorro de água apanhado junto à nascente, quando o pensamento que enforma o poema ainda se não nos revelou claramente. Para muitos, quando se atinge este ideal de expressão fortemente e intensamente poética, já se criou a feição primacial da autêntica poesia. Era Mallarmé que ensinava a Degas que a poesia se faz com palavras e não com ideias.
Não nos deixemos vencer pela tentação de discutir e falemos agora de intensidade das ideias ou dos sentimentos, para a qual nos encaminha irresistivelmente, aliás, o primeiro aspecto já referido, pois que é raro que uma coisa vá sem a outra. “Poesia é o desenvolvimento de uma interjeição”. Assim falou Paul Valéry e quer-me parecer que nesta frase encontramos uma definição que se ajusta com singular felicidade à poesia de Baltasar Lopes. Um estado emotivo simples, um grito que eleva e se prolonga. Por via de regra, quando um poeta escreve, produz-se em nós a convicção de que há uma mudança de plano quando se passa da sua vida para a poesia. Aqui fica-nos a sensação diferente: a de que existe uma identificação entre a vida e a poesia, a sensação de uma poesia que foi captada junto à origem, logo no seu primeiro surto, e que conservou o vigor, a intensidade do seu primeiro instante. 
Para completar este brevíssimo esquisso, refiro-me agora a um aspecto, ainda em suspenso, mas no qual já o ouvinte arguto teria pensado. Qual, então, o aglomerado de sentimentos que se deposita e se exprime na poesia de Baltasar Lopes? Á medida que esta poesia se vai compondo e nos seus melhores momentos, vai-se organizando um grupo de ideias e de emoções, dispostas em torno de uma preocupação principal., que vem a ser o sentimento de fraternidade entre os homens. Escutem estres três versos simples e belos, tirados do poema que tem por titulo “Só":

“… Ninguém sabe a paz que eu sinto
em ter este orgulho de andar sem ninguém
e com todos e em tudo…”

E mais estes, respigados do poema “Capitão das Ilhas”:

“… Fui ao seu enterro porque sou caçador de heranças
e queria confessar a minha gratidão
pela riqueza que ele me deixou,
pela sua dimensão desmesurada do mundo
(Quem sabe se a poesia não será, afinal, agente
                                 libertar-se das dimensões…)
e pela sua incorporação no veleiro em que todos 
                                                            navegamos…."

Última arcada e último exemplo, acrescentamos, estes, colhidos em “Família”:

“… Fui seu irmão e tive pejo de lhe confessar
que a mesma penumbra contornava
as nossas duas sombras fatigadas
desta caminhada sem itinerário…”

Com toda a certeza, ouvinte caboverdeano que não nos negaste hoje a tua atenção, que a beleza formal destes versos não te escapou. Em todos se manifestam dois sentimentos, aparentemente, antinómicos, mas igualmente fortes, coexistindo e acabando por irmanar-se e por se completar: o orgulho da solidão, adoptada como defesa de um e cuja riqueza, para se conservar, se deve conservar, se deve manter secreto, a humildade de se sentir um homem entre os homens, de compartilhar de todos os aspectos da humanidade, de andar com todos e em tudo, de se incorporar no veleiro em que todos navegamos, de ser uma sombra fatigada ao lado de outra sombra nesta caminhada sem itinerário. O todo que deriva da íntima conjugação destes dois sentimentos – eis a matriz de onde emanam e que transmite a sua tonalidade a todos os sentimentos cantados por Baltasar Lopes na sua poesia.
Mindelo, 11 de Agosto de 1955                                                                                                                                         (Continua)

Do programa “ Miradouro”, apresentado semanalmente aos microfones da Rádio Barlavento, em S. Vicente.

(Recolha de A.Mendes)


domingo, 27 de dezembro de 2015

[8789] - ESCOMBROS DO PASSADO ...



Abandono do património  histórico, administrativo e cultural edificado de São Vicente, sobretudo, mas também de Santo Antão, São Nicolau, Boa Vista, do Maio, da Brava, pelo menos. Como sempre o abandono e, pior, a destruição patrimonial e de locais de memória histórica e efectiva colectiva, começa por São Vicente.
São tantos os exemplos! No caso do Palacete do Dr. Adriano Duarte Silva, esse tão insigne e destemido cabo-verdeano, ilustre e efectivo e determinado homem público, que enfrentava e confrontava o próprio Salazar, por causa e pela causa da então Província de Cabo Verde - atenção: Região Autónoma Ultramarina de Cabo Verde! - dizia eu, no caso do palacete do Dr. Adriano Duarte Silva (e de toda uma Inclita Geração), as vozes políticas, que, então, nessa altura, se elevaram foram de 2 deputados por São Vicente, dois eleitos nas listas do MpD e de 1 deputado eleito nas listas da UCID. Um desses então deputados, por causa disso, mas também de outros motivos mais "gravosos", já não é deputado da Nação, nem por São Vicente, nem por qualquer outro círculo eleitoral, porque foi eliminado do activo politico parlamentar ou de qualquer outro órgão do seu partido.
Quanto a autarcas municipais de São Vicente, apesar do Movimento e da petição, promovida por pessoas, como o incansável Marino Delgado e mais algumas, sensíveis e determinadas, e de esse Movimento e essa petição terem tido eco e apoio na Diáspora, apesar disso, os autarcas de São Vicente e outros titulares de órgãos político-partidários locais, de todos as forças políticas, na sua generalidade,  foram cúmplices, pelo seu silêncio, sua inacção, quando não foram co-autores do crime, histórico-cultural e espiritual da destruição desse Palacete - o mais lindo e mais significativo palacete privado de Cabo Verde - sob a batuta superior do então Ministro da Saúde, secundada pela batuta, ideologicamente serviçal e colaboracionista da então - pasmem-se! - Presidente da Câmara Municipal.
Dos autarcas e deputados da nação das outras Ilhas do Noroeste, beneficiárias próximas e em 1ª linha, da acção público-política, cívico-social e intelectual-cultural, do Dr. Adriano, maxime, Santo Antão, seu berço, de doutros ilustres e eméritos filhos da Região do Noroeste e de Cabo Verde e da Nação Cabo-verdeana (ainda sem Estado próprio, independente - nem pio nem pavio, em linguagem metafórica portuguesa, nem "nuticia nem geraçom", na metáfora crioula barlaventina, apenas o mais absoluto e cúmplice silêncio, moral e politicamente infame e criminoso da grande generalidade das elites culturais, intelectuais, económicas e administrativas, de São Vicente, Santo Antão e São Nicolau. 
E nem falo das juventudes, infelizmente - estrategicamente - contaminadas e infectadas pelo vírus partidário da dita - e maldita para Cabo Verde - africanização dos espíritos e promotor da negação da Crioulidade Cabo-verdeana, ao mesmo tempo, instiladora do veneno político-ideológico do afastamento, partidariamente, instrumental e convenientista, de Cabo Verde, em relação ao Ocidente, enquanto espaço padrónico e privilegiado, de afirmação e vivenciação, das Liberdades Públicas e do Estado de Direito Democrático, em todas as suas vertentes, adjectivas e substantivas, do melhor que a História Humana já produziu, apesar das suas limitações e contradições, quando não, perversões, mas que não lhe retiram a essência fundamental. Isso, apesar da hipocrisia e do cinismo perversos das lideranças dessa ideologia, quase sectária, que vivem de mãos estendidas a pedinchar, sempre, ao Ocidente, recursos que utilizam, perversamente, mais na conservação do poder político e económico do que no real desenvolvimento de Cabo Verde, melhor, no desenvolvimento, harmónico e verdadeiramente unitário, de todas de Todas as Ilhas, as partes, regiões, de todo o território e de todas as comunidades cabo-verdeanas.
Cabo Verde, deveras e mais do que nunca, precisa de outros homens e mulheres, de outros políticos, ao nível nacional, municipal e ... regional! ....de outra organização e distribuição do sistema do Poder, dos poderes, em Cabo Verde, mas também de outros intelectuais, outra administração pública, incluindo o sector da Educação, da Saúde, da Justiça, da Comunicação Social; de outros homens  e mulheres de negócios, de outros homens e mulheres da cultura, de outros quadros, de outros trabalhadores, em geral.
Só que isso não cai do Céu, nem surge por efeito mágico das nossas palavras, ditas e escritas, nem sequer da simples discussão e publicação de leis, decretos-leis e outros diplomas de níveis hierárquicos inferiores, que mais do que nunca, se sucedem, em catadupa ou avalanche, com repetições ou alterações de mera cosmética político-legislativa, ou, muito pior, de destruição de direitos-liberdades e garantias fundamentais, individuais e institucionais, numa repetição interminável, ruidosa, cacofónica e inestética, e mais, anti-económica, com o objectivo propagandístico, vulgar, e de confundir o Povo e satisfazer e certos interesses gananciosos e serviçais, financeiro-profissionais, de "boys and girls", dos da situação e não só, mas sobretudo,  esmagadoramente - e obviamente - dos da situação. 
Continuação de Boas Festas, apesar de todos os pesares, que o ano de 2016 seja mesmo novo, mas positivamente novo, em todos os planos das nossas vidas individuais e familiares e, necessariamente, da nossa vida colectiva, enquanto, Povo, Nação e País (e não apenas terra).
Abraço Cabo-verdiano Noroestino e Sanvicentino...
António Pascoal Silva dos Santos
A partir da Cidade da Praia, Ilha de Santiago, República (ainda) das Ilhas e Cabo Verde
27 de Dezembro, de 2015

