M. Odete Pinheiro |
14 Abril 2015 (A Semana)
É possível que o gigante tenha acordado! Este povo silencioso e sofrido, pouco crítico, que só se expressa no bar ou na roda dos amigos (e só entre aqueles em que se sente seguro), de repente levantou-se para dar expressão à indignação geral. O Estatuto dos Cargos Políticos foi a gota que fez transbordar o vaso da nossa paciência.
E, infelizmente, parece que os políticos ainda não entenderam. E apontam as razões mais disparatadas para justificar a saída à rua de milhares de pessoas: ou é para apoiar a posição da líder de um determinado partido, a quem procuram culpar pelo que está a acontecer, ou é para castigar este ou aquele, ou é por manipulação de terceiros, etc., etc.
Só não vêem o que é por demais evidente: saímos à rua porque o povo está farto de ser comido na cabeça, porque há valores essenciais que precisam ser defendidos, porque não podemos deixar que o país se abastarde ainda mais, porque a dignidade humana (a dos parlamentares nunca esteve em jogo, excepto pelas suas atitudes) precisa ser defendida: a dos pobres, a dos verdadeiros funcionários (que não a dos “funcionários” do partido, leia-se: deputados), a do homem comum, a dos jovens que não têm horizontes à sua frente e vêem sobrinhos, primos e afilhados dos poderosos a passar-lhes à frente nos concursos, e até a de homens e mulheres de meia-idade com traquejo e experiência, que são passados para trás por imberbes recém-chegados das escolas, que entram nos escalões superiores sem passarem pelas bases.
Saímos à rua porque há limites, e a classe política tem uma responsabilidade moral para com o povo, a responsabilidade de ser modelo em evitar a ganância e o ganho injustificado. Juntas, pessoas de todos os partidos, de todos os estratos sociais, de todas as idades, saíram para gritar basta e procurar fazer parar o quase inevitável, esperando que o bom senso do Presidente e um rebate de vergonha e responsabilidade por parte dos deputados consiga reverter o que ficará na história como a acção colectiva mais vergonhosa do nosso Parlamento (que as individuais, já estamos habituados a elas).
Mas talvez seja tempo de ir um pouco mais além, e o povo dizer o que deseja no e do SEU Parlamento, procurando sacudir as suas ineficiências, o seu número inflacionado, o seu estatuto exagerado em relação ao do povo que o elege, e uma produtividade muito inferior ao que seria de esperar. Talvez seja tempo de nos debruçarmos a sério sobre a composição e o funcionamento do Parlamento.
Por que Cabo Verde precisa de um Parlamento com 72 deputados? 500 000 habitantes justificam o número e os gastos? É o preço da democracia? Não, é o preço da nossa partidocracia. Na realidade, a nossa democracia seria muito mais bem servida por um Parlamento escolhido e formado de outro modo.
Quando se deu a abertura, Cabo Verde copiou – todos sabemos de onde – o sistema que mais força dá aos partidos, causando a extrema partidarização da vida nacional, ao mesmo tempo que o povo fica marginalizado da verdadeira política (tudo que tem a ver com a polis, a vida de todos nós em conjunto). Terminadas as eleições, o povo nunca mais é tido nem havido. É posto completamente de lado, esquecido... até se aproximarem novas eleições e precisarem do seu voto!
Os eleitos, justamente por terem sido eleitos, interpretam o seu mandato como um cheque em branco para fazerem e desfazerem como quiserem, seguindo a orientação do partido e não a consciência, sem terem de dar contas a ninguém senão aos líderes parlamentares, muitas vezes tomando decisões prejudiciais ao povo. Para este não há mais espaço para se fazer ouvir, nem meio de mostrar o seu desagrado senão esperar anos para o mostrar nas urnas!
