A Regionalização francesa (1980), um processo inspirador para Cabo Verde
Nota Introdutória: O objectivo deste artigo não é a defesa do modelo de
Regionalização francês nem de qualquer outro modelo, mas sim mostrar que o
processo que ocorreu neste país e a coragem dos líderes e principais actores
políticos da época foi escola e pode inspirar muitos outros países que
pretendem implementar esta Reforma.
Ao longo de todo século
XX ocorreu na então centralizada França um amplo debate (similar ao que ocorre hoje
em Cabo Verde) sobre e em torno da Regionalização. Este debate teve o seu
recrudescimento nos anos 60, quando o país, num momento em que, não obstante o
biombo ideológico entre esquerdas e direitas e entre conservadores e
reformistas, a regionalização se tinha tornado um conceito e um projecto transversal
a toda à sociedade e aos partidos franceses. Foi e ainda continuará a ser o
debate crucial da modernização de um país, pois a França adoptou uma estratégia
evolutiva da Regionalização, passou de um estádio básico para estádio bastante
sofisticado. Com
uma regionalização progressiva constituída por dois vectores ̶ a
Descentralização Institucional (Regionalização Política) e a Descentralização
Funcional (Regionalização Administrativa)
̶ a França
entrava na modernidade política, tornando-se num país descentralizado, e juntava-se assim ao clube vanguardista da
Europa, onde figuravam a Alemanha, a Suíça, a Bélgica, etc, e a outros no mundo.
Com a queda do franquismo e a modernização da Espanha, este país
descentralizou-se adoptando uma Regionalização tipo federal denominada
Autonomia.
A França desburocratizou-se e descentralizou-se
consideravelmente ao longo de cerca de 25 anos de Regionalização, desde o seu
lançamento em 1980, e é considerada hoje um país regionalizado com uma
governança moderna, a vários níveis (Estado, Região, Departamentos, Municípios,
e Comunas) governada através de uma complexa e sinergética parceria entre o
Estado e essas coletividades territoriais, caracterizada por: poderes descentralizados
e a transferência de competências para todos os níveis do poder: os municípios,
‘os departamentos’ (sub-regiões) e as regiões. Convinha observar que
contrariamente aos restantes países de referência a França continua a ter um
Estado Central poderoso, mas flexibilizado ao ponto de partilhar poderes e
soberania com as colectividades territoriais.
No início nos anos
60 do Século XX a história francesa teve uma brusca aceleração com a iniciativa
descentralizadora de De Gaule, que infelizmente para este protagonista só seria
concretizada 20 anos mais tarde pelo Presidente socialista François Mitterand
(1980-1994). Antes desta reforma (1981), a França era dos estados mais
centralizados da Europa e do mundo, e considerava-se a filha primogénita da
revolução francesa de 1789, a herdeira perfeita do estado centralista
napoleónico. Embora se autodefinisse como um Estado-nação (conceito também saído
da revolução francesa e refinado por Napoleão, que definia a « república
una e indivisível »), era um estado ‘monárquico’ todo-poderoso totalmente
centralizado, dividido em províncias, ao gosto das elites parisienses que
desfrutavam das vantagens e das facilidades de concentração dos recursos e poderes
num curto espaço e tempo (Paris), mas não das populações provinciais. Como se
sabe, o país formado da fusão de reinos continha na realidade os germes de
várias nacionalidades. Para termos uma ideia da situação centralizada da França
e do problema que essa mesma situação criava num país formado por territórios
com forte identidade regional, nada melhor que ler os textos do geógrafo
político André Siegfried escritos em 1913 sobre a sua organização
administrativa e política: ‘Na Bretanha (região francesa), o Estado é o Deus
ex-máquina, a cuja intervenção soberana se recorre logo que uma pequena
qualquer dificuldade surge; dispensa um manancial de subvenções e subsídios e
socorros, é o árbitro chamado ao mínimo sinal de conflito, é o protector dos
ricos e dos pobres, e fornecedor do dinheiro necessário para o sistema
funcionar’. Já Jack Hayward opõe em França uma regionalização organizada a
partir do centro do poder a uma regionalização cujo objectivo é realizar uma
autonomia autêntica da periferia, defendendo que os franceses fingem ignorar
que a França é um país multinacional ao qual se sobrepôs um Estado unitário,
situação incorporada mas não completamente digerida pela periferia do país. Neste
contexto, Ezra Suleiman define as elites administrativas francesas da época, de
esquerda ou de direita, como imperialistas e tentaculares, e irremediavelmente
votadas ao centralismo. Segundo ela, a razão pela qual as elites eram
fundamentalmente opostas a uma participação das populações e a uma verdadeira
descentralização da França, não se prendia tanto a uma ideologia jacobina
centralista (revolucionária ou herdeira da revolução francesa) mas sim ao facto
de a descentralização lesar, à primeira vista, os seus interesses fundamentais
e as suas situações pessoais. Para Pierre Grémion, ‘O paradoxo do centralismo é que o poder central omnipresente é na
realidade um poder fraco. A omnipresença do Estado central não garante a sua
omnipotência pois o centralismo é minado pelos poderes paralelos que se
desenvolvem nas periferias e no centro’.
