José Fortes Lopes |
Há quem defenda uma natureza essencialmente africana de Cabo Verde e o queira puxar para uma integração total no continente africano, tendo em conta o potencial de crescimento deste continente e as perspectivas futuras de ser ‘o próximo continente’ no contexto da mundialização e globalização dos mercados, e há quem defenda uma atitude mais conservadora, no sentido da preservação da sua natureza atlântica e crioula
O recém-publicado artigo em forma de reportagem e entrevistas “Ser africano em Cabo Verde é um tabu” no jornal português Público (1), tem feito correr alguma tinta, nomeadamente nas redes sociais (facebook). Globalmente, este artigo perdeu uma excelente oportunidade para trazer ao público português um assunto pertinente (a questão da identidade cabo-verdiana), apresentando uma visão muito enviesada, distorcida da realidade, ao restringir as entrevistas exclusivamente a pessoas conotadas com uma visão demasiadamente reducionista e ideológica de Cabo Verde. Como Almada Dias conclui, e bem, no seu artigo, que é uma réplica ao artigo “Cabo Verde e a cabo-verdianidade” no jornal Público (2), “fica-se com a sensação de ver 500 anos de cabo-verdianidade a serem atirados para o caixote de lixo”. Eu diria que ‘o crioulo’ ficou entalado!! Segundo o mesmo articulista, o artigo, para além de ter um título bombástico e sensacionalista, está repleto de declarações que reproduzem na sua maioria “os clichés africanistas do costume, a variar entre o absurdo e o ridículo”. Mesmo investigadores ou universitários como Corsino Tolentino ou Iva Cabral, assim como o ministro Correia e Silva, deram depoimentos pouco convincentes, aquém daquilo que se esperaria deles, para um tema tão importante. É o que acontece quando a ideologia predomina sobre a cientificidade, como conclui Almada.
Como poderia existir Cabo Verde como o conhecemos hoje, sem ter existido colonialismo no sentido lato, proveniente da expansão europeia, no caso em questão, a descoberta do arquipélago seguido da colonização portuguesa? Como poderia ter o colonialismo desligado Cabo Verde de África (outra afirmação vã) se a população cabo-verdiana não existia antes de 1460, e surge através da colonização das ilhas, entendida no sentido do seu povoamento, tanto por europeus, judeus e africanos, mais tarde por outras vagas sucessivas de escravos e colonos? Como podemos perceber a história actual deste país arquipelágico se não se tem em conta o seu processo de povoamento, considerando o facto de ser constituído por ilhas anteriormente desérticas, inóspitas e inabitáveis, até à chegada dos colonos e dos seus escravos, que graças às suas mãos humanizaram aquilo que era uma paisagem lunar ou marciana? Esta é a questão que se pode colocar aos revisionistas e outros maniqueístas que põem em causa a história, em favor de uma visão demasiadamente ideológica.
Não deixa de ser irónico que são os fundamentalistas que se orgulham de apresentar a Cidade Velha de Santiago como sendo a primeira Cidade criada de raiz nos Trópicos por europeus (início do século XV), uma cidade onde de certeza as populações de origem africana, tirando é claro os “padres negros como azeviche”, na expressão do Padre António Vieira, eram escravizadas, logo cativas, não vivendo por conseguinte no interior do perímetro da ‘gloriosa cidade’. São os mesmos que defendem teses radicais, absurdamente redutoras, reivindicando uma africanidade profunda de Cabo Verde (no sentido antropológico e cultural), rejeitando a sua natureza mais complexa, a sua crioulidade enriquecida da diversidade das suas origens, em que a componente africana é importante, se não maioritária. Assim, o crédito que se pode dar às declarações proferidas por muitos dos entrevistados é limitado.