[8788] - PROVÉRBIO CHINÊS...

* *是通* *看蚊子落在他* *的睾丸*
* *们认识到*
* *们不能以暴力解*
* *所有问题*
* *是通* *看蚊子落在他* *的睾丸*
* *们认识到*
* *们不能以暴力解*
* *所有问题*                  (Quando um mosquito pousa nos testículos é que se
                                  conclui que nem todos os problemas se revolvem pela violência...)

sábado, 26 de dezembro de 2015

[8787] - PROACTIVIDADE...


JOÃO COUTINHO, 63 anos, ex-emigrante, idealizador, realizador e editor do jornal "A RAZÃO"...


Mindelo, Rua de Lisboa, mesmo à porta do "plurim"...


Um exemplo de intervenção democrática da chamada "sociedade civil"...


(Colab. Arsénio E. Pina)





[8786] - GENTE DE OUTRORA...

UM DOS MEUS TIPOS INESQUECÍVEIS

Em 1970, após três anos na Ilha Brava como delegado de saúde, sem ter gozado um único mês de licença disciplinar (por fazer falta ao serviço, como determinava o Boletim Oficial), chegou a minha vez para exercer a função de delegado de saúde e guarda-mor de saúde do Porto Grande de S. Vicente, função rotativa nessa época e a única que permitia aos médicos mais novos amealhar alguns cobres. Investi esses cobres para me especializar em Pediatria e Saúde Pública em Lisboa.
Eu, a minha mulher (grávida da nossa filha) e o filho de três anos, viajámos no Primus, tendo o navio pernoitado no Fogo para carregar sacos com semente de purgueira. Chegado a S. Vicente e atracado ao cais, contrariamente ao habitual de olhar do barco para as pessoas no cais de cima para baixo, no Primus via os familiares que nos foram esperar, de baixo para cima, tal o tamanho da casca de noz. Dormi, durante a noite de viagem, sobre sacos com semente de purgueira, e a minha mulher e filho no beliche do comandante, cedido por deferência, visto ser Bravense e nos conhecer. Desembarcados, sujos, cansados e enjoados, só ambicionávamos um bom banho para refrescar o corpo, mudar de rouba e repousar.
Durante o tempo em que fui delegado e guarda-mor de saúde (sete meses), houve uma epidemia de cólera nalguns países africanos e na América do Sul, e houve que tomar medidas que prevenissem a entrada da epidemia em S. Vicente. Se tal acontecesse, seria mesmo catastrófico dado o péssimo estado de saneamento da cidade. Cheguei, num dos meus relatórios, a definir o Mindelo, parafraseando a definição de ilha, como uma porção de casas, ruas e becos rodeada de esterco por todos os lados.
Dediquei alguns meses a percorrer e a estudar todos os recantos da cidade, na companhia do enfermeiro das Endemias, Rui Pélico Neto, no meu carro pessoal, por a delegacia de saúde não dispor de transporte. Aproveitámos a oportunidade para desinfestar, com os pesticidas remanescentes das Endemias, todos os bairros de lata, e, por fim, apresentei à Câmara Municipal (CM), um detalhado relatório com propostas exequíveis para o saneamento da cidade, que de nada serviu, por nunca ter sido discutido, não obstante o Presidente da CM ser um amigo, o Dr. João Quirino Spencer. Somente depois da independência é que Nelson Atanásio, sabendo da existência da minha proposta e formação em Saúde Pública, me pediu uma cópia do documento, tendo-o aconselhado a procurar a proposta no caixote de antiguidades da CM, poupando-me a ter de procurar a cópia nos caixotes que ainda tinha por abrir após o regresso de Lisboa. E lá encontrou a minha proposta, que o ajudou, como confessou publicamente, na concepção e elaboração do plano sanitário do Mindelo.
Uma das medidas tomadas para prevenir a entrada da cólera, decidida a nível central, foi a vacinação contra a doença de todas as pessoas em risco, mormente das que viviam em contacto com os barcos que aportavam à ilha. Estabelecemos essa lista e começámos as vacinações, que ia controlando com o enfermeiro Portela e o agente da sanidade Centeio. Terminadas as vacinações, informou-me este de que todas as pessoas em risco da lista tinham sido vacinadas, excepto o senhor João da Mata Costa, vulgo Damatinha, que se tinha, terminantemente, recusado.
Conhecia bem a têmpera, história, anedotas reais e inventadas do Damatinha desde a minha infância mindelense, e não raras vezes o encontrava no Café Algarve, onde ia beber, diariamente, o seu galão acompanhado de bolo de arroz, e me cumprimentava com aquele aperto de mão seca e calejada que mais parecia aperto de tenaz.
Determinei interdição absoluta da sua entrada a bordo e aproximação dos barcos e esperei, tranquilamente, a sua reacção.
O Senhor Damata apareceu-me na delegacia de saúde, sem se dar por achado. Expliquei, pacientemente, as razões da vacinação das pessoas em maior risco de contraírem a doença, perguntando-lhe, em seguida, qual a razão da sua recusa.
A resposta foi que nunca tinha apanhado uma única injecção na sua vida, e já ia em vésperas dos noventa. Que o risco dele era mínimo, por fazer o negócio do seu bote sem necessidade de entrar nos barcos.
Argumentei que, não sendo ele nenhum jovem, pela idade que me tinha confessado, era de prever que as suas resistências à doença estivessem diminuídas, e que, portanto, só poderia beneficiar com a vacinação.
Sem se dar por vencido, foi-me arengando que em tempos recuados houve uma bruta epidemia de varíola, sendo, até, o médico do Porto Grande o meu pai, Dr. Hermano, e eu, se calhar, nem tinha nascido. Nem nessa altura foi vacinado. Ademais, o amigo Djô Figuera, homem lido e que percebia desses assuntos, tinha-lhe confidenciado que essa vacinação só dava 60% de protecção.
Aí dei-me conta de que o nosso homem vinha preparado para me entalar, e tive de mudar de estratégia, virando a conversa para o sentimento.
Tudo bem, senhor Damata, lhe atirei. Mas, não acha que seria uma beleza e confirmação da amizade da sua parte por mim, se permitisse que fosse eu próprio a aplicar-lhe a pica da vacina, quando nunca nenhum outro médico, nem enfermeiro tenham conseguido convencê-lo a sujeitar-se a uma injecção?
Lá bonito seria, senhor doutor … e bem sabe que simpatizo muito consigo …
Pareceu-me, pela hesitação e a pausa feita, que o tinha levado à certa, e poderia cantar vitória depois de lhe aplicar a injecção, quando, num repente, se empertigou, levantou-se como uma mola da cadeira, e, virando-se para mim, completou a sua frase – tudo muito bonito, senhor doutor, mas no meu cu não mete agulha!
Não pude disfarçar um sorriso e tive de me conformar com a promessa de ele continuar a fazer o negócio do seu bote sem subir a bordo, o que cumpriu, segundo me informaram da sanidade marítima e capitania dos portos.
Homens dessa têmpera já não existem; vêm-me à memória outros dessa época que se dedicaram ao negócio de bordo ou pertenciam à retaguarda destes, como Scofield, Jorge Grego, John Perry, Djô Figueira, Afonsona, Mochim Mercano, Pedro Cláudio, entre tantos outros, que emprestaram uma característica particular a S. Vicente, criando empregos e facilitando a vida a muita gente. Foram desaparecendo com a decadência da nossa bela Baía do Porto Grande e o abandono da ilha pelo poder central, na quase passividade dos mindelenses. A indiferença é culpável …, caros mindelenses! Outrossim, os governantes – isso relativamente ao ostracismo votado a S. Vicente em benefício de Santiago – esquecem-se de que o que define uma nação é ser uma comunidade de afectos e equidade, pelo que cada vez que se fere esta, ou parte dela, se esteja a destruir a identidade, justiça e progresso nacionais.

S. Vicente, Julho de 2013                                                             Arsénio Fermino de Pina


quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

[8785] - CENTRALISMO E OUTROS ...ISMOS!

Este trabalho deveria ser apresentado no enquadramento da série de palestras levadas a cabo na Universidade Católica, sob organização da Associação Cabo-verdiana e  da Embaixada de Cabo Verde, no passado 12 de Dezembro...Como o autor, por motivos assaz ponderosos na conseguiu estar presente e na dúvida de que tenha sido divulgado, aqui o deixamos para conhecimento de quantos se interessam pelos problemas do centralismo, regionalismo e... outros "ismos"!

Do Centralismo Democrático, da descentralização/regionalização e dos   ismos...

