JOSÉ FORTES LOPES: Pensando Cabo Verde de outra maneira - Quando as Reformas Democráticas e o Conceito Plural de Cabo Verde deram razão a Baltazar Lopes da Silva
Cabo Verde não pode ser democracia, com tudo o que ela tem de substantivo na sua essência libertária, enquanto vigorar o Centralismo, pelo que esta herança tem de ser diluída numa democracia renovada que se baseie não somente na aritmética eleitoral, mas, sobretudo, tenha também em conta o papel de cada de ilha no concerto do país e do seu desenvolvimento
É um facto inegável que Baltazar Lopes da Silva (BLS) e tantos outros companheiros seus que pensavam Cabo Verde diferentemente, tentaram mudar, antes e depois da sua Independência, os acontecimentos e rumo que levava o país. BLS perdeu essas batalhas mas não ficou definitivamente derrotado e hoje retomam-se muitas questões anteriormente sufocadas.
Pois é um facto inegável, embora pretenderem o contrário, o PAIGC encontrou em Cabo Verde núcleos de um Estado organizado: as estruturas administrativas estavam montadas e bem oleadas, havia pessoal cabo-verdiano bem qualificado para a época em toda a cadeia administrativa do arquipélago, sem contar com os expatriados. Assim, a tese niilista que pretende Cabo Verde ter partido do zero não é verdadeira. Os cabo-verdianos participaram com bastante zelo na administração do vasto território colonial português, o que é prova mais do que suficiente que teriam maturidade suficiente para constituir uma sociedade civil e política avançada, plural e democrática num Cabo Verde independente. É claro que o terramoto seguido de tsunami provocado pelo 25 de Abril em todo Império português, e a entrada do PAIGC no arquipélago, a tomada em S. Vicente nos finais de 1974 da Rádio Barlavento, seguida de desacatos, e o silenciamento definitivo da oposição, com a prisão de várias pessoas que se opunham ao PAIGC, terão provocado uma certa desorientação e pânico e levado ao exílio nos quadros valiosos e uma boa elite, pois seriam pouco prováveis a sua permanência no arquipélago ou um eventual retorno posterior da Diáspora, mesmo num quadro pluralista.
Assim nasceu o novo Cabo Verde e um país de Homens Novos. A pergunta que se coloca é se os outros cabo-verdianos, residentes em Cabo Verde e espalhados pelo vasto império português e pelo mundo fora, não estariam em condições de participar na construção do país assumindo com outras formações as rédeas de um Cabo Verde independente.Também não é plausível a tese que afirma que a única via para Cabo Verde em 1975 era o monopartidarismo, pois outros países recém-independentes provaram o contrário, não seguiram essa via, visto que ganhar soberania é um assunto totalmente diferente da natureza do regime a implantar num novo estado. Esta tese usada exclusivamente para legitimar a natureza do regime implantado, liderado por um único partido, é pois falaciosa.
É claro que não seria fácil uma convivência com o PAIGC, um partido que aspirava e reclamava o poder total e absoluto. Mas aceitar viver num sistema de monolitismo monopartidário e doutrinário e ficar subalterno ou sujeito aos vexames ou às ameaças de um regime todo-poderoso, parecia pouco provável. Cabo Verde ganhou assim a independência numa situação de plena guerra fria, tendo à frente do seu destino o PAIGC, um partido único de obediência marxista e pan-africanista, na linha do pensamento de Amilcar Cabral. Todavia, no PAIGC duas tendência estavam em confronto: uma tendência africana e uma mais pró-europeia.
A tendência africana era composta por militantes e guerrilheiros da luta armada ou na clandestinidade, com a linha do poder oscilando entre um regime africano de esquerda (do estilo Sekou Touré) e um regime africano moderado (do estilo Senghor), mas cujo objectivo, (não obstante as denúncias da oposição e os desmentidos do PAIGC) seria a instalação pura e simples de um verdadeiro regime de tipo africano, tal como se praticava em todo o continente africano nos anos 60/70. É preciso recordar que toda a formatação ideológica do PAIGC se realizou nas matas da Guiné em situação de guerra ou em países de regime monopartidário socialista e centralista.
A tendência pró-europeia ou ocidental deste partido estava ligada à esquerda radical europeia, composta pela pequena burguesia estudantil ou recém-formada, englobando trotskistas, maoistas, comunistas moderados ou marxistas em geral de cultura portuguesa. Estes pretendiam a instauração de uma democracia popular de tipo europeu, sem africanismos, ou seja um nacionalismo cabo-verdiano de esquerda à europeia.
Assim, Cabo Verde, propriamente dito, estava em 1974 dividido em dois campos, com duas visões opostas do país: de um lado, o campo nacionalista, com uma visão que variava entre um socialismo africano e um socialismo puro, e de outro lado, um campo com uma visão mais conservadora, composta por uma ala nacionalista conservadora que reclamava o apoio e a supervisão das Nações Unidas e uma outra ala mais atlantista que pretendia uma autonomia alargada no quadro de Portugal, com um estatuto similar ao Açores ou à Madeira.
O PAIGC, não tendo sido confrontado com uma oposição partidária, tirando a fase de conquista do poder em 1974, não se sabe qual seria a atitude deste partido se tivesse sido confrontado com uma situação multipartidária e tivesse que conviver com outros partidos. Uma coisa é certa com as pretensões hegemónicas do PAIGC e mais tarde PAICV a situação não duraria muito tempo. É preciso lembrar que em 1974/75 o PAIGC não tinha a tal implantação que se pretende e que hoje, já todo-poderoso em Cabo Verde, alega tê-la tido, mas a verdade é que não era conhecido da população.
