Domingos Landim de Barros |
Se para o outro «Minha pátria é a língua portuguesa», o outro que foi célere de pena e célebre de génio, proeminência que lhe corria pela veia e nédio dedo de prodígio. Quando esse outro foi exactamente Fernando Pessoa, o vate que não morre, maestro de toda a escala de notas, figura sumular de engenho, artificidade e devotada dedicação, em se tratando de poesia, e para muitos o inultrapassável neste género de ofício, aos olhos de hoje e dos de próximo futuro. Descoberto, foi grafeno antes do tempo, algures num império, talvez o dele próprio, o tão lustroso “Quinto”. Dado ao peso incomensurável desta tirada, Fernando Pessoa pode ser considerado precursor e brioso paladino da ideia de lusofonia, muito em voga hodiernamente.
Então vale a pena perscrutar o sentido e avaliar o impacto desta receita, que o mestre, a título gracioso, nos legou. Visionário, um cosmopolita a quem não importava que o estranho invadisse e dominasse o território, o dele inteiro, desde que o não incomodasse “pessoalmente”. O poeta soube, aliás, como ninguém, e de forma categórica e ática, entranhar o peso dos afectos no cômputo geral de incumbementos a que todo o ser humano está adstrito, enquanto parte de universo e pedacinho do planeta.
Este encargo consiste, por um lado, em andar com o focinho enterrado na existência da memória e, por outro, o nariz solto, borda fora, farejando fragrante suculência de percepção vinda do bosque distante ou circundante, permitindo digerir alguma angústia recalcada e gerir a grande torrência de tensão ambivalente entre o ter material e o ser ideal. E isto é uma constante na relação do homem com o meio onde vive e tenta pôr o selo de sua presença, evitando ser um gago incompreendido em seu reduto, levando o som do seu idioma a todo o orbe, partindo sempre de um espaço parco e diminuto às ambições do ser global.
Não sou do tipo da roda de eventos, não cultivo a exuberância do discurso, não me inclino ao palco de dossel, revestido de pluma e de luxúria, não me sinto preparado para o púlpito da história, nem me vejo esplêndido de triunfo.
Procuro, sim, o silêncio embutido na estrutura da palavra e sou fiel aos arrabaldes de mim mesmo. Minha pátria não passa de uma ideia, de uma utópica incursão ao pomar do meu exílio, e por amor. Às vezes ténue da espessura de uma linha e de pequeno filigrama ou de melindre que compõe a tecedura do meu pano e dá suporte ao meu percurso. Contudo, a lusofonia não é um ideal nem ilusória miragem. É uma vibrante realidade.
Preciso de quem entenda meus sinais, enxergue meus sentires, impulsos e sussuros, os meus apupos e os meus amuos. Neste último mundial, por exemplo, estive do lado do Brasil e Portugal. Os outros da lusofonia estiveram ausentes. Bati-me convulsivamente, torci por ambos, tal que faria alguém à frente de uma orquestra. Augurei aos dois o melhor que pude imaginar, perdi momentos de frenético labor, da minha gesta, sacrifiquei parte de renda, frequentei cafés, adiei projectos, aninhei sonhos, andei pulando, gritei golos, sofri quando sofreram, sangrei quando sangraram, chorei quando choraram.
“Para nada”, dirá o céptico, “porque Portugal fracassou na pol position, caiu estendido no umbral da lide; Brasil chegou um pouco mais à frente, mas tropeçou na ombreira, ficou aquem do auge a que já nos tinha habituado”. No entretanto, fiz aquilo que me competia, enquanto adepto da causa.
Tenho tantas razões para adorar o espaço lusófono como para criticá-lo ou desdenhá-lo tal qual um outro espaço qualquer. Ninguém está cá plantado à espera de um paraíso doirado de benesses, com rasgo angelical de caridade, com auréola de candura e nimbo de pureza a chamiscar por toda a parte. E nem sequer está cá ansiado de viragem repentina, com efeito lancinante de relâmpago, que num zás e num clarão de majestática firmeza fizesse tudo erguer ao ponto de desejo. Pelo menos, enquanto deambularem por aí algumas almas assanhadas do quintal da “outra senhora”, os ressabiados de destituídos privilégios, os anacrónicos do cerne de degredo, os do cárcere distante, os desconfiados, os avessivos aos ádvenas, os renitentes da modernidade e repulsivos dos ventos da história. História que o supra-dito poeta de infinita fulgurância definiria como “memória inserida no tempo”.
