JOSÉ FORTES LOPES: Quando um filho de São Nicolau, Baltazar Lopes da Silva, poderia ter jogado um papel político proeminente no Cabo Verde do pós-25 de Abril e do pós Independência
Enquanto a verdade dos factos desse período histórico não vier a público, enquanto ela não for vertida em toda a sua transparência e plenitude e sobre ela não se tirarem as devidas ilações para a História, a reconciliação com o passado não se fará
Em primeiro lugar, começo por saudar o aparecimento do Jornal de São Nicolau (JSN), este novo jornal que escolheu a sua sede numa ilha que foi no passado um viveiro intelectual de Cabo Verde mas que hoje é uma das que sofrem o ónus da periferia, votada ao esquecimento. O JSN cai assim a pique em pleno debate sobre Desconcentração, Descentralização e Regionalização, pelo que poderá ser uma oportunidade para que a sociedade civil saniculaense participe no debate sobre estas problemáticas.
São Nicolau foi no passado uma ilha central em Cabo Verde, possuindo uma sociedade bastante refinada e dotada de uma inteligentzia que deu as suas cartas em todas as áreas. Esta ilha pode renascer das suas cinzas se novos ventos em Cabo Verde começarem a soprar rumo ao Norte e se as populações tomarem conta do seu próprio destino.
S. Vicente no seu auge recebeu a fina flor de São Nicolau que veio enriquecer a ilha e constituir um dos pilares da sua elite social: eram profissionais liberais, comerciantes, shipchandlers, funcionários, etc. Nunca é demais recordar que o autor do livro Chiquinho, o Dr. Baltazar Lopes da Silva (BLS), considerado um dos mais ilustres homens que Cabo Verde produziu, era originário de São Nicolau. BLS era uma referência de dignidade e de hombridade. Embora não almejasse no seu curriculum a realização de proezas espetaculares, foi considerado um resistente antifascista durante toda a sua vida, e como escritor lançou as bases para a afirmação do sentimento de cabo-verdianidade. Foi pois um dos homens que pela sua atitude e postura mudou o rumo de Cabo Verde.
Tivesse o destino destas ilhas sido diferente, BLS poderia ter jogado um papel político proeminente no Cabo Verde do pós-25 de Abril e do pós-Independência, e teria marcado com letras de ouro a história do país. Na realidade, se a história tivesse sido escrita de outra maneira, BLS teria jogado o mesmo papel que Mário Soares, Sá Carneiro, Freitas do Amaral ou outros centristas de esquerda jogaram no pós-25 de Abril em Portugal, neutralizando as derivas esquerdistas e impedindo a implantação de um regime de partido único. Provavelmente este papel coube à ala moderada do PAIGC, Aristides Pereira, pessoa tida por muito moderada ou mesmo ao Pedro Pires, mas isto nunca saberemos, provavelmente, pois toda a fase em questão é tabu e envolta em misticismo pela actual elite do país, tão grave é o problema na presente conjuntura democrática.
Teríamos poupado tempo e dinheiro para chegarmos pelo menos ao ponto em que estamos. Os dirigentes do então PAIGC ainda vivos não podem negar estes factos, que estão documentados, pois foram logo à partida acusados pela oposição das piores intenções, de quererem instaurar um regime totalitário de partido único, facto que sempre negaram durante a fase anterior à ascensão do PAIGC em Cabo Verde e a sua tomada do poder. Hoje, só podemos culpar Salazar e o regime do Estado Novo pelo atraso político em que mergulhou tanto a antiga metrópole como a sua colónia, ao não permitir o aparecimento de uma classe política autóctone e autónoma de Lisboa, que pudesse constituir as bases de um futuro de governo cabo-verdiano esclarecido. Nomear governadores para gerir a colónia seria solução mais fácil para a metrópole, mas mais custosa para a colónia, pois não permitiu a criação de condições para a eclosão de uma opinião pública e a gestação de partidos políticos e um amadurecimento político. Esta situação ficou mais do que evidente com o vazio político ocorrido no pós-25 de Abril.
Mas o que é que se podia esperar de um regime ditatorial como era o Estado Novo? BLS tinha toda a dimensão, estofo e prestígio em Cabo Verde para cumprir uma missão superior para o país no pós-25 de Abril, se diversos factores e agentes externos não viessem perturbar a já complicada equação política que se vivia no arquipélago. Infelizmente, nesse tempo conturbado BLS quase que foi atirado para o Lixo da História ou para o Mar, na medida em que a atitude e as palavras de bom senso deste intelectual e pensador caíram mal ou soaram desafinadas com a música desse tempo. O discurso de 1 de Maio de 1974, na varanda dos paços da Câmara Municipal de S. Vicente, embora muito aclamado pela população, ao excluir mensagens revolucionárias, não terá sido recebido com entusiasmo pelo PAIGC, passando assim para o esquecimento da história. BLS, apesar da sua majestosa Claridade, estava ‘demodé’ num clima revolucionário ou insurrecional nascente.
A elite revolucionária de então, constituída por uma esquerda caviar, frescamente desembarcada de Lisboa e à qual se juntaram alguns combatentes da guerra da Guiné, pretendia ter superioridade intelectual sobre os autóctones. Considerava-se em primazia no movimento da história e agitava o estandarte de uma teoria e de uma dialéctica revolucionárias imbatíveis. O pós-25 de Abril revelou assim em BLS, aos olhos do poder nascente, um homem conservador, reaccionário, que passou para o campo dos ‘ inimigos do povo’ ou ‘catchor de dos pé”, o pior insulto que se podia fazer a uma pessoa nesse período.
