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sexta-feira, 24 de abril de 2015

[8057] - POEIRA DOS TEMPOS...

MIGUEL DA CONCEIÇÃO MOTA CARMO
O Homem, o Militar e o Administrador

CAPÍTULO III

Entrevista com o Administrador do Concelho, Capitão Mota Carmo
     (Jornal “Notícias de Cabo Verde”, de 28/9/1946)

“De há tempos a esta parte, vemos erguer-se e ampliar-se um bloco de cimentos justamente na ourela do montão de tugúrios e casinhotos da “Ribeira Bota” e onde termina a avenida Amadeu de Figueiredo. Hoje, os muros deste edifício (ainda em vias de construção, mas já muito próximo de se concluir) abrangem um recinto que se estende, em largura, da mencionada avenida Amadeu de Figueiredo até o atalho (chamemos-lhe assim) que passa pelas traseiras do Hospital Militar e liga o “Lombo de Trás” à “Ribeira Bota”. As pessoas que conhecem o sítio sabem que é um recinto de extensão bastante considerável. 
O início dos trabalhos de construção despertou a curiosidade do público capaz de apreciar qualquer medida de algum alcance. Como é natural, dada a diferença de critérios, de sensibilidade de cada um, este público repartiu-se em várias zonas. Alguns discordaram, outros aprovaram e outros deixaram-se ficar em expectativa, para, mais tarde, poderem apresentar o seu juízo na posse de elementos que o fundamentassem. As três grandes facções constitutivas em todos os tempos da opinião pública apresentavam-se, como se vê, “au complet”. Nada mais natural e daí nada menos estranhável. O processo da obra, o evidenciamento da sua importância, acentuou em alguns indivíduos a curiosidade de que falávamos, tanto mais que alguns aspectos da sua finalidade não tinham sido ainda devidamente esclarecidos. O “Notícias de Cabo Verde”, com o conhecimento deste movimento de curiosidade, considerou que lhe competia obter da entidade idónea as informações necessárias para a compreensão deste assunto e publicá-las. A obra está colocada sob a égide da “Associação de Caridade de Cabo Verde”, mas ninguém ignora que o seu animador tem sido o actual administrador do concelho de S. Vicente, o capitão Mota Carmo. Procurámo-lo e pedimos-lhe que nos concedesse uma entrevista, ao que ele imediatamente anuiu com boa vontade e pronta gentileza.
Há tempos, o enviado do “Notícias” visitou com o capitão Mota Carmo as obras a que temos aludido até agora e, como havia tempo, outras cuja direcção também se encontrava a seu cargo se visitaram. Passámos, primeiro, pela Avenida Amadeu de Figueiredo; já trataremos do que lá vimos.
O automóvel, a seguir, conduziu-nos através da “Salina”, do “Monte” até à planície extensa onde se preparava a pista e se construía o “hangar” para o avião destinado ao serviço da missão hidrográfica, que há já tempos, aliás, se encontrava entre nós. Uma longa fita de terreno alisado e cilindrado prolongava-se e destacava-se com uma espécie de brilho de metal (dado, ao que nos pareceu, pela salsugem trazida e depositada pela brisa marítima) de tonalidade pardacenta e triste, do resto da chã. 
Dali, rodámos à Pontinha, a ver, o pequeno cais em cimento armado de sólida construção que naquela altura já se encontrava pronto e que, segundo nos informou o Sr. Administrador do Concelho, deveria ser inaugurado brevemente. De caminho, conversámos sobre todas estas obras: – “Tomam-me imenso tempo, explicou-nos o nosso guia. Cada uma delas, por si, exige uma vigilância constante. É preciso pulso para aguentar o balanço”.
É verdade, qualquer dos trabalhos visitados pede esforço e cuidado. Aliás, só quem nunca “meteu a mão na massa” pode ignorar as canseiras de toda a obra, mesmo de alcance mínimo. Todavia, ao primeiro olhar se vê que a de maior envergadura das citadas é o edifício destinado à sede da futura Instituição de Caridade.