Num momento em que se comemoram 41 anos da queda do fascismo, com rigozijo e com ampliado ressumbrar em todos os países da lusofonia, não se compreende como é possível haver situação em que alguém titular de uma cidadania de um país membro, tendo um filho menor a viver noutro da mesma comunidade, este não possa adquirir a nacionalidade através do seu progenitor. Exige-se que o filho menor tenha contacto e conhecimento da língua e da cultura do país onde os pais vivem, para o efeito. Ora essa! Se a lei do país da residência dos ancendentes não permite que ele venha ou vá para junto dos pais, como é possível exigir do filho tais connhecimentos?
É o paradigma de como ainda existem reservas em reconhecer direitos naturais ao ser humano e em adoptar políticas abertas à recepção de originais da mesma fraternidade linguística. Sim, porque o lugar dos filhos menores é em regra ao pé dos respectivos pais. Criar uma lei de cidadania em que tais sujeitos não consigam abeirar-se dos seus é uma incongruência que não dá para entender. Deixem o povo circular livremente dentro do espaço da lusofonia, porque é isto que significa Abril. Pena é que os responsáveis da CPLP nunca se reuniram, que eu saiba, com imigrantes dos diversos paises para ouvirem este tipo de lamentações. E esta devia ser uma das prioridades da organização, na minha opinião.
Uma outra estupefacção que atravessa toda a lusofonia é a não disponibilização de livros de literatura nas bibliotecas dos respectivos países.
Depois de 41 anos sobre a data da Revolução dos Cravos e 18 da vigência da CPLP é estranho não haver livros dos principais escritores nossos em redes de bibliotecas públicas. Este défice na circulação de livros é prejucicial ao conhecimento dos nossos valores comuns. Não acredito tratar-se de obstáculo intransponível. Há uma falta de dinámica da parte de quem de direito. Enquanto isso, um cidadão dos nossos vai aos Estados Unidos, quiça entre numa biblioteca pública e encontre livros desses nossos para consultar ou requisitar. Será que os americanos estão mais interessados naquilo que é nosso do que nós próprios?
Apesar disso, nada me demove de gostar da lusofonia e de torcer por ela. E assim é por uma questão de lealdade, de coerência e lucidez impostas pela parentalidade da língua e não só. Não que esses esmerados renitentes estejam a dormir ou que me deixem de brindar com seu balido som de cordeiro, desmotivando-me de agir como se eu fosse dono de terra alguma e pretendente a trono algum e que estivesse empenhado em derrubar a ordem estabelecida, roubar-lhes parte de herança indivisa ou substituir-me a alguma divindade, que devesse ser exclusivo de fosse quem fosse. Bem que esta corrente represente “uma igreja com cada vez menos fiéis”, como diria o cronista luso, Manuel António Pina.
As coisas não funcionam tal se fossemos uns bailarinos perfeitamente sincronizados, numa pista de harmoniosa patinagem e de braço dado a dileitar-nos. É certo, mas por vezes temos uma percepção errada da CPLP, conotando-a com ineficiência e inabilidade, o que não corresponde à verdade.
Basta lembrar a anterior situação de Timor, as tentativas de ajudar na estabilização política da Guiné-Bissau e mais recentemente o caso do Fogo, em Cabo Verde. O envolvimento dos países da Comunidade nestes cenários foi exemplar. Por isso é bom estar do lado de quem connosco parilha a mesma onda de frequência, uma ideia de valores quase comum, uma visão de vida aproximada, um sistema de regras parecido.
Daí nunca me passar pela cabeça afrouxar meu zelo em relação à caminhada, dentro desta comunidade, que se justifica, não na direcção do chamado “lastro comum”, de indistinta e soluta profundidade, como terá vaticinado Gilberto Freire, mas certamente na procura de uma espinha dorsal comum, de uns traços e de uma matriz suficientes para inspirar novos entusiastas e cativar os existentes. E isto apesar da aparente palidez e da suposta ineficácia da instituição que lhe dá corpo. E não obstante a esta ou aquela incompreensão, a este ou aquele incidente relevante. “O que importa é avançar”, tal qual se espera.
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