Foi de Gaulle, um
grande homem de estado do século XX, dotado de uma forte personalidade, quem
percebeu que o centralismo da França, herdado do estado jacobino napoleónico
construído após a revolução francesa, já não era sustentável para um país que
se queria modernizar politicamente e administrativamente. O centralismo francês
constituía já um emperramento ao desenvolvimento da França, tanto do ponto de
vista absoluto como comparado com o país vizinho, rival e principal parceiro, a
Alemanha calvinista, reformista. Este país já possuía um dos modelos mais
avançados de desburocratização e descentralização na Europa, e este modelo poderia
talvez ser uma das chaves do sucesso alemão. Tal como a França tinha as suas
regiões naturais (La Région), a Alemanha tinha os seus Landers, mas a França do
ponto de vista organizativo ficava muito atrás, pois não reconhecia
politicamente as regiões e era um estado centralizado e burocratizado, que
emperrava a sua economia tornando-a talvez menos competitiva em relação à da Alemanha.
De Gaulle resolveu vencer o conformismo, quebrar as resistências da sociedade francesa,
a França ‘dos velhos notáveis senadores e da classe política conservadora’, bater-se
pela modernização administrativa e política da França. Este combate não se
anunciava fácil pois a influência das poderosas forças conservadoras adversas a
qualquer mudança e modernização administrativa dos país era muito grande em
França. Os opositores criaram cizânia na opinião pública, acusando falsamente os
reformistas de desígnios subversivos e fautores de cessação. Hoje sabemos que estas acusações eram
infundadas, revestiam essencialmente um carácter reaccionário. Num discurso em Lyon, de Março 1968, de Gaulle afirmou que o esforço multisecular da centralização da
França não se impunha mais, e que o desenvolvimento regional fornecia o poder
económico necessário para o desenvolvimento das regiões, sem ameaçar a Unidade
do Estado Francês. Esta visão revelou-se justa. Todavia, a sociedade francesa ainda não estava preparada para a
visão do seu líder. Para além disso, de Gaulle cometeu um erro fatal, que
constituiu em referendar em 1969 uma reforma desta amplitude, num país que
estava ainda sob o peso de conservadorismo e dominado por elites e forças antagónicas
à menor reforma administrativa. Embora tivesse o apoio maioritário da opinião
pública, como atestam os registos das sondagens, a reforma gaulista estava
assim fadada ao fracasso. Os medos propalados no país e a cumplicidade dos
grupos de interesse e das elites instaladas tiveram a última palavra. O velho
general, derrotado, como grande democrata que era tirou as devidas ilações da
derrota e abandonou o poder. Todavia, esta reforma tinha um forte apoio da
oposição socialista, que soube transformar o projecto de De Gaule numa bandeira
da campanha de 1980 e lançar um grande debate sobre a modernização da França
logo após a vitória da esquerda. Coube a Miterrand, candidato a presidente da
república francesa, incluir nas suas 100 propostas presidenciais a
Regionalização como uma das reformas basilares do seu septenato, na sua visão
reformista para a França. A importância desta reforma foi tal que ela tornou-se
o ‘Grande Affaire’ do seu mandato,
como se dizia então. Hoje constitui, sem
dúvida, uma das grandes heranças do seu governo e é reconhecida como uma das
maiores reformas jamais empreendidas em França no século XX.
