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segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

(6379) - SUBSIDIOS PARA A HISTÓRIA DE CABO VERDE (3)...

JOSÉ FORTES LOPES: Quando o PAIGC Achou/Redescobriu S. Vicente (I)

. Publicado em Opinião
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O Centralismo actual é uma herança do Centralismo autoritário implantado em Cabo Verde em 1975, e hoje integrado num sistema democrático constitucional por partidos que ainda não fizeram a sua completa reconversão aos valores democráticos, situação que vem criando disfunções na sociedade e dependências sociais típicas de regimes ‘democráticos totalitários’

Revisitando a história de Cabo Verde no período que precede a independência
Secção A - Do Monopartidarismo ao Centralismo
Neste artigo pretendo revisitar a história de Cabo Verde no período que precede a independência para melhor enquadrar a questão actual do Centralismo e de outros males que tanto atormentam o país. Para isso, tentarei recuar no tempo, para perceber como esta situação se instalou em Cabo Verde. Tentarei desmontar algumas ideias que desvalorizam o papel que a ilha de S. Vicente jogou na formação do Cabo Verde moderno e pré-independente e que sustentam que o estado em que a ilha se encontra não se deve a decisões políticas erradas, mas à sua incapacidade de se adaptar ao novo país independente. Para melhor clarificar o propósito deste artigo, aviso os leitores que não estabeleço uma ligação directa PAIGC-PAICV, dois partidos hoje bastante diferentes pela natureza e ideologia. A sigla PAIGC não se refere, pois, obrigatoriamente ao PAICV, partido ainda hoje considerado seu principal herdeiro do primeiro, mas estende-se também ao MPD, partido que pode ser também considerado herdeiro, na medida em que grande número dos seus principais dirigentes foram militantes e partilham, sem demérito nem juízo de valores, princípio e valores comuns. Também incluo muitos cabo-verdianos (incluindo o próprio autor) que, talvez, hoje não partilham as ideias do PAICV, ou não votam neste partido, mas um dia foram militantes ou simpatizantes da causa da independência, patrocinada pelo PAIGC.
Ao longo de 2014 e 2015, comemoram-se datas importantes na história recente de Cabo Verde, eventos que moldaram o seu futuro. Passarão praticamente 40 anos desde o 25 de Abril, data que marcou o fim da ditadura do Estado Novo e o início de uma nova para Portugal e para as ex-colónias, o renascer da esperança para uma época de liberdade, desenvolvimento e prosperidade. Este marco importante (40 anos) serve de referência entre o passado e o presente num momento em que o país se encontra numa encruzilhada de opções e alternativas para o seu futuro e S. Vicente analisa o seu passado (que parece já muito distante) para se interrogar sobre o possível nexo de causalidade entre ele e o presente ensombrado e as perspectivas de um futuro incerto.
Num momento em que se instala a crise generalizada (social, política, económica) no arquipélago e que a inquietação enche o espírito do cidadão mais consciente e avisado, muitos questionam sobre o que correu mal no passado, como e porquê, e quais poderiam ter sido as alternativas, as outras vias possíveis que o país poderia ter trilhado que permitiriam hoje às populações viverem em melhores condições socias políticas e económicas. Muitos começam a interrogar onde, como e por que se conjugaram as razões a as circunstâncias de estarmos em perda contínua de valores. Questionam-se os fundamentos da adopção do Centralismo, via castradora inexoravelmente seguida durante 40 anos que acabou por matar culturalmente e economicamente aquilo que era a principal e a mais dinâmica ilha do arquipélago, e cuja consequência foi não desenvolver harmoniosamente o país segundo as potencialidades e vocações de cada ilha ou Região. Muitos já perceberam que este rumo que está sendo traçado só acarreta uma irreversível concentração, descaracterização do país o aprofundamento das injustiças socias e regionais, mais estagnação para a periferia do país, pelo que se propõem mudanças profundas na organização e funcionamento do país.
Existem, hoje, teses, até provindas de pessoas ditas insuspeitas, que defendem que haveria um único caminho possível para Cabo Verde, o da inevitabilidade do poder político centralizado, e obviamente de uma ditadura, na construção do Estado. Estas teses são insustentáveis e só têm um único objectivo, o branqueamento do passado e a justificação dos erros cometidos, sendo hoje como amanhã inaceitáveis do ponto de vista conceptual, pois é claro que há sempre caminhos alternativos (é questão para perguntar se não havia alternativas ao Estado Novo). Aceitar tais teses corresponderia a passar uma esponja a um período de grande interesse histórico (197-1980), onde houve uma renhida luta política e divisões no seio da família cabo-verdiana (ocorridas tanto Diáspora como em Cabo Verde, nomeadamente em S. Vicente) sobre a natureza do regime a implantar em Cabo Verde e os caminhos que deveriam ser seguidos, ao mesmo tempo que invalidaria o combate de muitos para instauração da democracia. Seria desrespeitar a memória de tantos cabo-verdianos, hoje caídos no esquecimento, que lutaram por ideias diferentes para Cabo Verde.