Há largos anos, li, em Coimbra, da biblioteca dispersa pelos “repúblicos”, por medida de segurança anti rusgas da PIDE, da Real República os 1.000-y-Onarius, O Contrato Social, de Jean Jacques Rousseau, tendo-me passado despercebido que o filósofo, que conhecemos do liceu ao estudar os precursores da Revolução Francesa, talvez fosse o primeiro a defender a teoria do Centralismo Democrático, claro que sob outras vestes. Partindo do princípio de que a autoridade do Estado idealizado por ele emana da “vontade geral”, de “todo o povo”, argumentava – de resto como F. Engels, na sua célebre “Situação das Classes Trabalhadoras na Inglaterra” -, que mais nenhuma manifestação de liberdade individual devia ser tolerada posteriormente ao acto constitucional fundador. Muito recentemente, o comentador político e Prof. João Carlos Espada recordou o mesmo facto no jornal Público.
Na minha juventude - minha e de alguns amigos-do-peito, tendo alguns virado políticos e governantes após a nossa independência -, estivemos entusiasmados com uma ideia inviável – o comunismo – de ideais nobres, mobilizadores, que empolgaram quem os conhecia através da bem urdida propaganda política e habilidade de dissimulação ideológica; admirámos homens que julgávamos íntegros e idealistas, em verdade sinistros; mais tarde, fechámos os ouvidos, demasiadas vezes, para não ouvir falar num número infinito de crimes, que não acreditávamos que pudessem ter sido praticados pelos nossos ídolos políticos. E isso aconteceu por termos vivido num regime – o chamado Estado Novo - sem liberdade as mais elementares, opressivo e policial que também navegava na mentira, que conhecíamos e nos impedia de confiar no que nos contavam, até por não nos ser permitido visitar países comunistas nem aqueles onde existia a vera democracia e liberdade de expressão do pensamento. Sabíamos, por viver nele, que o capitalismo não proporcionava a igualdade, e julgávamos que o comunismo o fazia. As soluções colectivistas da experiência soviética não podem ser repetidas porque, ao igualarem por baixo, mataram a liberdade e esta morte liquidou a igualdade tentada. Custou-nos a entender isso, argumentando até que fracassou por os seus intérpretes serem ruins. Afinal de contas, não havia outro, não há nem parece haver outro. 
             Distribuir sem lucro está fora do sistema capitalista, distribuir com lucro para alguns, como faz o neoliberalismo, deixa de fora milhões de desempregados e famintos. O mercado, de que tanto se fala e condiciona tudo nos nossos dias, prefere inutilizar os excedentes a distribuí-los. Os governantes neoliberais actuais do capitalismo financeiro aconselham a não irritar o mercado (para evitar o seu nervosismo, que significa tão-somente estar ávido de mais lucros). Damo-nos, pois, conta, de que a riqueza concentra-se em cada vez menos mãos e empresas e o salário distribui-se por cada vez menos trabalhadores, o que significa que a miséria e a fome se distribuem por cada vez mais gente e bocas. A fome, a exclusão social e o desemprego aumentam exponencialmente com o aumento global da chamada “riqueza das nações”, e não o contrário, como nos garantiram e continuam a querer convencer-nos.
Dessa minha vivência, conhecia de ginjeira o centralismo português, que entravava as iniciativas das administrações regionais e locais, as tentativas de descentralização, tendo por consequência o avolumar da burocracia. Somente muito mais tarde, já em Cabo Verde, na pós-independência, é que reencontrei o centralismo a que se acrescentou o adjectivo democrático, mas com domínio do poder político, económico e social condensados no Partido único PAIGC/CV, que pessoalmente até achava justificável no início da independência para garantir uma definição mais firme, dirigida e controlada do nosso percurso, mas por tempo limitado e não quinze anos, como durou, com o desgosto de ter de tolerar dirigentes amigos que se tornaram arrogantes e intractáveis, de resto, características de dirigentes de partido único. Não obstante esses inconvenientes dei o meu contributo com aquele orgulho a que se refere o nosso vate popular Manuel de Novas, e sem me queixar dos sacrifícios consentidos, num dos períodos mais difíceis e exigentes do país, mas gratificantes sob o ponto de vista profissional e um pouco ideológico. 
Mais tarde, o poder foi conquistado pelo MpD na primeira eleição multipartidária, e soprou uma lufada de ar fresco em termos de liberdade, justiça, direitos e esperança de vermos atendida a opinião e o contributo da sociedade civil na nova política, realmente concretizada de modo satisfatório na primeira legislatura. Porém, benefícios e esperança de pouca dura, porque, quando, após novas eleições, o novo regime obteve maioria qualificada – que é uma tentação para a tirania da maioria -, voltou a arrogância e o centralismo anteriores com tendência a caminhar a par com uma degradação progressiva do comportamento e mentalidade dos quadros e a esquivar-se ao cumprimento de normas regulamentares e éticas e a conviver, sem rebates de consciência, com inclinações corruptivas.
Embora tenhamos passado a viver, teoricamente, em multipartidarismo após o regresso ao poder do PAICV - que fez a travessia do deserto sem se redimir completamente de pecados passados -, para alguns militantes e governantes, o antigo partido único continuou a funcionar como membro fantasma, isto é, à semelhança de uma perna ou braço amputado, mas que se continua a sentir como se existisse. Fenómenos de natureza ideológica podem estar em actividade em sectores da vida política, administrativa ou social sem que se esteja numa sociedade de partido único. Temos vivido, em Cabo Verde, numa situação similar, o que vem dificultando o diálogo, as reformas e contribuído para a surdo-mudez dos governantes, o que me levou a dar o título de ÊS CA TA CDI! a um livro, estando outro no prelo, igualmente crítico, situação que propícia o oportunismo, a subserviência e a obediência, esta uma diminuição de valor e de dignidade. A obediência, mesmo a camuflada em disciplina partidária indiscriminada ordenada de riba, é dos frutos do despotismo o mais venenoso. O homem que obedece avilta-se; o povo que o faz deprava-se e dissolve-se, como bem escreveu Ramalho Ortigão em As Farpas.
Como resolver o imbróglio e a actual crise em que estamos? Em primeiro lugar, deixar de salivar os lugares comuns do centralismo democrático já caduco e abrir o espírito a influências novas dialogantes. Em seguida, isso no contexto geral da crise global, tentar encontrar uma maneira de harmonizar o sistema que sabe produzir com o que consegue distribuir, que se invista na criação da sociedade solidária, refutando a de vencimentos obscenos para alguns apparatchiks. Não será fácil, mas há que tentar, porque a pobreza e o desespero levarão os povos a revoltarem-se, como aconteceu na Revolução francesa. Foi o velho sage maliano Hampaté Ba quem afirmou não haver pequenos fogos, mas tão-somente falta de combustível. 
