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sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

[8725] - OS BALEEIROS CRIOULOS...

Como é sabido e está históricamente documentado, a emigração cabo-verdiana para a América iniciou-se a partir da ilha Brava, com o recrutamento de marinheiros para os baleeiros...A isso faz Eugénio Tavares alusão,  descrevendo em três capítulos o drama dos homens-baleeiros cabo-verdianos.

Artur Mendes


                        
DRAMAS DA PESCA DA BALEIA
Por
Eugénio Tavares
A BARCA “KATLEEN”
I

A tarde caía suavemente, pouco a pouco envolvendo a ilha numa tenuíssima atmosfera de sonho. A vida bucólica do vale, amortecendo-se grandemente à medida que o rosado do poente se tingia de roxo; os rumores indistintos, fragmentos de canções interrompidas revoando, semelhantes a penas dispersas de uma asa, pelos côncavos sonoros; os mugidos tristíssimos do gado pelas arribanas; as notas melancólicas de um harmónio, evolando-se lá ao longe no vago das distâncias imprecisas, afastando-se e desvanecendo-se como qualquer coisa que fosse subindo da terra rumorosa envolta em sombras para o céu esbranquiçado e silencioso; as árvores imóveis, recolhidas numa atitude de quem reza a oração da noite; os negros perfis contemplativos dos rochedos; as curvas suaves das lombas já mergulhadas nos mistérios crepusculares; todos os contornos da ilha debruçada sobre o mar, olhando pensativamente para o mar, com esse intenso sentimento de saudade que magoa as mães que têm filhos embarcados; descaíam felizes e tranquilos, envolvidos na imensa poesia “ângelus”, e pouco a pouco iam adormecendo numa imobilidade dulcíssima.
A lua nova, um estreito fio recurvo de luz opalina, vogava sobre a cadeia negra ondulada do Risco Vermelho. Pelas lombas alcatifadas com o veludo sombrio dos feijões e dos fetos, tremulava, dentro da sombra imensa, a orquestra estrídula dos grilos. Ao longe, na fita ainda percetível da estrada que abraçava a montanha, uma última fila de lavadeiras retardadas, recorta-se nas tintas confusas pelo alvor das trouxas à cabeça; e engolfam todas, uma após outras, no desfiladeiro sombrio dos Paredões, para, mais logo emergirem, como figuras chinesas, a montanha das primeiras casas de Cova de Rodela, dessas casinhas pequeninas e asseadas, graves e compostas, que, de longe, lembram galinhas cobrindo ninhadas pela achada em fora. 
Dos casais longínquos, empenhados de fumo branco em colunas direitas e pelos recôncavos da Figueira Grande vão bruxuleando, de longe em longe, pequenas luzes vermelhas e trémulas, semelhantes a olhos lucilantes, furando a tela negra da noite, no seio da montanha majestosa, com a sua base em trevas e a sua coroa banhada na claridade fosca do céu.
Tínhamo-nos despedido depois de ouvir a narração do naufrágio do Katleen e subíamos, em silêncio, o escarpado caminho que corta o monte sobranceiro. Pela ribanceira que se cava à direita, adivinham-se cachos de rosas brancas alvejando na sombra sobre o negro metálico dos cafezeiros; e a noite translucida e silenciosa, respirava um hálito de rosas e alecrins. Na encosta fronteira, também à direita de que quem sobe, as umbelas das papaeiras, elevando-se de sobre a linha das lombas, recortavam-se no céu claro e pareciam a estranha continuação dos perfis negros da montanha.
Jimy enfiou o braço pelo meu e continuamos a galgar a áspera vereda.
-- Eu já lhe tinha dito, começou ele, que o compadre Manuel, se devia lembrar, ainda, perfeitamente, de todos os episódios do nosso naufrágio. Ele era então oficial do navio, e oficial de toda a confiança do capitão. Eu, de mim, simples moço, novo e sem experiência, não lhe poderia, agora, reconstruir todos os factos a que, aliás, assisti. De mais que, tendo eu ido no bote do capitão depois de o navio ter ido a pique e tendo sido recolhido, no dia seguinte, por um vapor que passava, pequeno quinhão me coubera nos sofrimentos dos que se tinham perdido no escaler timonado pelo seu compadre Manuel, os quis sofreram a sede e a fome, os horrores de uma lenta agonia, durante longos onze dias, até poderem vencer as mil milhas que os separavam das ilhas Barbados.
--Sim – respondi – Não me arrependo da caminhada. Impressionou-me a narração, e o narrador é um velho amigo que eu há muito tempo que não via.
-- Conhece-o de há muitos anos?
-- De há mais de quinze. Fui padrinho de um dos seus filhos, rapagão robusto, e cheio de bondade, tal qual o pai, que moireja agora pela América.
Esse homem que acabaste de ouvir, com a sua fala arrastada e seus meneios de velho lobo-do-mar, contando uma coisa heroica e dolorosa, com a simplicidade despretensiosa da verdade, é um marinheiro audaz, um bravo caçador de cetáceos, mas uma alma infantilmente boa. Conheço-o de há muitos anos! 
-- E que tenciona fazer a narração que lhe ouvimos e da qual com tanto cuidado o vi tomar notas. 
-- Escreve-la o mais fielmente possível, e faze-la publicar.
Até a base da ladeira do Monte, mergulhados cada um de nós nos seus pensamentos, não demos uma palavra.
Era noite cerrada e escuríssima quando chegámos à Povoação.
No dia seguinte, de manhã, num esforço de memória para conservar, a narração, do meu compadre Manuel, aquele perfume da verdade, aquela serena simplicidade das suas palavras nos lances mais angustiosos, lancei-me ao trabalho e escrevi o que se segue...
                                                                                                                    Continua...
Brava, 1912

3 comentários:

  1. O Eugénio Tavares fez-se adulto já na afirmação do realismo literário, mas vê-se, por este texto e outros, que ele faz muito uso da estética romantista. Aguardemos pela continuação.

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  2. O especialista Adriano analisa para nós este texto de uma grande qualidade literária De resto o amigo é da mesma veia literária que o Eugénio Tavares. Estamos a espera de um livro supresa da parte dele?

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  3. Eu, José? Coitado de mim, mas agradeço as tuas gentis e estimulantes palavras.

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