Como já referi inúmeras vezes, o Centralismo actual é uma herança do Centralismo autoritário implantado em Cabo Verde em 1975, e hoje integrado num sistema democrático constitucional por partidos que ainda não fizeram a sua completa reconversão aos valores democráticos, situação que vem criando disfunções na sociedade e dependências sociais típicas de regimes ‘democráticos totalitários’.
Em particular, nos dois últimos artigos (em bibliografia), enalteci homens como Baltazar Lopes da Silva (BLS) e tantos outros companheiros seus que terão pensado Cabo Verde numa perspectiva diferente e tentaram organizar-se, à pressa e muito tarde, em força política, no intuito de mudar o rumo dos acontecimentos e o caminho que levava o país, pela percepção de que o futuro que se avizinhava seria pouco consentâneo com os valores democráticos em que possivelmente acreditavam. Muitos pretendem hoje que não havia alternativas ao sistema implantado, que tendo em conta os condicionalismos do país só havia uma via possível, a do monopartidarismo e do centralismo para ressarcir partes do país deixadas para traz. Todavia, se a História tivesse sido escrita de outra maneira, não acredito que tivesse vingado um regime centralista autoritário de partido único, nem este modelo de desenvolvimento que hoje nos coloca em situação de verdadeiro impasse num mundo globalizado e em transformação. Na realidade na altura muitos questionaram ou opuseram-se ao princípio de um sistema de partido único.
Com a legitimidade histórica ganha nas matas da Guiné, o PAIGC conquistou o reconhecimento e a consagração implícita, da parte das autoridades portuguesas, da sua condição de único representante do povo cabo-verdiano e interlocutor nas negociações sobre o futuro do arquipélago, ou seja a sua independência. Para o MFA, tendo o PAIGC saído vitorioso, pelo menos politicamente (e querendo despachar à pressa o problema colonial português, que se tornara uma dor de cabeça e fonte de contenciosos internacionais), aquele partido ganhou a legitimidade suficiente para representar o povo cabo-verdiano, pelo que merecia ser declarado como a única força política no arquipélago e assumir o poder absoluto em Cabo Verde. O PAIGC tinha uma longa experiência política e reconhecimento internacional, pelo que aos olhos das autoridades portuguesas estava minimamente organizado para assumir as rédeas da nova nação. Portugal saia de um golpe de estado que derrubou o regime salazarista que oprimia o seu próprio povo e os povos das colónias, regime que era acusado de ser o responsável pelo prolongamento de uma longa guerra desgastante e considerada injusta e inútil. O país estava em plena convulsão política, e embora sendo o último a ter uma questão colonial nos braços, não tinha uma doutrina amadurecida e consensual sobre a descolonização. Assim sendo, os movimentos de libertação, os responsáveis indirectos pela queda do regime ditatorial, ganharam por isso legitimidade acrescida. O governo português tinha assim perdido a face e a legitimidade nas colónias, pelo que estando enfraquecido em quaisquer negociações sobre o futuro das colónias, só podia ter de assumir os passivos da situação criada. Situação bem diferente teve a Inglaterra ou mesmo a França no processo de descolonização das suas principais colónias africanas (tirando obviamente o caso da Argélia). Portugal perdeu assim a legitimidade para negociar sequer uma possibilidade da instauração no arquipélago de uma democracia pluralista, um legado que poderia ter sido importante para o povo cabo-verdiano, pois teria evitado o actual atoleiro em que a democracia se encontra. É assim que eliminação pura e simples de núcleos de partidos em Cabo Verde e o abafamento de uma solução pluralista para Cabo Verde foram expedientes muito convenientes para todas as partes, mas um erro histórico cuja magnitude só hoje, com as ferramentas analíticas que dispomos, estamos a altura de avaliar. Do mesmo modo que se considerava que o povo cabo-verdiano tinha direito à autodeterminação, o mesmo povo tinha direito a viver em regime de democracia parlamentar, à luz dos princípios hoje considerados universais associados aos estados de direito democrático. Foi necessário esperar 15 anos e o concurso de circunstâncias internacionais excepcionais para acontecer e consumar-se o que a evidência sempre aconselhara. Cabo Verde vive hoje situações de crispação e intolerância política porque a sua democracia foi mais fruto de imposição exterior do que de uma gestação natural.
Tendo em conta a situação criada no arquipélago já antes de o país assumir a sua soberania, a oposição interna nascente foi declarada inimiga do povo e ilegítima e por isso enviada para o Tarrafal e depois para o seu exílio forçado. Desta forma, o partido que ascendeu ao poder sem oposição nem eleições abertas e credíveis transformou-se na própria fonte do poder e da sua legitimidade, autoproclamando-se como o partido dos melhores filhos da terra e consagrando-se assim o sistema de partido único. (continua)
José Fortes Lopes | jose.flopes@netcabo.pt

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