Haverá alternativa ao centralismo? Certamente que sim. Infelizmente, os políticos falam à boca cheia nela - na descentralização, a complementar com regionalização -, mas somente nos períodos eleitorais para, depois de obterem o poder, a remeterem para as Calendas Gregas.
Falámos já bastante da regionalização, nós do Movimento para a Regionalização de Cabo Verde, na diáspora, o Grupo de Reflexão para a Regionalização, sediado em S. Vicente, e mesmo o actual Presidente da República, o MpD e a UCID, e o nosso Movimento reuniu em livro os contributos mais importantes. Pena foi que a tão esperada Cimeira sobre a Regionalização, que não respeitou a nossa sugestão de ser um estudo por uma comissão multidisciplinar e plurissectorial independente que estudasse a sua viabilidade a Cabo Verde, não tivesse lançado um olhar interessado sobre o conteúdo deste livro, na falta do livro-branco prometido pelo Governo, nem convidado ninguém do Movimento para o debate, estando até um deles em S. Vicente. Preferiu-se consumir o tempo a ouvir queixumes sobre o mau municipalismo sem mesmo lhe fornecer alguma mezinha para os seus achaques, a não ser recentemente - promessa de novos estatutos, quando os anteriores nem foram aplicados como convinha.
Parece mais do que evidente que o municipalismo praticado funciona mal e parcamente por se basear em repartições desconcentradas, e não descentralizadas, sempre atento ao assentimento, quando não ao deferimento dos ocupantes do Palácio da Várzea, sem a seiva do poder autárquico autónomo.
Com a regionalização haveria revitalização do poder local e regional, o primeiro um tanto semelhante ao existente durante a vigência da Primeira República, mas sem o estorvo partidário impositivo que o comprometeu, dado que, até agora, os eleitores não elegem deputados ou autarcas, limitando-se a ratificar as escolhas impostas pelas cúpulas partidárias.
Os nossos governantes ainda não se deram conta de que o entretenimento de cidadãos com falsas soluções, alienação através dos meios da comunicação de massa, sobretudo da TV, discursos e recados encomendados, telenovelas ruins, futebol em série, estando o cabo-verdiano mais bem informado sobre as peripécias futebolísticas portuguesas do que sobre os problemas cruciais nacionais. Tenta-se, com isso, adiar a reacção do povo que já vai manifestando algum interesse em participar politicamente e experimenta mesmo, por ora esporadicamente, sentimentos de rebelião que contrapõem a sociedade civil à classe política e os eleitores aos eleitos. Por outro lado, em simulação de soluções e reformas, publicam-se leis a granel com a displicência de quem enche chouriços, criam-se instituições inoperantes, distribuem benesses aos mais devotos fiéis que só sabem dizer yes sir, tudo para continuar a reter poderes que deveriam descentralizar e repartir. 
A regionalização exige reformas do aparelho do Estado, incluindo o sistema eleitoral, onde reside uma das raízes do problema. Num sistema proporcional, como o nosso e o Português onde se inspirou, são as elites partidárias, não os eleitores, quem escolhe os deputados e, indirectamente, os governantes. Nas eleições com base em círculos uninominais, pelo menos os eleitores conhecem e sabem em quem votam e podem pedir-lhes conta quando eleitos. Não me parece heresia maior o regresso ao presidencialismo como preventivo para a sua assunção pelo Primeiro-Ministro.
Presumo que todos estão de acordo que o país, para restaurar os princípios da decência social e os seus bons hábitos e costumes, necessita de revalorizar a família, a escola, a igreja, a autoridade e a consciência moral, que ainda são factores de preservação de valores e de regulação de comportamentos. Tarefa ingrata porque até a polícia e o exército entraram em processo de desgaste e o repositório de equilíbrios e valores tradicionais que era o mundo rural antes do êxodo rural, cada vez mais uma saudade. Além do mais necessitamos urgentemente de um novo modelo de desenvolvimento e uma real partilha do poder. Temos referências fundamentais políticas, culturais e humanas onde nos apoiarmos, desde os mais antigos, alguns, Nativistas, cabo-verdianos, filhos da terra – Sena Barcelos, Luís Loff de Vasconcelos, Eugénio Tavares, Pedro M. Cardoso, Viriato da Fonseca, João Augusto Martins, Abílio Macedo, Senador Vera Cruz, José Lopes, o sábio Roberto Duarte Silva, o benemérito Dr. Júlio José Dias, entre tantos outros –, e menos antigos, alguns, do Movimento Claridoso – Baltasar Lopes, Aurélio Gonçalves, Adriano Duarte Silva, Jorge Barbosa, Maestro Alves dos Reis, Manuel Lopes, Amílcar Cabral, H. Teixeira de Sousa, Arnaldo França, Félix Monteiro, António Carreira, João Cleofas Martins, entre muitos outros –, e mais recentes, que não cito com receio de omitir alguém. 
As sugestões e contributos para a mudança – para as reformas necessárias visando a execução da verdadeira descentralização e regionalização – são tarefas de todos os cidadãos motivados, residentes e da diáspora da sociedade civil, onde germina a curiosidade, fervilha a indignação contra a injustiça, se aceita o risco calculado, onde há o respeito pela diferença, confiança no mérito e na experiência vivida, sempre superior a ideias feitas. Quiçá, devido à existência dessas mesmas qualidades, as organizações da sociedade civil são vistas com desconfiança pelo Poder e se procura calá-las. Restam-nos poucas ilusões quanto ao interesse geral dos altos funcionários do Estado e dos partidos políticos, que deveriam ser constituídos por cidadãos que os representassem condignamente, porque, nos últimos tempos, face ao declínio da confiança no Estado, parece que o que mais os motiva e dignifica são interesses pessoais, sentindo-se superiores aos demais cidadãos. Uma elite que enriquece por se curvar e bajular o poder e à custa do erário público é imoral, particularmente quando o país é pobre e necessita da solidariedade internacional e do sacrifício da maioria para sobreviver condignamente.
Termino, presumindo ser insuspeito ao falar com clareza, sem calculismos nem manobras intelectuais ou outras, numa narrativa limpa, clara e honesta, dado que a verdade pinta-se nua, e eu não alimentar nenhum rancor a cobrar, não possuir panaceia a vender e me ter sido atribuído, há anos, o estatuto de Combatente da Liberdade da Pátria, condecoração pela Presidência da República (1ª classe da Medalha de Mérito), e homenagem pela Ordem dos Médicos Nacional, pelo contributo dado antes e depois da independência, sem nenhum outro interesse que não a dignificação e valorização do nosso povo e país.
Obrigado pela paciência em me terem escutado.

