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segunda-feira, 24 de agosto de 2015

[8413] - CRIOULAGEM - EPISÓDIO IV...

 AINDA DA DESCENTRALIZAÇÂO/REGIONALIZAÇÂO

Falámos já bastante da regionalização e reunimos em livro as achegas mais importantes, pensando até em revê-las acrescentando outras em nova edição. Pena foi que a chamada Cimeira sobre a Regionalização oficial não tivesse lançado um olhar interessado sobre o conteúdo do livro e estivesse distraído sobre os seus autores, nem se dignando convidar alguém para o debate, estando até um deles em S. Vicente. Preferiu-se consumir o tempo a ouvir queixumes sobre o mau municipalismo sem mesmo lhe fornecer alguma mezinha para os seus achaques.
Os governantes ainda não se deram conta de que o entretenimento de cidadãos com falsas soluções, com alienação através dos meios da comunicação de massa, sobretudo da TV, em discursos e recados encomendados, com futebol em série, estando o cabo-verdiano mais bem informado sobre as peripécias futebolísticas portuguesas do que sobre os problemas cruciais nacionais e festivais fora de época, equivalem ao empolamento e adiamento da reacção do povo que já vai manifestando algum interesse em participar politicamente e experimenta mesmo, esporadicamente, sentimentos de rebelião que contrapõem a sociedade civil à classe política e os eleitores aos eleitos. Por outro lado, em simulação de soluções, publicam-se leis a granel com a displicência de quem enche chouriços e criam-se instituições absolutamente inoperantes, tudo para continuar a reter poderes que devem descentralizar e repartir.
Parece mais do que evidente que o municipalismo praticado não funciona ou funciona mal e parcamente por se basear em repartições desconcentradas e não descentralizadas, sem a seiva do poder autárquico ou autonomia, sempre atentas ao assentimento, quando não ao deferimento dos ocupantes do Palácio da Várzea. Se os municípios fossem descentralizados e tivessem recebido mais poderes e meios, outro galo teria cantado, e teriam as regiões como tecto à natural expansão desses poderes e meios. As regiões – entidades supramunicipais – terão as competências que para elas se prevêem (delegadas pelo governo que fiscalizaria o cumprimento dessas competências) situando-se predominantemente na área da planificação e da coordenação de realizações e actividades a nível supramunicipal, limitando-se o município (câmara municipal) a actividades urbanas, portanto logisticamente limitadas.
Com a regionalização haveria revitalização do poder local e regional, um tanto semelhante ao existente durante a vigência da Primeira República, mas sem o estorvo partidário impositivo que o comprometeu, dado que até agora os eleitores não elegem deputados ou autarcas, limitando-se a ratificar as escolhas impostas pelas cúpulas partidárias. Portanto, poder vigilante escolhido local e regionalmente pelos cidadãos e não pelos partidos, embora os candidatos possam apresentar-se incluídos em listas partidárias como filiados e independentes, que ouviriam directamente os cidadãos a testemunhar o drama das suas vidas e a bater-se por melhoramentos que, sem eles, encontrariam obstáculos e reticências nos clássicos ouvidos moucos dos ocupantes do Palácio da Várzea.
Presumo que todos estão de acordo que o país, para restaurar os seus bons hábitos e costumes necessita de revalorizar a família, a escola, igreja, autoridade, consciência moral, que ainda são factores de preservação de valores e de regulação de comportamentos. Sei não ser tarefa de fácil execução porque até a polícia e o exército entraram em processo de desgaste e o repositório de equilíbrios e valores tradicionais que era o mundo rural é cada vez mais uma criação esvaziada e quase abandonada. Além do mais necessitamos urgentemente de um novo modelo de desenvolvimento e uma nova partilha do poder. Temos referências fundamentais políticas, culturais e humanas onde apoiar, desde os mais antigos – Sena Barcelos, Leite de Vasconcelos, Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Abílio Macedo, Senador Vera Cruz, o sábio Duarte Fonseca, Dr. Júlio, entre outros –, e menos antigos – Baltasar Lopes. Aurélio Gonçalves, Jorge Barbosa, Maestro Alves dos Reis, Manuel Lopes, Félix Monteiro, A. Carreira, Amílcar Cabral, entre muitos outros –, e mais recentes, que não cito para não ofender eventuais faltosos.
Já ia avançado na escrita destas linhas quando li o excelente texto da Dra. Eurídice Monteiro, intitulado “A retórica dos extremos e as ameaças à regionalização”. Adriano Miranda Lima reagiu oportuna e civilizadamente, como mandam as normas da boa convivência e diálogo, à argumentação da professora, e de momento pouco há a acrescentar, embora esses texto mereça atenção mais aturada. Todavia, gostaria de deixar dois a três apontamentos:
- Não me parece curial atribuir aos fundadores do Movimento Claridoso sentimentos “racialistas”, mas antes sociológicos;
- Afirma Eurídide Monteiro, a certo passo, que “debaixo de uma máscara identitária homogeneizadora assente em exaltação das pretensas virtualidades da mestiçagem (sublinhado meu), seriam impostos os termos da distinção social e política dos agrupamentos regionais e, concomitantemente, do silenciamento dessas diferenças no arquipélago”. Pôr em dúvida as virtualidades da mestiçagem já não se aceita nos tempos presentes, nem nos dos fundadores do Movimento, por ser um dado adquirido que esses fundadores conheciam bem. Afirma mais adiante “É curioso, no entanto, que a ilha de Santiago continua sendo transformado depreciativamente numa ´África Negra´, imersa na obscuridade, isto é, uma espécie de antítese da ilha de S. Vicente, que continua sendo projectada como um ´Pequeno Brasil´ ou uma “Pequena Europa´.” Presumo que a doutora está a referir-se à posição de alguns fundamentalistas de Santiago, que só consideram genuinamente cabo-verdiano o santiaguense fenotipicamente negro, excluindo os restantes.
Essa questão da pureza racial é pura idiotia. Há um estudo americano dos negros dos EUA que prova a existência de genes europeus nos mais retintos negros americanos numa percentagem significativamente elevada, o mesmo devendo acontecer no badio mais “puramente (geneticamente) africano”. Os antilhanos, por exemplo, deixaram há largo tempo de se preocupar com isso e nem valorizam a negritude, preferindo a expressão crioulidade, baseada na língua (crioulo) e simultaneamente nos contributos europeus, africanos, com apports asiáticos, levantinos, indianos e dos sobreviventes da América Pré-colombiana, uma totalidade do melting pot de povos e raças. Não fazem grande finca-pé na língua porque toda a língua idolatrada – o que alguns fazem com o nosso crioulo - funciona como uma máscara de teatro Nô, essas máscaras que conferem aos comediantes sentimentos, fisionomias e também personalidades diferentes. [Quem quiser aprofundar o assunto poderá ler Éloge de la creolité, edition bilingue, de Jean Bernabé, Patrick Chamoiseau, Raphael Confiant, da Ed. Gallimard, 1993].
A referida “redutora disputa política e cultural entre os dois grandes polos (Santiago/S. Vicente)”, certamente que vem atrapalhando o debate sobre a regionalização, como afirma Eurídice Monteiro, mas por culpa de fundamentalistas que só valorizam a componente africana na nossa génese, e os governantes, que não estão interessados em partilhar o poder pela via da descentralização/regionalização, colhem dividendos desse fundamentalismo para nada mudarem.
Parede, Agosto de 2015                                                                Arsénio Fermino de Pina
                                                                                               (pediatra e sócio honorário da Adeco)


