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domingo, 2 de março de 2014

[5704] - A VOZ DA RAZÃO...


       
        ALGUMAS IDEIAS ESPARSAS QUE BASTAS VEZES IRRITAM OS DETENTORES DO PODER
 
Não há dúvida de que quem lê vai consolidando o seu pensamento, alijando ideias ultrapassadas ou não confirmadas pelo tempo e a experiência, e aumenta os seus conhecimentos, hábito de leitura que, infelizmente, vem diminuindo nos tempos que correm de tanta sofisticação tecnológica informática dos meios de comunicação na base da imagem e do movimento, como a net, TV, cinema, jogos informáticos, etc.
Um velho ditado latino diz que as palavras leva-as o vento, e os escritos ficam, o que nem sempre é verdade, porque Jesus escreveu uma só vez, sobre a areia, não ficando nenhuma lembrança disso; todavia, os discípulos reproduziram a sua mensagem nos Evangelhos. Talvez seja esta – a de ter ouvintes e seguidores – uma das razões que me levam a continuar a intervir e a escrever, não me importando com aqueles que me atacam, tão solícitos e maneirosos com o Poder, untuosos e servis por receio e cálculo que se desfazem em curvaturas da espinha correndo riscos de ficarem corcundas. Consolo-me, também, com o facto de saber que só se atiram pedras às árvores que dão frutos… Os do poder deveriam ter em conta que a adulação é como uma baba viscosa da lesma, que conspurca por onde passa.
Tal como acontece no caso de uma pessoa, as recordações, o mesmo é dizer, a memória – aqui não me refiro unicamente à memória individual, incluo a colectiva – de uma nação á a base da sua identidade. É por isso que, geralmente, se considera que, sem uma historiografia rica e até polémica, o debate sobre as características nacionais é uma imbecilidade. Sem memória, uma pessoa deixa de o ser. Sem memória, uma nação não existe, ou só existe com base em mitos. É pois justo e equitativo render homenagem à memória, tanto individual quanto colectiva, particularmente a colectiva nacional.
Estão mesmo a suspeitar, ou a ver aonde quero chegar: a destruição de muito património nosso, oficial e oficioso, tanto em S. Vicente como noutras ilhas, destruições que descaracterizam essas ilhas, que descaracterizam a nação. Desprezando a memória, só nos ficam mitos, grande parte trazidos ou defendidos por alguns que vieram da luta armada que digeriram mal a ideologia de Cabral e outros revolucionários, como se não tivéssemos um passado rico e valorizável. Há, até, afirmações e escritos em edifícios públicos, como me confessou um amigo que visitou a Praia, de que, por exemplo, a ambição de Cabral era ser camponês (no meio de outras patetices), o que é ridículo, porque se realmente tivesse querido isso, tê-lo-ia feito pegando numa enxada e não estudado em Cabo Verde e Portugal.
A indiferença do poder às propostas e críticas dos cidadãos é confrangedora, dentro do contexto do que classifiquei de ês ca ta cdi! Não devemos, no entanto, ter receio de combater essa indiferença, mesmo que sejamos poucos. Temos a razão do nosso lado e a força da nossa consciência, o que o levará a ter de nos ouvir, como parece ter acontecido com a nossa insistência com o estudo da descentralização e da regionalização. Precisamos, no entanto, de estar vigilantes por a experiência nos ter ensinado que a tendência é levar-nos à certa, é enganar-nos com meias medidas ou desvios aparentemente respeitadores como a defesa cerrada que vêm fazendo de imporem a desconcentração de serviços e de poderes e os governadores civis, mas sem abrir mão da liberdade de escolha, pelos cidadãos, dos que virão a governar-nos. Desconcentração de serviços e departamentos é uma forma manhosa de descentralização, por o poder central continuar a nomear quem bem entender para governar a nível local e regional, em vez de ser a comunidade a fazê-lo, escolhendo ela os seus representantes, aqueles em quem confia e crê competente para o cargo e a função. Há pessoas aparentemente bem-intencionadas que andam baralhando os dados confundindo conceitos e apresentando dificuldades e “problemas” que já rebatemos, ou enviesando questões que o bom senso resolve facilmente e eles se recusam a equacionar. Essa a razão por que o Governo deve constituir uma comissão multidisciplinar e plurissectorial para o estudo da questão. Cadê o estudo da regionalização, prometido pelo Governo, por entidade exterior independente que já deveria ter apresentado o seu trabalho?
O receio do poder central da descentralização e regionalização não tem nada a ver com o seu custo, como nos atiram à cara, porque sabem que a regionalização será mais eficiente e menos cara do que a máquina burocrática governamental actual. Acham que será sinal de fraqueza ou de cedência, o que é igualmente falso: o tempo e a experiência demonstraram que as reformas são inadiáveis, porque quando não se fazem a bem, sê-lo-ão à força, pela revolução, sempre de evitar. Não podemos nem devemos contentar-nos com proclamações de valores que nunca se praticam. Fazer reformas pode desagradar aos governantes, mas são úteis a termo tanto para o governo como para o povo. Há, seguramente, pessimismo da parte do Governo – e pessimismo dispensa-os de ser activos - sobre o seu resultado, mas se não as fazemos, as coisas irão correr mal ou os progressos serão nulos.