BLS, tendo em conta o seu perfil, a sua formação humanista e o seu passado, não podia, pois, encaixar-se no novo discurso, nem no contexto político revolucionário de S. Vicente e pactuar com atitudes extremistas, perpetuadas na ilha em nome do PAIGC. Teve, portanto, a coragem de se juntar à oposição, tornando-se assim aos olhos do regime (que já se considerava dono de Cabo Verde e da consciência do povo, um regime que se dizia do povo, pelo povo e para o povo), um opositor e reaccionário. Inclusivamente, BLS será acusado de ter participado com outros elementos numa intentona anti-PAIGC em S. Vicente para derrubar o recém-nascido regime, facto de que nunca se provou a veracidade, mas que deu o pretexto para se desencadear uma grande vaga de repressão na ilha, culminando na prisão de vários opositores ao regime e o início do silenciamento definitivo da ilha.
Foi o ‘coup de grace’ e a partir daí a população começou a temer o ‘partido’, o PAIGC estava assim a encenar um filme já passado em todos os regimes revolucionários: o endurecimento de um regime recém-nascido. BLS foi assim vilipendiado e posto em prisão domiciliária com todos os seus passos vigiados. Esta é uma verdade dolorosa para muitos que hoje incensam o homem em simpósios e conferências merecidos. É claro que nem todo o PAIGC esteve envolvido nesta vaga de fundo revolucionária, imparável e quase que incontrolável. Todavia, tendo o PAIGC/CV assumido as rédeas do poder total e discricionário em Cabo Verde, tem de arcar com toda a responsabilidade das derrapagens ocorridas e dos eventuais crimes cometidos durante este processo.
O governo português não assumiu todas as suas responsabilidades como potência administrante e colonial, que exigiam o assegurar de uma transição democrática do arquipélago para a independência. Curiosamente, os combatentes do PAIGC já instalados em Cabo Verde representavam a facção conservadora deste partido, sendo ultrapassados pela esquerda teórica e revolucionária. Esta postura de maior maturidade política, resulta das suas vivências noutras realidades políticas pelo mundo fora, quando os jovens revolucionários formados em Lisboa não conheciam em geral outras realidades para além da portuguesa. É um facto inegável que o PAIGC tinha homens com postura humana e de estado, e estou a referir-me a personalidades como os defuntos ex-Presidente Aristides Pereira e Abílio Duarte, e mesmo o ex-Presidente Pedro Pires, sem contar com Amílcar Cabral, um intelectual e pan-africanista de dimensão e renome mundial.
Hoje, os partidos herdeiros do PAIGC, o PAICV e o MPD, passados quase 40 anos do 25 de Abril ou da data da Independência, que se tornaram partidos do poder em regime democrático formalmente consolidado, deveriam assumir os passivos e os activos desta herança. Devem pois um pedido de desculpas formal, embora póstuma, ao grande homem que foi BLS e a todos aqueles que foram injustamente perseguidos pelas suas opiniões políticas ou que comungavam ideias diferentes sobre o futuro de Cabo Verde, pois ninguém deve ser jamais perseguido por pensar o país de outra maneira. Pois enquanto a verdade dos factos desse período histórico não vier a público, enquanto ela não for vertida em toda a sua transparência e plenitude e sobre ela não se tirarem as devidas ilações para a História, a reconciliação com o passado não se fará. Enquanto isto não acontecer, chocará sempre assistir a ladainhas ou romarias feitas em nome de BLS e de outros, em actos puramente representativos e por isso corroídos da mais descarada hipocrisia. Neste contexto, a reabilitação do Dr. Adriano Duarte Silva torna-se um imperativo, este outro grande protagonista da história de Cabo Verde, um homem que embora tenha sido deputado no tempo do Estado Novo, os factos provam que deu tudo para melhorar a condição do povo de Cabo Verde, ao pleitear com desassombro na Assembleia Nacional portuguesa justas reivindicações em prol da dignidade e do desenvolvimento da então colónia.
Nunca se saberá o que terá pensado BLS do regime implantado em Cabo Verde e qual o projecto de sociedade que ele pensava, mas de certeza seria bem diferente do projecto colectivista e centralista montado pelo PAIGC. Como seria Cabo Verde se a história tivesse sido escrita de outra maneira e por outros protagonistas, onde homens do calibre de Baltazar vingassem no pós-25 de Abril? Seria talvez mais próximo das ideias da UDC (partido acusado de neo-colonialista) ou da UCID, partido com o qual terá tido contactos políticos? Seria social-democrata, democrata cristão ou socialista moderado?

EM CABO VERDE, DIFICILMENTE AS COISAS TERIAM SIDO DIFERENTES POIS A POLITICA DA DESCOLONIZAÇÃO PORTUGUESA, NAQUELA ALTURA, ESGOTAVA-SE NA ENTREGA DO PODER NAS EX-COLÓNIAS AOS PARTIDOS CANOTADOS COM O COMUNISMO INTERNACIONALISTA, COM OS TRISTES RESULATOD QUE SE CONHECEM, INCLUSIVE EM CABO-VERDE, CUJA HISTÓRIA DO PÓS-INMDEPENDENCIA AINDA NÃO FOI CONTADA COM TOTAL DESASOMBRO E SEM RECEIOS DO POLITICAMENTE INCORRECTO...
ResponderEliminarDE DESCULPAS TAMBÉM EU ESPERO, DESDE 1977...
Mantenha,
Zito Azevedo
Zito os tempos mudaram.
ResponderEliminarHoje começamos a saber como as narrativas se constroem, vem ao lume muita coisa que estava encoberta. A reconciliação com o passado deve ser feita de maneira clara e transparente para se poder avançar. O jogo de gato e rato com a verdade só pode levar a impasses pois a realidade não pode ser construída na mentira ou na omissão.