Lisboa, 12 de Dezembro de 2015         Arsénio Fermino de Pina
                                                                                               



[8784] - SEQUESTRO DO PAI NATAL...


      Noite fria em Tomar, sob céu límpido e estrelado. Saio para ir abastecer o automóvel a uma bomba de gasolina. Suspensas sobre as ruas, figuras de múltiplas combinações bordam a noite com seus perfis luminosos. No ar flutuam as modulações de cânticos difundidos por altifalantes invisíveis. É o Natal à porta, anunciado em toda a sua fantasia coruscante. O movimento nas ruas é a estas horas já quase diminuto, depois do corrupio frenético durante a tarde toda. Foi um vaivém ininterrupto sobre os passeios, lojas com mais clientes do que o habitual, pessoas apressadas transportando sacos e embrulhos. Nesta altura, o poder de compra faz tréguas com a carestia, e o Natal é uma fábula com que o comum das pessoas se pactua, não fazendo caso das denúncias do consumismo desenfreado. Há quem entenda que o verdadeiro sentimento natalício é anestesiado pela banalização de gestos e palavras que nos dias de hoje se automatizam a uma escala sem precedentes com os novos recursos das tecnologias de comunicação: mails, sms, cartões de boas festas formatados pelos sistemas informáticos, etc.
      Com estes pensamentos, paro frente a um sinal vermelho do semáforo, e alguém se aproxima a vender-me o almanaque Borda-d’água. Mas o sinal verde abre e arranco, no rosto do vendedor ambulante ficando a estampada a frustração. É possível que me tenha visto como um cliente certo, que as regras de trânsito lhe roubaram no último instante. Sinto remorso, ainda penso em fazer inversão, mas a manobra é impensável. O meu impulso natalício foi tolhido pelas exigências do código de estrada.
      Chego à bomba de gasolina e encontro um velho companheiro das minhas já longínquas andanças por terras de Angola. Convida-me a tomar um café. Sentados já à mesa, vêm logo as lembranças de África, de dois natais passados num lugar recôndito em pleno mato, em situações hoje inimagináveis pelas gerações actuais. A páginas tantas, o meu amigo queixa-se do consumismo que assola as pessoas por esta data e aponta-me, como exemplo, o saco repleto de prendas.  
      ─ Já sei que daqui a dois dias os meus netos já nem sequer vão olhar para isto, e serão mais uns brinquedos a juntar aos dos anos anteriores, mas que fazer? ─ disse ele.
      ─ Pois é, o que fazer? ─ corroborei a sua interrogação ─ se não surfarmos a onda destoamos dos outros, ficamos mal vistos, não é?
       ─ Claro, mas é nesta altura que sinto nostalgia dos natais da minha infância, na aldeia da Beira Baixa…
       Sem querer interromper a torrente dos seus pensamentos, deixo-o prosseguir: 
       ─ … Olhe, naquele tempo era tudo muito diferente, muito simples, hoje até dói ver tanta “estragação” em coisas de que não precisamos e servem mais para justificar a ocasião natalícia. Lembro-me bem desses tempos, eu miúdo ainda, numa época que era de dificuldades... ─ Uma breve pausa, e aguardo que ele continue.
      ─ … Na minha aldeia, a véspera de Natal era, em certos aspectos, um dia como outro qualquer, sem comezainas e luxos. Durante a tarde, o meu pai reunia uns bons cepos de pinheiro e arrumava-os ao pé da lareira. Explicava-me que nessa noite o fogo não se podia extinguir, porque o Menino Jesus iria acomodar-se junto à lareira. À hora do jantar, o braseiro já estava bem vivo, o que era um consolo naquelas noites invernosas. A seguir, íamos à Missa do Galo e regressávamos a casa na companhia dos meus avós e outros familiares. O meu pai reunia sempre a família mais próxima. A minha mãe punha então a mesa para a nossa ceia, pobre mas algo diferente dos outros dias. O meu avô abria uma garrafa de aguardente de medronho do seu próprio fabrico. Então, a reunião de família se animava com uma conversação viva e alegre em que toda a gente participava, contando-se histórias de outros tempos. O meu avô recordava sempre a memória de outros natais, a presença dos seus pais, a grande satisfação que os invadia na véspera natalícia. Chegava o momento que eu mais aguardava. Era quando o meu pai me dizia que ia nascer o Menino Jesus naquela noite e que ele viria numa estrela para me trazer de propósito uma prendinha. Então, aconselhava-me a deixar o meu único par de sapatos ao pé da lareira, porque dentro deles eu iria encontrar uma surpresa. ─ E o que acontecia depois? − indago, interessado em ouvir o resto de uma conversa de todo inesperada.
      − Ah, vai ver. As horas iam avançando, e o fogo da lareira não parava de ser alimentado para se manter ao rubro. O seu forte crepitar denunciava a presença de uma noite especial. Lá para o fim, os temas de conversa iam rareando, o sono a aproximar-se, e o olhar de todos pregado no brasido da lareira. Dir-se-ia que repentinamente ficavam pensativos, talvez a recordar familiares ausentes ou já falecidos. Mas naqueles olhares silenciosos lia-se a gratidão pela comunhão espiritual daquela noite. Era como se o Menino Jesus fizesse o milagre de reforçar o afecto que nos unia a todos. Eu ia para a cama, não sem deixar de espreitar para o céu, na esperança de descobrir a tal estrelinha que me ia trazer o Menino Jesus. O meu sono era sobressaltado com a alegre expectativa da manhã seguinte. Mal acordava, corria para a lareira e dentro do sapato estava uma moeda de 1 escudo. Para mim isso tinha um significado desmedido. Ainda hoje recordo a singeleza daquela prenda. Mas aquela moeda, pouco dinheiro, significava mais do que o seu valor real. Era a prova real de que tinha havido uma noite diferente na nossa casa. Enfim... naqueles tempos era assim mesmo.
     Então, intervim: ─ Se calhar a solução é sequestrar o Pai Natal, suspendê-lo num limbo qualquer, fora do alcance do marketing comercial, ele que é o seu símbolo mais mediático, inventado pelos americanos. É a única maneira de fugir ao consumismo desenfreado que nos desfoca o olhar sobre o essencial da vida; de fazer vista grossa e ouvidos moucos a essa agressiva publicidade que incita as pessoas a gastar até ao último centavo, e quando não o têm é a crédito.     
      ─ E acha que resulta?
      ─ Não, não resulta, o que eu disse é uma metáfora, é uma brincadeira com as palavras. Porque, de facto, é difícil contrariar a dinâmica social e dos tempos, que é sempre complexa e imprevisível. Até porque, repare, o crescimento da economia depende também do consumo interno, mesmo que o seu efeito seja sazonal, como no Natal e nos meses das férias. Enfim, as coisas não são tão lineares como às vezes supomos, a economia não é como governar uma casa, tem as suas regras, as suas variáveis. Mas é pena que o espírito natalício entre na contabilidade das coisas perecíveis.      
      O meu amigo suspirou e disse: ─ Ah, quanto daria para regressar aos natais da minha aldeia!… seria a única forma de fugir ao atropelo dos sentidos…
      ─ Diz bem, a solução é regressar às nossas antigas aldeias, ─ interrompi-o ─ e mesmo quem não tenha uma pode criá-la dentro de si. Assim seria possível fugir aos clichés, à banalização dos gestos, à mistificação dos sentimentos. Sim, regressar à autenticidade cristã da noite natalícia é possível numa aldeia real ou imaginária. Longe do mundo artificial e supérfluo, perto das coisas puras e essenciais. Aquelas que perduram na memória.
      E foi com estas palavras finais que me despedi do meu amigo, com votos recíprocos de Boas Festas.
                                   
Tomar, Dezembro de 2015
Adriano Miranda Lima

[8783] - A CAMINHO DA SÍRIA?!...

(Colab. Tuta Azevedo)

[8782] - COMEMORAÇÃO...

Comemorando o Manifesto para a Regionalização de 2011: um contributo para história do movimento regionalista em Cabo Verde


