COOPERAÇÃO INTERMUNICIPAL
Começar pelos Alicerces
09 Março 2014
Em artigo recentemente publicado neste jornal, o Deputado Lívio Lopes celebrou a cooperação estratégica entre os municípios da ilha do Fogo, que se concretiza através de um acordo intermunicipal subscrito em 2013 pelos Edis das três autarquias foguenses. Uma reunião entre os vereadores do pelouro de Cultura e Desporto, no âmbito da efectivação do acordo, foi o mote a partir do qual Lívio Lopes realçou as potencialidades dessa cooperação.
Por: Mário Matos
Mas aquele Deputado vai mais longe, coloca a tónica em vertentes assaz importantes senão conaturais à Democracia, independentemente do nível onde o poder é exercido: uma gestão participativa no sentido top-down, favorecedora da cidadania activa, em clara ruptura com a tendência neopatrimonial, caciquista e clientelar que, acha, tem caracterizado algum sector do Poder Local entre nós; uma perspectiva institucional integradora ao arrepio da tendência da fragmentação do território e da gestão municipal (e não só!) que tem gerado um espírito de “feudos” autárcicos que só podem significar falta de visão estratégica, recursos malbaratados e perda de eficiência e eficácia, tudo no sentido inverso ao do desenvolvimento e do bem-estar das comunidades.
Com base nessa visão, e firmemente convicto das potencialidades de desenvolvimento da ilha do Fogo, o deputado Lívio Lopes preconiza um quadro institucional inovador e integrador, apontando cinco medidas que o mesmo deverá preencher, a saber e resumidamente: i) visão estratégica do desenvolvimento da ilha, servida pela definição e execução de políticas de integração; ii) consensualização de um caderno reivindicativo da ilha; 3) promoção de sinergias, parcerias e financiamentos para a ilha; 4) preenchimento do vazio institucional regional que se coloca, hoje, em Cabo Verde, entre os níveis municipal e o central; 5) criação de uma plataforma intermunicipal de concertação, intermediação e diálogo, entre outras soluções.
Congratulo-me com esse posicionamento de Lívio Lopes, aliás, na linha das frutuosas partilhas que vimos mantendo há anos sobre “a democracia vinda de baixo”, no sentido da “reinvenção da Democracia” de um Boaventura de Sousa Santos, do desenvolvimento do municipalismo e da regionalização entre nós.
Imediatamente estendi o raciocínio a outras partes do território nacional e, por mor de razão, a essa “região natural” Santo Antão - S. Vicente. Coloco entre aspas a expressão “região natural” apenas para ser fiel ao espírito de rigor que deve impregnar a análise da realidade. Para todos os que estão familiarizados com a estreita relação - diria em certas dimensões, simbiótica - entre Santo Antão e S. Vicente, trata-se de uma evidência que, certamente, para efeito de acção complementar estratégica em prol do desenvolvimento dessa “região” terá que ser verificada ou infirmada com base em estudos empíricos.
O que aqui se estranha é a ausência dessa visão cooperativa, solidária e integradora, voltada para a acção desenvolvimentista, na postura dos autarcas das duas ilhas e pela qual agora se pleiteia... Falo de ausência porque, pelo menos no espaço público, não tem chegado nenhum eco de qualquer iniciativa assumida pelos Edis em causa nesse sentido.
Espanta que tal aconteça porque está-se claramente ante desperdício de oportunidades e de potencialidades extraordinárias numa “região” que há muito procura respostas ditas estruturantes para o seu desenvolvimento e que tem tudo para ser competitiva.
Precisamos de conhecer a realidade das trocas e da simbiose entre essas duas ilhas. Devemos partir da realidade empírica para potenciar o que existe e explorar a fundo as sinergias e as oportunidades ainda não aproveitadas. Por isso, precisamos de estudos sim, feitos por equipas competentes e pluridisciplinares, sobre matérias ou domínios importantes da complementaridade e da intensa relação Santo Antão - S. Vicente para alavancarem um modelo de cooperação intermunicipal, servido por uma visão estratégica geradora de políticas públicas de integração, inovadoras e geradoras de um salto no desenvolvimento das duas ilhas. Estudos que, também, servirão para fundamentar a “ideia de região” e o desenvolvimento regional.