É um edifício composto de dois corpos, ambos rés-do-chão. O primeiro forma um todo, uniforme, e o segundo é formado de uma parte central situado na reentrância de duas asas. Entre os dois corpos principais, medeia um pequeno pátio. Atrás, expande-se uma ampla cerca, em cuja direita ficam a cozinha e a despensa. Não falta harmonia no conjunto. Os dois corpos poderiam parecer baixos, mas o comprimento é extenso, de tal forma que a linha total se alonga e este alongamento tira ao conjunto o que ele poderia ter de atarracado.
Os aposentos do primeiro corpo dispõem-se, à esquerda e à direita da entrada, conforme o seu destino. À esquerda, situa-se uma série de pequenos quartos (seis, se não estamos em erro) para os serviços da secretaria; à esquerda, todo o espaço é ocupado por uma vasta sala de aula.
Os compartimentos do segundo corpo são os mais espaçosos; são três enormes salões, destinando-se os dois laterais para a instalação dos dormitórios. Ao lado de cada um, encontra-se um balneário, que comunica com uma retrete. Ambas as sentinas são servidas por fossas.
Todo este edifício, cujas linhas gerais ficam descritas, deixa uma impressão de solidez e de amplidão. Dentro dele, será fácil formar um ambiente saudável, em que se respira fundo e bem. Se os educadores não escassearem, entre aquelas paredes poderão formar-se homens. A instalação está construída, a primeira pedra está assente. Compete agora à cidade garantir o seu funcionamento, ampliá-la, e aperfeiçoá-la sempre que seja possível. 
Não passaremos agora à habitual distribuição de elogios. Costumam tornar-se banais. As obras é que devem falar por si. Quem quiser que vá ver com os próprios olhos uma obra que é valiosa e que nada impede de ser a base de uma bela, uma irradiante instituição.
Apresentamos, em seguida, as respostas dadas pelo capitão Mota Carmo às várias perguntas que lhe fizemos, com o fim já confessado de esclarecer o público sobre o verdadeiro fim desta obra, o seu funcionamento, o esforço reclamado pela sua realização, o ambiente em que ela se desenvolveu.
 – Qual o fim exacto a que se destinam as construções empreendidas pela “Associação de Caridade na Ribeira Bota”?
  – As construções empreendidas pela Associação de Caridade destinam-se à instalação da sua sede que compreende: -Gabinete de Direcção, secretarias, quartos para empregados, escola, refeitório, duas camaratas, cozinha, arrecadações, rouparia, sala de costura, etc.
– Quais os meios, ou com que “fundos”, espera a Associação de Caridade assegurar o funcionamento permanente da instituição que tem em vista fundar? 
– Com: Um subsídio mensal da Provedoria da Assistência Pública; um subsídio anual da Câmara Municipal; quotização de sócios; donativos, festividades e espectáculos. A boa vontade da Direcção chegará para conseguir as receitas necessárias.
 – Que serviços abrangerá esta Instituição em vias de fundação, ou qual será a sua organização?
– Os serviços que abrangerá serão os seguintes: socorrer os indigentes com alimentos, pensões, vestuários ou por qualquer outra forma; socorrer a pobreza envergonhada; Visitar os doentes pobres, prestando-lhes assistência; proteger a maternidade; socorrer os órfãos; criação e manutenção de uma cozinha económica; procurar dar solução a todos os casos que representem necessidade absoluta de socorro ou de assistência.
 – Que motivos levaram a Associação de Caridade à realização desta empresa?
 – A Associação de Caridade é que é, afinal, a empresa em realização. Nasceu ela da necessidade que rapidamente verifiquei de se minorar tanta pobreza que vagueia pela cidade: a necessidade de se recolherem órfãos dando-lhes conforto, educação e preparação para a vida; a necessidade de se criar uma sopa económica, e por outras tantas razões que impunham a montagem de uma casa de Assistência digna das possibilidades do meio em que vivemos, as quais são muitas e de ponderar.