É um facto hoje aceite que foram os Claridosos nos anos 30 do século passado, do alto das suas cátedras, que fecharam definitivamente o debate sobre a natureza de Cabo Verde. Usando uma expressão francesa, os Claridosos ‘ont tranché definitivement’ sobre a questão identitária cabo-verdiana, nem Europa nem África, mas simplesmente uma nação crioula na periferia fronteiriça de vários Mundos, mas fazendo parte da civilização ocidental. Para evidenciar as especificidades da cabo-verdianidade, a natureza particular da sua cultura no contexto africano, vincaram as afinidades com as culturas crioulas espalhadas pelo mundo, nomeadamente as Caraibenhas, elas sim com uma história em tudo similar à de Cabo Verde, fruto do encontro entre várias civilizações e culturas. Convém sublinhar neste aspecto as divergências com o PAIGC de Amílcar Cabral, um partido claramente africanista com projecto político respeitável mas questionável, o da Unidade Guiné-Cabo Verde, e depois um mais ambicioso, o da Unidade Africana, que só seria possível, na opinião do teórico revolucionário, através da reafricanização de Cabo Verde, ou seja, na prática, do seu “suicídio” como nação essencialmente crioula. Apesar da exuberância ideológica do PAIGC nos anos 60/70 (as suas teses chegaram a pôr em surdina as teses dos Claridosos), nunca conseguiu demolir ou descredibilizar as teses dos Claridosos, pois eram baseadas num profundo conhecimento da realidade que estudaram e descreveram nos seus livros, ao contrário das teses utópicas ou teóricas sem sustento na realidade. Apesar de se tentar passar hoje sob silêncio este facto, convém realçar a apreensão generalizada dos Claridosos, e dos próximos das suas teses, quando, em 1974, viram desembarcar o PAIGC em Cabo Verde erguendo a bandeira da Unidade Guiné-Cabo Verde, ficando os elementos daquele movimento divididos entre uma postura de oposição declarada e um silêncio irónico.
Com a implosão ideológica em Cabo Verde no seio do partido único, o PAIGC, a sua transformação em PAICV, seguido do seu ‘spinoff’* nos anos 90 do século passado em MPD, a subida em flecha de correntes fundamentalistas dominadas por discurso neo-identitário, a decadência programada da capital da crioulidade, S. Vicente, o conceito de identidade cabo-verdiana, tal como defenderam os Claridosos, é de novo questionado ou posto em causa, numa vã tentativa de esfumar o consenso frágil em torno desta questão. Hoje como ontem, apesar de Cabo Verde ter crescido e desenvolvido, continua a ser um país no limite da viabilidade económica e financeira, perdido e isolado no meio do Atlântico e num Mundo em convulsão (sem rumo e orientação clara, no meio de uma grave crise económica e turbulência financeira sem fim à vista, onde perigos iminentes espreitam todos os dias e por todo o lado, em plena crise da democracia representativa, globalização, etc). Neste mundo incerto, Cabo Verde não seria excepção, parece hoje também atormentado pelas crises, e não escapa à mais grave, a crise existencial e de identidade que perpassa o Mundo, colocando questões tais como, quem somos nós, de onde vimos, para onde vamos, etc, tais como foram evidenciadas no artigo publicado no Público. Há quem defenda uma natureza essencialmente africana de Cabo Verde e o queira puxar para uma integração total no continente africano, tendo em conta o potencial de crescimento deste continente e as perspectivas futuras de ser ‘o próximo continente’ no contexto da mundialização e globalização dos mercados, e há quem defenda uma atitude mais conservadora, no sentido da preservação da sua natureza atlântica e crioula. Por isso, estes defendem políticas mais cautelosas relativamente às questões de Integração africana, alegando que um país liliputiano como Cabo Verde (500 mil habitantes) mergulhado numa mega-região como a CEDEAO (de várias centenas de milhões, com projecção para atingir ou ultrapassar o mil milhões), extremamente pobre, bastante instável, em permanente conflitualidade e golpes de estado, cuja população é maioritariamente muçulmana, com estados não laicos (o Islão sendo, em geral, nestes países uma religião de estado) e não democráticos, ficaria completamente asfixiado culturalmente e entraria em colapso rapidamente. Embora Cabo Verde seja hoje, pela geopolítica, um estado africano, não é menos verdade que é uma nação crioula e atlântica. A sua inclusão plena em África é sempre uma faca de dois gumes, pelo que um Estatuto Especial de nação arquipelágica e atlântica me parece ser a opção consensual que deveria prevalecer no futuro.