Um dos primeiros objectos da cooperação intermunicipal poderá ser justamente o delineamento e o financiamento conjunto desses estudos.
Temos alicerces ou mais que alicerces de um desenvolvimento complementar - numa palavra, regional - dessas duas ilhas, iniciado de forma modesta há mais de um século, antes de haver qualquer estabelecimento humano em S. Vicente e em que a ilha se enquadrava na designação das Desertas. Na época, a ilha funcionou como válvula de escape reguladora dos conflitos entre criadores de gado e agricultores de Santo Antão, com os primeiros a fazer da ilha um grande campo de pastagens. E andamos afanosamente a querer começar pelo tecto, passando ao lado da realidade empírica prenhe de exemplos e de virtualidades à espera de serem exploradas...
Respiguemos alguns dados em prol dessa visão. Comecemos onde tudo começa: a vertente demográfica que é uma das muitas maneiras de falar de cultura, de identidade, de economia, do social, enfim de quase tudo. Segundo o Relatório das Migrações, elaborado a partir do tratamento dos dados do Censo de 2000 (não pude verificar se o Censo de 2010 teve o mesmo tratamento), dos 18.043 santantonenses que, na perspectiva de análise designada de “Duração de Vida”, residiam num Concelho outro que não os da sua ilha de origem, cerca de 75.6% residiam em S. Vicente, ou seja, 13.626 indivíduos. À data, a ilha do Monte Cara tinha 66.671 residentes pelo que a população directamente oriunda de Santo Antão representava 20,4% desse total.
Mas o peso socioeconómico, cultural e demográfico de Santo Antão em S. Vicente torna-se exponencial se atentarmos que uma parte significativa da população nascida em S. Vicente tem progenitores, ambos ou um deles, de Santo Antão, mantendo essas famílias uma relação estreita com as duas ilhas, os seus usos e costumes e modos de vida, numa palavra a sua Cultura, qual uril jogado em dois tabuleiros.
Como terá evoluído essa realidade de 2000 para 2010, à altura do Censo seguinte, ou até hoje? Que implicações para a concepção de políticas activas de emprego, políticas educacionais e na área social em geral incluindo saúde e habitação, de desenvolvimento e crescimento económico, etc., sabendo que esta observação é um recorte diacrónico da realidade e que é preciso introduzir na análise os movimentos migratórios mais dinâmicos e mais voláteis - as migrações pendulares e as sazonais - para além daquelas definitivas, tanto quanto se pode falar em definitivo nos dias de hoje caracterizados por mobilidades aceleradas e em múltiplos espaços?
Os poderes públicos locais e centrais, os operadores económicos em geral, têm tido em linha de conta no gizar das suas estratégias de intervenção essa complexa realidade? Tem-se tido a atenção, por exemplo, de verificar o grau de empregos não-agrícolas gerados em Santo Antão e a sua capacidade de absorção da mão-de-obra à procura do primeiro emprego, logo jovem? Tem-se tido em conta o avolumar de uma população jovem cada vez mais instruída e que, por isso, cresceu em expectativas e aspirações não se contentando e (bem!) com o business as usually dos seus avós e pais? Felizmente a chamada “nova agricultura”, o agro-negócio e o turismo, incluindo o turismo rural e de habitação, bem como o “terceiro sector”, todos com capacidade de gerar valor acrescentado e novos nichos de mercado, já se afirmam como geradores de emprego e de rendimentos, mas quero crer que ainda não alcançaram uma dimensão capaz de ser sentida na regulação da dinâmica população entre as duas ilhas e não só.