E, mesmo assim… os mesmos nomes vão aparecer nas famigeradas listas (que podem incluir de tudo um pouco), com pequenas variantes. E a única alternativa é votar nas mesmas em bloco… ou não votar. Pode mudar o partido vencedor, mas as mazelas do sistema não mudam. E com o nosso quase bipartidarismo, que sempre tem levado a uma maioria absoluta, o governo decreta, os líderes parlamentares ditam, os deputados levantam a mão. O povo engole. Que remédio?!
Mas se o sistema eleitoral fosse outro, e para o Parlamento pudéssemos votar em candidatos (escolhidos pelos militantes através de primárias ou designados pelos partidos, podendo haver até independentes) e não em listas, poderia haver uma maior moralização do Parlamento e uma redução substancial do número de deputados, cujo exagero resulta do facto de se querer dar aos círculos pequenos a possibilidade de não serem representados só por um partido, obrigando a que cada círculo, mesmo pequeno, tenha pelo menos dois deputados. Pela regra da proporcionalidade, o número aumenta em todos os círculos.
Mas se a escolha fosse não no partido, mas sim no candidato que mais confiança merece à população (a despeito do partido a que pertence), o problema estaria ultrapassado. Os círculos pequenos teriam um deputado, e até se poderia fazer uma segunda-volta local entre os dois mais votados, para se garantir uma maioria absoluta nesse candidato. Os círculos maiores seriam divididos em distritos proporcionais, cada um com direito ao seu deputado, escolhido da mesma maneira.
A mudança do sistema – e a redução de tamanho – levaria a uma maior eficiência nas deliberações, a um melhor escrutínio por parte do povo, que realmente deve ser quem mais ordena, se queremos democracia e não partidocracia. Além disso, o custo seria substancialmente reduzido. Este seria também um Parlamento capaz de realmente fiscalizar as acções do Governo formado pelo chefe do partido que o povo escolhesse, em eleição simultânea.
Os deputados seriam responsáveis perante os que os elegeram (seu círculo ou distrito) e teriam a liberdade de votar conforme a sua consciência, podendo pensar no povo e não só no que convém ao partido. Saberiam que os seus constituintes estariam atentos ao seu desempenho e ao modo como votam, e isto constituiria um elemento de fiscalização. Por isso, cada partido procuraria apresentar os melhores candidatos possíveis, que pudessem merecer total confiança da população, reforçando-se, assim, a meritocracia.
Tais mudanças melhorariam também a atitude e o comportamento dos deputados, que tanto descrédito vai causando à casa parlamentar. Um parlamento composto por deputados que se respeitam uns aos outros e ao povo, que discutem problemas e não pessoas, que se treinam em dizer muito em pouco tempo, que se concentram em corrigir o presente e preparar o futuro (em vez das intermináveis revisões da matéria dada), que votam responsavelmente para o bem dos cabo-verdianos, enfim… um tal parlamento até seria pedagógico e daria um grande prazer àqueles que seguissem os debates através da comunicação social e não a angústia que actualmente sentimos… e talvez merecessem um aumento, mesmo em tempos de crise. Mas um aumento que não cause ainda mais disparidade em relação ao povo que o elegeu. O sistema poderia não ser perfeito, pois não os há, mas seria certamente muito melhor do que o que temos agora!
Entretanto, deixo outras perguntas em suspenso. Será que precisamos da profissionalização de todos os deputados? Será que precisamos que todos vivam na Capital, ou deveriam, antes, viver entre o seu povo e deslocar-se à Praia para as sessões? Será que precisam de tantas sessões, como estão a planear, para decidirem o que é importante, neste pequeno país?
Espero que o gigante tenha acordado! E que a sociedade civil tenha já despertado para dizer não ao statu quo. Que os jovens que eu vi na manifestação, de olhos brilhantes de entusiasmo (como os de outrora), se deixem imbuir de um certo idealismo para não deixarem o futuro da nação nas mãos dos idealistas de outrora que já perderam o coração e agora só pensam em si mesmos e nos seus interesses. Que sintam que podem e devem mudar o sistema! Mas mudá-lo profundamente, para levar Cabo Verde muito mais além!
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