É com a vitória
presidencial em Maio de 1980 de Miterrand e a enorme legitimidade adquirida
pela maioria socialista, que o novo presidente confia ao seu 1º Ministro Pierre
Mauroy a preparação de um projecto de lei que incluía um pacote de Grandes Reformas
do Estado para a Modernização do país. Aprendida a lição da derrota gaulista, o
poder socialista teve o bom senso de aprovar a reforma por via legislativa
parlamentar, não obstante a forte oposição da direita francesa conservadora. Na
defesa do projeto
de lei, Gaston Defferre, o então ministro de Interior,
amigo de velha data do presidente e um dos dirigentes da ala moderada
socialista, declarou (Le Monde, 10 junho 1980) : « A centralização tal como existe actualmente
em França constitui uma forma de governo, uma estrutura de organização política
arcaica, paralisante, ultrapassada, que não responde às exigências da vida
moderna e da competitividade entre as nações evoluídas ». « A descentralização (…) suprimirá
serviços ministeriais parisienses que terão, repito, que fechar as portas. Sem
isso, nunca, jamais, ocorrerá a verdadeira descentralização. Pois enquanto
estes serviços funcionarem monopolizarão os “dossiers”, e um dossier qualquer enviado para Paris para
se decidir corresponde a uma tutela maior, tempo perdido e dinheiro gasto. Ora,
é isto que o governo actual não quer mais. Não
queremos mais exercer tutela sobre as colectividades eleitas ». Votada na generalidade pela Assembleia Nacional francesa em Agosto 1981,
“As Grandes leis da Descentralização” intituladas « Leis Relativas aos Direitos e Liberdades das Comunas,
Departamentos e Regiões »,
a França estava, assim, lançada em 1981 na
via da sua modernização administrativa e política. Todavia, este processo de
Regionalização não foi levado até o seu termo e a Regionalização teve que
evoluir durante 25 anos, pois os bloqueios internos no país resistiam sempre às
reformas. A França metropolitana regionalizada e descentralizada continua a ser um Estado unitário, não Federal, compreendendo 4 níveis
de descentralização através de colectividades territoriais e locais. Conta com 27 Regiões, incluindo
a Córsega (embora
este tenha hoje um estatuto de Autonomia especial). Cada região contém várias sub-regiões
( denominados ‘Departaments’), cada uma subdividida em vários ‘Arrondissement’’, os mesmo divididos em micro-estruturas administrativas, os ‘cantons’
e as comunas . Assim para além da 27
Regiões, a França contem no total de 101 sub-regiões (‘Departaments’), 342
‘Arrondissement’’, 4055 ‘cantons’ e
36680 comunas. Os Municípios em França não estão contabilizados nesta rede
administrativa pois referem-se ao espaço das cidades capitais (em geral de
Departamentos), portanto áreas delimitadas e reduzidas, pelo que é abusivo
confundir Regionalização com Municipalismo. Acresce-se ainda a esta estrutura um
grande número de territórios autónomos do chamado Ultramar francês.
A França mostrou que o processo de Renionalização não é um
processo acabado mas sim progressivo. Este país tem vindo a aperfeiçoar a sua
Regionalização, com leis sucessivas, ao ponto de hoje o país, do ponto de vista
de descentralização, se aproximar cada vez mais dos seus países vizinhos,
nomeadamente a Alemanha, que é sempre e em tudo, o seu modelo de referência. É assim que sucessivos governos franceses têm tido diferentes agendas
políticas de reformas no sentido de uma maior descentralização do Estado (2002,
2004, 2012). Ao longo dos 25 anos de progressos na Regionalização, concedeu-se
a autonomia à Córsega e ao Ultramar francês, atribuiu-se a autonomia financeira
e fiscal às regiões (a chamada reforma estrutural da fiscalidade local), permitindo-lhes
financiarem-se directamente a partir dos impostos cobrados localmente. Instaurou-se
o referendo local e regional e implementou-se a Carta Europeia das Autonomias Locais que consagra
definitivamente os direitos das colectividades, as suas competências e a alocação
de recursos financeiros às mesmas. Por fim, a revisão constitucional de 2010
sobre a Descentralização e a Regionalização, constituindo um grande avanço em
todo o processo e consagrando transferência de competências e de estruturas
para as colectividades locais. O actual presidente François Hollande defendeu, enquanto candidato, uma
nova vaga de descentralização, tendo já entre mãos
um vasto estudo sobre a nova Reforma do estado francês. Com a Regionalização conseguiu a França continuar a ser um Estado unitário (não Federal) forte, ao mesmo tempo dotado de níveis de regionalização e descentralização importantes. O melhor dos dois mundos terá sido
conseguido?!