Podemos estender o raciocínio a outras dimensões e encontraremos sempre matéria por estudar, com sentido de intervir estrategicamente para o desenvolvimento complementar das duas ilhas. O Turismo o primeiro a vir-nos à mente, tal a evidência... José Almada Dias, a quem saúdo pela perspectiva, já tinha defendido num artigo de opinião que S. Vicente oferece um dos produtos turísticos mais inovadores e adaptado às apetências da procura turística do Século XXI: um turismo urbano (explorando também o lado patrimonial arquitectónico), cosmopolita e ao mesmo tempo sui generis pelo “espírito do lugar” (acrescento, inspirado directamente da magistral obra sobre Mindelo do Prof. Arquitecto João Sousa Morais “Mindelo Património Urbano e Arquitectónico”), um turismo cultural e de entretenimento.
Santo Antão oferece um turismo natural, ecológico, de montanha, também cultural com a sua singularidade nesse domínio, de elevada potencialidade. As duas ofertas complementam-se mutuamente e constituem um pacote de enorme atracção. Os operadores turísticos nacionais, locais ou não, têm tido isso em linha de conta?
Quedo-me aqui. Penso ter argumentado o suficiente em prol de uma urgente reorientação estratégica a favor da cooperação intermunicipal Santo Antão - S. Vicente. Os exemplos avançados e muitos outros que poderiam ser evocados como fundamentação em relação a praticamente todos os sectores de actividade económica, social e cultural, podem e devem ser servidos por perspectivas municipais e intermunicipais, regionais e centrais (estas, desconcentradas e descentralizadas). Devem ser objecto de atenção tanto dos poderes públicos como dos privados e do “terceiro sector” (este está na estrada há muito). Teremos que aprender o que outros povos já fizeram: que é possível competir e cooperar em simultâneo, na tal perspectiva muito em voga nas práticas discursivas hodiernas dos agentes política e economicamente activos, de win-win e que urge se traduza em realidade prática.
Mesmo a terminar, um obrigado ao meu amigo Lívio Lopes por esta feliz incursão neste fecundo e estimulante terreno do desenvolvimento local e regional.
O Marzim não está aqui a defender intransigentemente a regionalização, mas para bom entendedor meia palavra basta.
ResponderEliminarS. Vicente e S. Antão constituem uma região natural por excelência, talvez a única à partida com condições para um sucesso garantido se os poderes locais se unirem pela linha de uma “visão cooperativa, solidária e integradora”, na expressão do Marzim. E eu penso que as condições para esse sucesso são tão plausíveis que causam temor à “república de Santiago”. É que a emergência de uma região natural S. Vicente-S. Antão, exponenciando todas as suas possibilidades (as referidas no artigo), iria disputar seriamente a hegemonia de Santiago/Praia, talvez abrindo a Caixa de Pandora para a concretização de um processo de regionalização alargado a todo o espaço geográfico nacional. Subentendo que essa região natural tem condições para configurar a primeira experiência no plano da reforma em vista, servindo de modelo para outras regiões. A essa região natural se juntaria mais tarde, irremediavelmente, a ilha de S. Nicolau. O seu sucesso teria óbvias e inevitáveis consequências político-administrativas, dando o mote para o início do desmantelamento do actual figurino do Estado. Por exemplo, por que não a transferência para a região noroeste de órgãos de soberania como a Presidência da República, o Supremo Tribunal Administrativo e outros? Desconcentrado o velho Estado e promovendo regiões naturais, Cabo Verde poderia enveredar por um novo e mais aliciante paradigma de desenvolvimento.
Tudo isto é um sonho, uma utopia? Penso que não desde que os poderes locais o queiram, e desde que saibam mobilizar civicamente a vontade e as energias das populações. E tanto não é sonho ou utopia que a “república” tem perfeita noção de que uma efectiva e profícua união entre as duas ilhas iria pôr em causa o seu sistema de equilíbrio, o que explica algumas estratégias indirectas subtis que procuram explorar fidelidades partidárias e a lógica de interesses pessoais.
O Marzim vê longe quando coloca a tónica “na democracia vinda de baixo”, no sentido da “reinvenção da Democracia” de um Boaventura de Sousa Santos, do desenvolvimento do municipalismo e da regionalização entre nós.” Pois bem, mas para isso será preciso empreender uma política de educação cívica e de dinamização cultural ao nível das autarquias