Presumo que o Poder sabe que mesmo no caso de ele representar a escolha da maioria, se nada o limita, as maiorias podem sofrer a opressão de minorias, a qual poderá tomar várias formas, sendo uma delas a recusa do diálogo, que é uma forma de violência, como bem explicou Edgar Faure em Diálogo ou Violência?. O facto de o Governo ser legalizado pelo voto não o torna, ao contrário do que muita gente pensa, menos perigoso. Daí a necessidade de a sociedade civil e as suas organizações estarem sempre vigilantes.
Constata-se, bastas vezes, que militantes de partidos políticos, mesmo quando convencidos da incorrecção de posições partidárias, continuam, por disciplina partidária, a defender essas posições. Em verdade, a disciplina (obediência) partidária obriga, quem quer ser obrigado, a aquiescências ocasionalmente indignas, instalando-se a cobardia sob a capa de prudência. Esta a razão das reticências dos militantes de partidos, e até dos seus líderes, no tocante à regionalização. Porém, essa modalidade espúria de disciplina pode ser contestada ou negada para questões que não constam dos estatutos e dos programas eleitorais, o que poupa os militantes a humilhações perfeitamente evitáveis. O temor do aumento da força militante a nível local e regional deveria ser posto de lado, porque essa força, ao invés de enfraquecer os partidos, robustece-os, dando-lhes maior legitimidade. Quem não concorda com esse tipo de disciplina, só tem uma saída: não ser militante de nenhum partido.
Relativamente à educação, certamente que ganhámos em quantidade; falta-nos ganhar a luta pela qualidade, o que não está a ser encarado da melhor maneira. As dúzias de instituições que se autoproclamaram “universidades” não têm qualquer espécie de semelhança com a verdadeira coisa. Os professores são, de maneira geral, pequenos personagens licenciados, um ou outro doutorado para dar satisfação ou ludibriar o ministério de tutela. Muitos cursos não têm saída em Cabo Verde, isto é, as profissões para que qualificam não existem entre nós, e, fora do país, por não serem reconhecidos, não funcionam, o que nos leva a concluir que estamos formando potenciais desempregados “qualificados”, e favorecendo o mercantilismo universitário, por a chusma de “universidades” ser mesmo negócio. O de que necessitamos é de um ensino menos livresco, menos focalizado sobre profissões inexistentes ou de nulo interesse nacional, mais práticas e profissionais, viradas para as nossas necessidades; mais formações em artes e ofícios, e não formar gente que não terá ocupação, como estamos fazendo nas “universidades”.
É urgente que os nossos intelectuais, governantes e operadores económicos tenham mais ousadia, tenacidade, sabedoria, receptividade e ambições para podermos progredir, sabendo-se que, para avançar, nada melhor do que experimentar, correr alguns riscos mas conservando os pés bem firmes no chão. O velho mundo rural que a maioria de nós conheceu foi esquecido, refugiou-se nos centros urbanos. Sente-se, no entanto, mal aí correndo o risco de se introduzir na droga, na criminalidade e na prostituição. Há urgência na criação de condições, em todas as ilhas agrícolas, que fixem os que ainda lá permanecem e atraiam os que partiram, como expliquei noutro texto.
Da justiça já escrevi bastante. As pessoas desconhecem que já Platão, cinco séculos antes de Cristo, afirmava que, numa sociedade civilizada, as leis seriam em número reduzido, e não como entre nós, de uma abundância assustadora e raramente aplicadas na sua dureza e isenção. Elas são, na sua maior parte, portas abertas para arbitrariedades, por conterem alçapões disfarçados que somente os juristas dos escritórios privados de advogados (sempre os mesmos) que as fizeram conhecem, pelo que, além de serem pagos pelo Estado para as produzir, ainda cobram mais dinheiro deste, para as interpretar, e dos réus com dinheiro para se safarem de condenações. Uma autêntica mina para alguns escritórios de advogados, quando os da Assembleia Nacional, do Ministério da Justiça e de outros ministérios poderiam fazer essas leis sem custo para o erário público e sem alçapões. Temos vivido em furor legiferante, quando deveríamos procurar dispor de leis simples e aplicáveis e revogar as não aplicáveis nem regulamentadas.
 
Lisboa, 25 de Fevereiro de 2014                                                         Arsénio Fermino de Pina

3 comentários:

  1. Em boa hora vem este excelente artigo curto e certeiro. Muitos recados e a carapuça vai enfiar em muitas cabeças já com umas tantas

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  2. Que ninguém pense que os artigos do Arsénio não são lidos. São mas é dificeis de contestar. Podem crer que (hà provas) são espezinhados.
    Muito gente vai se encontrar nas citações do médico/jornalista

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  3. Esplêndido texto. Sintético mas abrangente e denso de recados bem direccionados.

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