Para concluir, Será que o Colonialismo desligou mesmo Cabo Verde de África? Não terá sido a imensidão do Oceano Atlântico onde banha o arquipélago, quem provocou a separação, e a história acabou por desligar Cabo Verde de África?! É também irónico considerar que do ponto de vista geológico Cabo Verde, assim como todos os arquipélagos que constituem a chamada Macaronésia, não faz parte da plataforma oceânica africana, sendo um acidente geológico na ‘dorsal oceânica’ atlântica!! Isto tudo para mostrar o quão ridículo é este debate, quando a maneira como se colocou o problema e as premissas estão erradas!
Sobre a questão em debate, considero oportuno revisitar o artigo Quando a Inglaterra Achou/Redescobriu S. Vicente: Do fim da sociedade escravocrata à eclosão do Cabo Verde moderno no Mindelo, pelo que proponho republicá-lo no seguimento deste artigo.
[escrito com a antiga grafia da língua portuguesa]
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* Spin-off, termo anglo-saxónico que significa derivado de algo já existente, gerar o novo a partir do antigo. É um termo usado em diversas áreas, como negócios, média, e tecnologias, etc., quando por exemplo uma tecnologia resulta no desdobramento de outras já existentes. Em negócios, o termo spin-off é utilizado para designar o processo de cisão entre empresas e o surgimento de uma nova empresa a partir de um grupo que já existe.
Bibliografia
1-http://www.publico.pt/mundo/noticia/ser-africano-em-cabo-verde-e-um-tabu-1718673http://www.publico.pt/mundo/noticia/ser-africano-em-cabo-verde-e-um-tabu-1718673
2-http://www.expressodasilhas.sapo.cv/opiniao/item/47273-cabo-verde-e-a-cabo-verdianidade-no-jornal-publico
in CABO VERDE DIRECTO...
Bate-se no ferro quando està quente.
ResponderEliminarForça, Djô
Braça
V/
Ilustre Conterrâneo Prof. José Lopes :
ResponderEliminarO comentàrio infra destinava-se a outro lugar mas aproveito para o pôr aqui no AcA. Mas tanto dà para os artigos da Dra. Odette Pinheiro (Coral Vermelho) e Dr. Almada Dias (Expresso das Ilhas) versando sobre o mesmo assunto.
Braça
Tio Dudu
*
Eu não sou, não quero ser africanista nem europeista porque jà sou Cabo-verdeano e Atlântido. A Atlântida é meu Continente.
Errar é Humano mas insistir no erro é ser burro-de-ladera. Ê incompreensível aceitar certas sugestões quando são de teor negativo, ou de efeito pernicioso, quando que só basta limar arestas e seguir a evolução natural, a vontade de um povo fértil e imaginativo. Mas em vez disso há quem teime em criar confusões em atmosfera jà conturbada por desejos imoderados de protagonismo. Não concordo que levem inocentes nas desgraças e por isso denuncio as megalomanias obscenas porque tenho o meu direito de opinar e também de ouvir comentários que só são aceites e merecerem resposta quando aparecem dentro da educação e boas maneiras §2°). Neste "suite" dos seus artigos, a Dra. Odette Pinheiro enumera, com arte e humor, a evolução do que é Cabo Verde que, achadas desertas, passou a ser uma Nação (muito antes da independência), graças ao Branco e ao Preto que, juntos, conceberam essa cor e essa maneira de ser que serve de exemplo. Portanto, com os mesmo direitos e os mesmos deveres. Mas, como as coisas se apresentam (mau Governo, desrespeito pelos valores), a Civilização Caboverdeana - a que o Povo criou e enriqueceu - adultera-se por obra e graça de figuras instàveis que mais precisam de terapia psíquica para evitar o contágio, a propagação. Obrigado, Dr. Odette Pinheiro que em poucas linhas disse a vontade da teimosa (e cobarde) maioria silenciosa.
Eduardo Oliveira
Bravo, José. É realmente ridículo este debate, como concluis no fim do teu discurso. Pois, somos isso mesmo: crioulos atlânticos. Nem mais nem menos.
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