Assim, ao pretender o monopartidarismo como única solução para Cabo Verde, o PAIGC passou um atestado de menoridade aos cabo-verdianos e ignorou por completo a rejeição orgânica que era iniludível em todo o corpo social. De resto, a História viria a demonstrar o quão errado foi o caminho seguido. Por outro lado, o colectivismo, que se baseou na estatização total da economia, consistindo na reciclagem e na total dependência da ajuda externa, foi outro erro crasso que deixou sequelas indeléveis na economia do país.
A economia tradicional e toda uma classe comercial tradicional desapareceram, sendo substituídos pela economia do Estado e uma economia subterrânea informal e ilegal, antes inexistente no arquipélago, constituída por uma classe, dita de ‘rabidantes’, que não paga impostos. Esta situação teve reflexos importantes na economia das principais ilhas, como S. Vicente e Santiago, pois destruiu o comércio, uma das poucas actividades económicas existentes no arquipélago, transformando o Estado numa entidade toda-poderosa que abarca tudo e todos. O Estado tornou-se simultaneamente patrão, empresário e sindicato.
Embora se perceba a criação de inúmeras empresas do Estado, para gestão dos stocks da ajuda internacional indispensável para a sobrevivência do país, em consequência da brusca ruptura dos laços económicos com a potência colonial, esta política tem ainda hoje reflexos e resultados desastrosos, pois as empresas do Estado resultantes estão em situação periclitante ou deficitária, por má gestão política, ou por serem, sobretudo, ninhos ou nichos partidários. Na realidade, a estatização da economia criou mais dependência na população e instaurou uma mentalidade de assistência total da economia, criando uma percepção no país de que a salvação viria sempre do exterior.
Portanto, podemos concluir que o monopartidarismo foi a escolha mais infeliz para Cabo Verde em 1975 e que teve consequências que hoje estamos a pagar. Não tivesse sido a Perestroika de Gorbatchov que deu um abanão aos sistemas de partido único, este regime ainda hoje estaria provavelmente vigente no país. Não acredito que os homens do calibre de BLS tivessem criado um regime centralista democrático, uma vez que estava excluído dos seus horizontes um sistema de partido único. Este regime resulta de uma construção e concepção ideológica autoritária, que não correspondia à formação dele, e nem se coadunava certamente com a sua visão do mundo. A construção de um estado monolítico, doutrinário, centralista e autoritário resulta de uma longa história, de uma maturação política prolongada, só possível através de um partido com uma visão leninista do poder e com homens forjados nesta ideologia durante muito tempo. Para perceber a questão actual do Centralismo e a problemática da Regionalização, temos, pois, que recuar no tempo para perceber que o Centralismo actual é uma herança do Centralismo Democrático autoritário implantado em Cabo Verde em 1975, e hoje integrado num sistema democrático por partidos que ainda não fizeram a sua completa reconversão aos valores democráticos, situação que cria disfuncionamentos na sociedade e dependências sociais típicas de regimes ditatoriais.
Cabo Verde não pode ser democracia, com tudo o que ela tem de substantivo na sua essência libertária, enquanto vigorar o Centralismo, pelo que esta herança tem de ser diluída numa democracia renovada que se baseie não somente na aritmética eleitoral, mas, sobretudo, tenha também em conta o papel de cada de ilha no concerto do país e do seu desenvolvimento. O conjunto de pacotes de Reformas (Regionalização, Descentralização, Reforma do Estado) corresponde pois ao preencher de uma lacuna deixada no processo evolutivo político e social por que passou Cabo Verde. Será um processo de normalização de Cabo Verde, o virar da página e o saldar de uma dívida com o passado, a reconciliação com esse passado, e o estabelecimento de um marco para uma nova partida. A regionalização não poderá ser encarada como uma dádiva de um regime, nem uma ideia saída da cabeça de alguns iluminados. Ela resulta de uma constatação óbvia, um direito inalienável das populações de Cabo Verde, sonegado durante tempo demais, mas inscrito na diversidade geográfica e cultural própria deste arquipélago. Mas a Regionalização não será a panaceia para os problemas bicudos que Cabo Verde enfrenta. Se ela for encarada como um fim em si (do estilo tomem lá gente de S. Vicente ou de outras ilhas e ‘deixem-nos em paz’, como algumas pessoas têm pretendido), então será um exercício inútil. Se ela for um mero exercício de política interna, ela parirá de certeza um rato, e então constituirá outro logro para com o povo de Cabo Verde. Todo um conjunto de Reformas deve vir associado à Regionalização, e o repensar de Cabo Verde, como os franceses dizem, ‘de fond en comble’, deve ser uma prioridade. Como escrevi num outro artigo, Cabo Verde precisa, todavia, de sair do ciclo de estagnação política, social e económica e da dependência, e enveredar pela senda do progresso e da modernidade. Reformas democráticas são indispensáveis para dinamizar o seu sistema económico, produtivo, político e administrativo, preparando o país para os desafios do futuro. A convocação de Estados Gerais de Cabo Verde (envolvendo toda a classe política, a sociedade civil, a diáspora, os parceiros internacionais) para diagnosticar e debater os verdadeiros problemas do país e os caminhos para a sua sustentabilidade, numa perspectiva futura e a longo prazo, parece-me uma evidência. Mas uma agenda desta natureza exige amplos consensos e concertação política permanente, que o clima de radicalismo politico e de guerrinhas político-partidárias não propicia.
José Fortes Lopes |
jose.flopes@netcabo.pt

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