      O ano de dois mil e onze foi histórico e de charneira para Cabo Verde, por corresponder ao culminar do processo da consciencialização cívica sobre a problemática da Regionalização, mediante o lançamento do Manifesto para a Regionalização de Cabo Verde (1,2), o que apanhou de surpresa a classe política. Porém, e antes de mais, fazendo jus ao historial do processo, refira-se que foi Onésimo Silveira quem pela primeira vez deu o mote sobre a questão da Regionalização, nos anos 90 do século passado, enquanto Presidente da Câmara de S. Vicente, pedindo à Praia mais descentralização, sem no entanto especificar o conceito na medida em que dada às debilidades económica de Cabo Verde e vivendo ainda sob a euforia da Independência, fechava-se os olhos à questão do Centralismo e aceitava-se de ânimo leve alguma prioridade na infra-estruturação de Santiago e da sua capital. Todavia em matéria de paternidade da regionalização, António Pascoal Monteiro alega que há muito tempo (início da década de 2000) que individualidades do MpD, por conta própria, vêm defendendo a regionalização:
- Foi o MpD, enquanto partido e força parlamentar,  que defendeu e fez introduzir, na Constituição, a possibilidade de haver autarquias supra-municipais.
- Ainda, ao nível de individualidades, António Pascoal Monteiro alega que, antes de muitos, defendeu, desde 2008, publicamente, em muitas conversas individuais, promovidas por ele, e em encontros colectivo, da iniciativa dele, não somente a regionalização político-administrativa, em geral, mas também e especialmente, a criação da Região Autónoma das Ilhas do Noroeste (Santo Antão, São Vicente, São Nicolau, Santa Luzia e Ilhéus Adjacentes), ou seja, de uma região político-legislativa (a não apenas administrativa).
- Por iniciativa dele e aproveitando as possibilidades que o estatuto legal de deputado lhe propiciava, foi criado, em São Vicente, um Grupo, um núcleo inicial, com pessoas de São Vicente, Santo Antão e São Nicolau, aberto a pessoas de qualquer outra ilha ou da diáspora cabo-verdiana, com uma comissão coordenadora, composta por ele,   Américo Silva e José Melo Araújo. Esse grupo, com a dispersão dos seus membros mais activos e a eliminação  de António Pascoal Monteiro como deputado (alegadamente por ser regionalista) viria a desaparecer.
- Há poucos anos, numa entrevista ao jornal Expresso das Ilhas, voltou a defender e a explicar a regionalização, em geral, para todo o Cabo Verde, e especialmente, a criação da Região Autónoma (político-legislativa) das Ilhas do Noroeste, assim como defendeu uma região para o grande interior de Santiago, desmontando os argumentos do Governo e, especialmente, de José Maria Neves, de ordem financeira, sobre o pretenso perigo para a unidade nacional (o papão dos fundamentalistas). Pascoal opõe-se frontalmente ao modelo Ilha-Região.
Finalmente participou recentemente num programa radiofónico, promovido e moderado pelo jornalista Carlos Santos, e que teve como intervenientes, o Luís Filipe, vice-presidente do MpD e o David Hoffer Almada, ex-deputado e figura conhecida do PAICV e de Santa Catarina de Santiago.
Assim  António Pascoal Monteiro insurge contra o discurso de certo sectores regionalistas, que classifica de desfocado, vaidoso, e que devide os regionalistas em autênticos, preocupados com o destino de São Vicente e do Barlavento e outros que são simulados, fingidos e traidores, discurso, que no entender dele, só ajuda aos defensores da não regionalização, aos opositores da regionalização e, sobretudo, da criação da Região Autónoma do Noroeste.  
 Tirando estes detalhes de percurso, desde então, o tema entrou na agenda cívica, ainda que envergonhadamente e sem agregar suficiente militância, mas mesmo assim espoletando o surgimento de alguma reflexão em S. Vicente sobre o estado de decadência da ilha face à marginalização política a que ela vem sendo votada pelo poder central. 
      Em 2004, realizou-se na Praia uma mini cimeira sobre Regionalização envolvendo algumas figuras políticas de Cabo Verde. Foi um acontecimento fechado, quase secreto e de difusão mediática astuciosamente manipulada, o que não surpreendeu de todo quem estava atento, uma vez que, desde a sua ascensão ao poder, o PAIGC se mostrou sempre avesso a essa reforma, invocando o pretexto da unidade nacional (um lema ideológico que serve de  viveiro para o Centralismo) e recorrendo a toda a sorte de expedientes dilatórios para iludir uma clara tomada de posição sobre o assunto. Dir-se-á que, de forma capciosa, se lavrava um atestado de sobrevivência ao Centralismo. Tanto mais que, nessa cimeira, a abordagem ao tema fugiu claramente ao seu objectivo concreto e iniludível, ao pretender-se cingir a um conceito insípido de regionalização, o simples reforço do municipalismo: deste ponto de vista o debate da regionalização encerra muita desinformação e má fé. Com efeito a classe política cabo-verdiana toda formatada nos processos revolucionários  de 1975-1992, parou no tempo e no espaço: é muito conservadora, dogmática e fechada na mundivivência do arquipélago, ficando alheia às novas tendências da modernidade e das democracias mais avançadas.  De resto, já o governo do MpD havia anteriormente pisado o mesmo terreno difuso ao considerar que a descentralização política encontrava suficiente respaldo com a criação das autarquias municipais eleitas por sufrágio e com a criação de um “governador” em cada ilha nomeado pelo governo central, que seria na prática uma espécie de delegado administrativa do poder central, um menino de recado da conveniência dos poderes da Praia. Ora, considerar isto um importante ganho do processo de descentralização é tomar a nuvem por Juno, é pura falácia, já que pouco ou nada de substancial se operou como reforço efectivo do poder local, uma vez privadas as autarquias de adequados instrumentos viabilizadores da sua verdadeira eficácia administrativa ao serviço das comunidades.  