José
Fortes Lopes
PS: Este artigo
constitui o pano de fundo para um próximo em defesa do modelo de
Regionalização Política que considero mais adaptado à situação actual e à realidade
arquipelágica de Cabo Verde, e que possa dinamizar as ilhas periféricas do país.
Talvez uma nova esperança para Cabo Verde poderá ressurgir no horizonte!
2-Les socialistes et la régionalisation sous la Vème République (1958-2009).http://www.revuesocialiste.fr/2010/02/16/les-socialistes-et-la-regionalisation-sous-la-veme-republique-1958-2009/4/
3- Pierre Grémion, Le Pouvoir périphérique : bureaucrates et notables dans le système politique français, Paris, Ed. du Seuil, 1976, pp. 285-286, cf. pp. 248 et 304.
4-http://www.vie-publique.fr/decouverte-institutions/institutions/collectivites-territoriales/principes-collectivites-territoriales/qu-est-ce-que-decentralisation.html
5-http://www.revue-pouvoirs.fr/IMG/pdf/Pouvoirs19_p103-118_peripherie.pdf
6-http://fr.wikipedia.org/wiki/D%C3%A9centralisation_en_France
7-Regional Government in France & Spain. http://www.ucl.ac.uk/spp/publications/unit-publications/64.pdf
8-The Spanish 'state of autonomies': Non-institutional federalismhttp://dcpis.upf.edu/~raimundo-viejo/docencia/chicago/Colomer.pdf
9-On the Reform of the Statute of Autonomy of Catalonia.http://www.parlament.cat/porteso/estatut/estatut_angles_100506.pdf
10- http://arvha.org/sitescd/leo1_abstract/francais/france/pays/administ/adminis.htm
11- http://fr.wikipedia.org/wiki/Administration_territoriale_de_la_France
12-Regionalism after regionalisation: Regional identities, political space and political mobilisation in Galicia, Brittany and Wales. AAG Pre-Conference at the University of Colorado at Boulder, CO.
April 3–5, 2005. http://www.colorado.edu/ibs/aagpreconference/papers/Schrijver_paper.pdf
13-Regionalism After Regionalisation: Spain, France and the United Kingd., Amsterdam University Press, 2006
14-http://siaiweb06.univali.br/seer/index.php/nej/article/viewFile/1620/1326
15-The New Regionalism in Western Europe: Territorial Restructuring and Political Change, Edward Elgar Publisher, 2000
16-Hans-Jürgen Puhle, Regions, Regionalism, and Regionalization in 20th-Century Europe, http://www.oslo2000.uio.no/program/papers/s9/s9-puhle.pdf
16-THE ECONOMIC ASPECT OF REGIONALIZATION OF EUROPEAN COUNTRIES
http://www.doiserbia.nb.rs/img/doi/0350-7599/2012/0350-75991201031V.pdf
17-Regionalisation and Globalisation, conflicting or linked processes?
http://europeanista.wordpress.com/2012/04/29/regionalisation-and-globalisation-conflicting-or-linked-processes/
18-Martin W. Lewis on September 1, 2010The Nation, Nationalities, and Autonomous Regions in Spain Source: http://www.geocurrents.info/geopolitics/the-nation-nationalities-and-autonomous-regions-in-spain#ixzz2p9Ybk9JS
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