4 comentários:

  1. Li com imenso prazer mais este valioso contributo do Arsénio para a clarificação das nossas ideias sobre a regionalização e outros temas co-relacionados.

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  2. Em boa hora este interessante e importante artigo de Arsénio sobre a regionalização com um recado para os fundamentalistas que luta que estão a travar pertence ao passado. Ou se integram na caboverdianidade ou se diferenciam, mas uma coisa é certa dois proveitos não cabem no mesmo saco. O amigo Arsénio lembra-nos que Temos que voltar ao debate da Regionalização agora que o terreno está bastante desbravado.

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  3. Este assunto que tem a ver com o futuro deste arquipélago/nação que é Cabo Verde é o mais importante e difícil de todos (apesar dos partidos tentarem distrair as pessoas com agendas transformacionais clusters e outras termos virtuais ).
    Sem a Regionalização e uma verdadeira Reforma de Cabo Verde, que inclua uma distribuição regular e equitativa dos recursoso humanos e materiais, estas ilhas estarão condenadas, tornar-se-ão num polo insustentável circundado de favelas (com migrantes do interior da ilha e das outras ilhas à procura de oportunidades e recursos) um deserto humano, para além da seca que as assola. É o cenário catastrófico do ponto de vista ecológico e social. Estamos a falar de 50 a 100 quantdo todos nós estaremos mortos mas que serão os nossos netos a viver a situação que nós não fomos capazes de solucionar. O PAICV e O MPD estão numa perfeita encruzilhada em matéria de Reformas. Não basta ganhar eleições ......

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  4. Este ensaio L'éloge de la Créolité, nas pisadas de Edouard Glisssant, poeta e ensaista martiniquês, sem se desmarcar da negritude de Aimé Césaire, pretende reunir todas as contribuiçoes culturais que passaram pelas antilhas, a começar pelos indios, pelos brancos, pelos negros e indianos. Se fixar na negritude seria renegar as outras contribuiçoes economicas e culturais. A negritude agora integra o movimento cultural das antilhas numa simbiose necessaria que se chama crioulidade. Creio que as leviandades de ser africano ou não, de ser preto ou não, de Cabo Verde ser africa ou não, mereciam também uma leitura baseada nas contribuiçoes culturais e economicas dos povos que contribuiram para que Cabo Verde fosse o pais que é. Defendo a crioulidade caboverdiana como o grupo dirigido por Cofiant defende a crioulidade da Martinica e das antilhas. Aliàs em 1938 um inglês Archibald Lyall escrevia um livro intitulado Black and white make brown de que "Cabo Verde não é nem Africa nem Europa , é predominante Antilhas. O socliologo brasileiro Gilberto Freie disse a mesma coisa o que desagradou Baltasar Lopes, que infelismente nunca visitou as antilhas. Depois duma visita as antilhas estou convencido de que a sociedade cabo-verdiana esta' mais proxima das antilhas e recomendo aos nosos estudiosos uma visita a essas ilhas crioulas. O Arsénio fez bem em indicar este ensaio dos crioulistas que me parece interessante para os os estudiosos da cultura cabo-verdiana

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