      O verdadeiro conceito de Regionalização só podia vir da Diáspora mais esclarecida, descomprometida, apartidária, desinteressada e generosa e nunca daquela que frequenta os salões e sempre pronta a curvar e espinha contra benefícios materiais e imaterias. A Diáspora conhecedora dos modelos jurídico-políticos vigentes em regimes democráticos avançados, onde os processos de descentralização e regionalização não são artes de prestidigitação para iludir o pacóvio, mas formas concretas e assumidas de organizar o espaço territorial visando o reforço da democracia local e ganhos de eficiência administrativa. Os modelos conceptuais de Onésimo Pascoal ou qualquer dos outros grupos de reflexão em S. Vicente eram deficientes e não passariam de emplastros administrativos.
      Recorde-se que foi durante a parte final do período colonial que a questão da regionalização foi pela primeira vez levantada em Cabo Verde. Reconhecia-se, de facto, o carácter eminentemente regional de Cabo Verde, a sua diversidade geográfica, climática, cultural e sociológica, e havia intenção de alterar o paradigma e tirar todas as implicações políticas que isso poderia comportar. Mas o ovo não eclodiu porque entretanto ocorreu o 25 de Abril, pelo que se poderá dizer que lamentavelmente se perdeu uma oportunidade histórica de redesenhar a administração do território em moldes que certamente só poderiam beneficiar o seu desenvolvimento integral e participado em pé de igualdade por todas as ilhas. De notar que o  PAIGC, que se arrogava progressista, reagiu violentamente ao projecto, acusando, injustamente ou não, esta inicitava do governo colonial de manobra divisionista para dificultar a independência de Cabo Verde. Os anti-corpos deste partido face à Regionalização vêm, pois, de longa data e prendem-se com razões de ordem ideológicas, por ser um partido de matriz leninista (embora a URSS e a China tenham tido regionalização).
      É consabido que a ilha que sofreu o impacte imediato do Centralismo foi a de S. Vicente. Sofreu-o numa dimensão tal que desde logo ficou clara que a intenção era declaradamente vitimizar a ilha pelo papel que ela exerceu no passado. Pulmão de Cabo Verde graças às vultosas receitas do seu Porto Grande, centro cosmopolita e impulsionador de todas as vertentes da modernidade em todo o território, as evidências apontam que a ilha foi vítima de um inqualificável processo de marginalização política no pós-independência, com o argumento pueril de que ela tinha sido favorecida durante a administração colonial e que doravante se impunha um ressarcimento em benefício da ilha de Santiago. Só a mais completa ignorância pode conceber semelhante raciocínio. Só por rematada má-fé se tenta ocultar que se a ilha atingiu níveis de desenvolvimento sem precedentes no arquipélago não foi por obra e graça da administração colonial mas sobretudo por acção dos ingleses, que a transformaram efectivamente no “pulmão de Cabo Verde”, com proveito para Portugal e para a colónia como um todo. Pelo contrário, é do conhecimento geral que a administração portuguesa, por laxismo ou por inoperância política, nada fez para em devido tempo dotar o Porto Grande de apetrechamento adequado para que pudesse competir com outros portos atlânticos congéneres no abastecimento da navegação internacional, como Las Palmas e Dakar. A ascenção foi, portanto, de pouca dura,  travada pelo Estado Novo, e a sua curta visão sócio-económica e mesmo estratégica.
      Embora isso, S. Vicente progrediu de tal maneira, graças à indução natural dos processos sociais que gerava, que se pensou que a capital devia ser transferida com vantagem para onde estava o centro de gravidade da colónia, quer do ponto de vista socioeconómico e cultural, quer anímica e politicamente. O que Santiago fora na era quinhentista passou S. Vicente a representar por inteiro na era industrial. A transferência só não se realizou por acção dos lobbies de Santiago e por tibieza política por parte de Portugal. Não houve, pois, nenhuma questão ou jogada política por parte da potência colonial com o objectivo discriminar Santiago, a ilha mais  africana das ilhas de Cabo Verde, em favor do Norte de Cabo Verde, como alguns teóricos revanchistas pretendem afirmar nos seus delírios fundamentalista.  
      Perante tudo isto, raia o absurdo pretender-se que a ilha de S. Vicente devia ser arredada do pedestal do seu privilégio, quando tudo o que ela representou foi por esforço próprio e em benefício do todo colectivo. Pelo contrário, o que deveria impor-se era o aproveitamento do importante pólo de desenvolvimento que a ilha representava a todos os títulos no contexto do arquipélago. Em vez disso, a estratégia do regime de partido único, reforçado pelo governo do PAICV à partir de 2000, foi a centralização e a concentração do Estado, de todo o seu aparelho institucional, na ilha de Santiago, iniciando-se assim um processo capcioso que não tardou a revelar-se a negação do desenvolvimento equânime do território, castrando as potencialidades naturais das outras ilhas, e assim se comprometendo provavelmente a viabilidade futura do país.