 – Calcula aproximadamente em que época ela começará a funcionar?
 – Começará a funcionar, se não houver qualquer contrariedade, ainda este ano. Reserva-se até o dia de Natal para a sua inauguração completa. Funcionará já com o orçamento de 1947.
 – Exigiu a parte já construída o emprego de fundos importantes?
  – Até hoje, em obras e em algum mobiliário despenderam-se 245.000$00. 
  – Foi custosa a sua obtenção?
  – Sim, foi. Tem-se conseguido o dinheiro à custa de muito trabalho e canseiras que, felizmente, têm sido coroados do melhor êxito. 
  – Encontrou apoios eficazes em quaisquer elementos, aos quais a Associação de Caridade se dirigiu para que a auxiliassem?
   – Encontrei apoio numa parte do comércio (não na totalidade), na Câmara Municipal e na Provedoria de Assistência Pública e naquela parte da população que paga as suas quotas e está sempre pronta a auxiliar e a acorrer às festas que se promovem.
 – Espera que o acabamento desta obra exigirá ainda despesas vultosas?
 – As verbas ainda a despender são importantes mas estão asseguradas.
 – O desenvolvimento da campanha para a fundação desta instituição de Caridade deixou no seu espírito impressões favoráveis acerca da disposição com que o nosso público responsável acolhe a ideia de obras deste género?
 – A campanha, se bem que, como já disse, tivesse sido coroada do melhor êxito, deixou, no entanto, entrever, dentro de alguns sectores da sociedade, a má vontade. Fez-se propaganda contrária bastante acentuada. Diz-se que nada se conseguiria; que outros mais categorizados sectores já tinham experimentado tentar realizar outras obras semelhantes mas que desistiram; que estas iniciativas não vingariam, etc. Esta era, na generalidade, a base da propaganda. Mais tarde, quando se começou a construir o edifício, nasceu, do mesmo sector, nova propaganda nos seguintes moldes:
– Aquilo é falta de orientação. É atirar dinheiro à rua escusadamente. Para que se constrói um edifício, se quando sair a Expedição ficam por aí tantos quartéis abandonados? É claro que a base desta propaganda não surtiu o efeito desejado. Responde-se-lhe facilmente com esta pergunta: – Mas onde é que estão esses quartéis? À decisão de construir o edifício presidiu boa orientação, senso e experiência. É uma propriedade valorizada com que conta a Associação. Nunca mais ela pensará em alojamento nem correrá o risco de um mandado de despejo se tivesse que ocupar um prédio de empréstimo ou renda. De resto, a construção da Associação constitui mais um bom melhoramento para S. Vicente.
Quero dizer-lhe ainda, Sr. Redactor, que esta propaganda partiu de pessoas que ainda não auxiliaram a Associação, apesar de possuírem largos recursos. Questão de antipatia de uns, má vontade e inveja de outros. Quando para aqui vim, observei que algumas dessas pessoas representavam-se de caritativas e esmoleres, fazendo reunir à porta da sua residência ou estabelecimento meio cento de pobres que ali esperavam tempo esquecido que uma criada ou empregado lhes entregasse o óbolo tão prometido e desejado.
 – E quanto recebiam?
– Meio tostão ou um tostão, o que correspondia, respectivamente, a dois escudos e cinquenta centavos ou cinco escudos por semana. No fim do mês, dez ou vinte escudos a 50 pobres.
– Apesar de tanta contrariedade, deve, certamente, sentir-se satisfeito?
– Sim, estou. Muito mais ficarei quando eu puder afirmar às pessoas que me têm auxiliado – aquelas pessoas que se interessam pelo bem-estar e pelo conforto dos seus semelhantes necessitados: - aqui tendes a obra que vos prometi e que, de futuro, pertencerá à Cidade do Mindelo. Acarinhem-na e procurem desenvolvê-la para prestígio da população.”

(Gonçalves, o redactor entrevistador)

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