      O Manifesto para um S. Vicente Melhor de 2010 (3) proposto pelo núcleo duro regionalista da Diáspora (um grupo cívico que nasceu no início da década de 2000 para travar a predação selvagem do património da ilha), assinado por inúmeros intelectuais da Diáspora e por muitos residentes em Cabo Verde, condensa a preocupação de um número elevado de mindelenses relativamente à perigosa deriva social e económica em que a ilha de S. Vicente se encontrava e se encontra, e que foi publicado em todos os jornais cabo-verdianos (nomeadamente o Liberal on-line e o Notícias do Norte). O Manifesto foi dirigido ao coração do sistema político cabo-verdiano como uma advertência do que estava para vir, caso o governo centralista da Praia não revertesse a sua atitude, que lembrava os tempos do centralismo colonial. 
      Como nada mudou, resolveu-se accionar o Plano B que já figurava na agenda, a Regionalização. Este tema tinha já sido  bastante aprofundado e debatido sob todos os pontos de vistas, e analisado sob as mais diferentes ópticas e implicações. Após algumas hesitações, e em face das evidências cada vez mais gritantes de endurecimento das políticas centralistas em curso em Cabo Verde, consolidou-se a noção adquirida de que não havia outra alternativa senão a Regionalização Política de Cabo Verde. O núcleo da Diáspora, mais uma vez ele, elaborou o Manifesto da Regionalização e fui encarregue de o levar para S. Vicente para ser discutido com os diversos núcleos regionalistas já existentes no terreno. Foi criado um comité adoc coordenado por Júlio César Alves e João Lima, responsáveis para impulsionar e dinamizar o movimento no Mindelo, ao mesmo tempo que disseminávamos as ideias pela Diáspora. O lançamento do Movimento ocorreu no jornal on-line Notícias do Norte, que mereceu a nossa preferência para o evento, através de uma longa entrevista concedida pelo Grupo no Hotel Porto Grande. 
      O Manifesto da Regionalização de Cabo Verde, assinado por Júlio César Alves, João Lima e por mim, em representação da Diáspora, foi, com efeito, publicado nesse jornal online e nos jornais em Cabo Verde que não praticam censura, nomeadamente o Jornal Liberal, que desde sempre acolheu com muita abertura o debate sobre o Centralismo e a Regionalização, assim como nos blogues amigos (Arrozcatum e Praia de Bote). Estavam lançados os dados para um debate sobre um tema importante para a sociedade cabo-verdiana, ela ainda sob influência de preconceitos antidemocráticos e cindida entre tendências conservadoras e progressistas enraizadas no processo da independência, mas em que a fidelização partidária se confunde hoje mais com uma espécie de clubite do que com um esclarecido posicionamento ideológico. 
      Desde então, nunca mais o debate parou: a Regionalização tornou-se ‘viral’. Em Fevereiro de 2015, o partido no poder, centralista e anti-regionalista, promoveu uma Cimeira da Regionalização que consistiu num não debate, em que o tema central passou completamente ao lado. Apesar de já ter sido publicado o livro Os Caminhos da Regionalização (4) em 2014, o poder, que já apresenta tiques de autismo, ignorou os seus co-autores, e convidou apenas pessoas alheias à problemática ou suas opositoras. Pois, como era de esperar, o objectivo era matar o próprio debate e enterrá-lo de vez com a ilusão do Municipalismo: debateu-se tudo e nada, fugindo ao tema da Regionalização como o diabo foge da cruz. 
      O MpD, que pretende ser poder, e a UCID, responderam desde o início positivamente ao apelo da Regionalização, ao passo que o PAICV, centralista, continua até hoje surdo e mudo e mesmo a emperrar a caminhada rumo às reformas de que Cabo Verde bem precisa. É de toda a evidência que os vícios do centralismo, cada vez mais a acumularem-se, e os lobbies políticos e económicos hoje instalados na capital, impedem a abordagem de tudo o que implique com o actual Status Quo, e desta forma a discussão em torno desta importante reforma se vê postergada ou por assim dizer esconjurada da cena nacional. A concretização desta reforma estrutural e crucial para Cabo Verde parece claramente atirada para as Calendas Gregas pelo sistema centralista, que continua a persistir alienadamente num modelo que debilita a saúde social, política e económica do país, não obstante a indignação crescente e generalizada a que vamos assistindo na nação cabo-verdiana, que cada vez mais se interroga sobre o seu futuro. 
Até quando?
José Fortes Lopes

1-Manisfesto para a Criação de um Movimento para a Regionalização de Cabo Verde
-http://peticaopublica.com/viewsignatures.aspx?pi=MOVIRECV
-http://www.forcv.com/opinions/manifesto-para-a-criacao-de-um-movimento-para-a-regionalizacao-de-cabo-verde/
2-As Novas Encruzilhadas de Cabo Verde: Autonomia para S. Vicente, Desenvolvimento Sustentável e Renovação da Democracia em C. Verde
http://www.forcv.com/opinions/as-novas-encruzilhadas-de-cabo-verde-autonomia-para-s-vicente-desenvolvimento-sustentavel-e-renovacao-da-democracia-em-c-verde/
3-MANIFESTO PARA UM S. VICENTE MELHOR 
 http://mindelosempre.blogspot.pt/2011/02/se-e-para-um-s-vicente-melhor-o-blogue.html
4-“Cabo Verde – Os Caminhos da Regionalização”
http://noticiasdonorte.publ.cv/25754/cabo-verde-os-caminhos-da-regionalizacao/