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segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

[8959] - CONTOS SINGELOS - {7}

Rua Direita-Nova Sintra-Brava-Cabo Verde
Contos Singelos
Guilherme da Cunha Dantas

Segunda parte
Vinte anos depois
Júlia

Ricardo vinha esmeradamente trajado. Suas maneiras tinham então uma certa distinção e elegância. E Galvão, cremos tê-lo já dito, era de si muito bem-apessoado. 
Depois dos cerimoniosos cumprimentos de estilo, José Pedro perguntou-lhe a que se devia a honra da sua visita.
Ricardo, procurando dar à fisionomia hipócrita um certo ar de virtude e modéstia que estava bem longe de ter, expôs ao pai de Júlia o seu “amor” pela sua filha., terminando por lha pedir em casamento.
José Pedro, interiormente indignado, mas sempre grave e politico, respondeu ao pretendente com voz firme e resoluta:
-- Senhor … a mão da minha filha só a concederei a quem dela for digna.
Galvão levantou-se de pulo; e com os olhos chamejantes, os punhos crispados, pegou no chapéu e dirigiu-se para a porta, lançando ao mesmo tempo ao esposo de D. Elvira um olhar de ódio mal contido e de vingança certa. Cumprimentando ironicamente José Pedro, medonho sorriso lhe contraía os lábios. Este sorriso era ao mesmo tempo uma ameaça e uma advertência para o pai de Júlia.
 Deixa estar, meu bigorrilhas! … rosnava Ricardo ao sair  corrido da casa de José Pedro, tu verás que Ricardo Galvão nunca foi ofendido impunemente. Ele! … Rejeitar para a filha o meu nome, quando muitas o aceitavam, beijando-lhe os pés! … Pois eu a possuirei! Não como esposa, tolo que fui! … Obrigado, meu amigo … muito obrigado. Eu a possuirei, possuirei Júlia, as suas riquezas e … a vingança!
E os olhos do libertino brilhavam, mostrando o prazer insensato que nele despertava o sentimento de vingança.
A emboscada
Entretanto passam-se cinco dias, sem que da parte de Ricardo se note o menor movimento agressivo contra José Pedro.
Neste meio tempo, o pai da Júlia que não deixara o emprego depois de casado é pelos seus deveres de oficial da Alfandega chamado a inspecionar um navio inglês que acaba de entrar em “Fajã de Água”, outro porto da Ilha Brava, mais espaçoso que o da Furna.
O segundo piloto da galera inglesa é um rapaz bem-apessoado e robusto, de bigodes fartos e pretos, cabelo também preto e comprido, fisionomia leal e simpática. Todo o seu exterior, a sua mesma prenunciação denota não pertencer ele à mesma nação que o resto da equipagem.
Este homem parece não poder despregar os olhos do pai da Júlia. Porém José Pedro não repara na visível comoção do mancebo, que ao contemplá-lo sente marejarem-lhe as lágrimas nos olhos.
Concluído que foi o seu trabalho, José Pedro regressou para terra. É noite fechada. A lua que nasce desenha na estrada formas fantásticas penetrando através dos densos renques de purgueira que orlam o caminho.
Preocupado como vai em seus pensamentos, o esposo de D. Elvira não reparara num homem que embuçado em ampla “japona” o segue a uns trinta passos de distância, sem contudo o perder de vista.
Ao passar por um sítio muito estreito e sombrio, seis homens armados de possantes “manducos” o cercam e antes que José Pedro tenha tempo de fazer o menor movimento, furiosas cacetadas o prostram do cavalo abaixo.
Então um sétimo homem sai da emboscada. Nas mãos lhe reluz um ferro. Ergue o braço para ferir o pai da Júlia já inanimado. Súbito, ouvem-se passos precipitados, e um tiro de pistola ressoa a dez passos de distância.
O assassino cai ao lado da sua vítima, tendo-lhe a bala varado um ombro. Os seus cúmplices dando-o por morto e julgando-se perseguidos, o desempararam.
Chega o salvador de José Pedro. Apalpando-o ansioso, reconhece que está mal ferido, mas não morto. Carrega com ele nos possantes braços, e, como conhecedor do trilho, veloz o transporta. 
O homem que tão covardemente pretendera assassinar, o pai de Júlia, era, já os leitores terão adivinhado, o infame Galvão. E aquele que o salvou – o moço piloto do navio inglês.
O Salvador de José Pedro 
Caminhando com a pressa que lhe permitia o mau caminho e o seu pesado fardo, o generoso mancebo vê a alguma distância bruxulear uma luz. Dirige-se nesta direcção. Vem-lhe abrir a porta da casa um camponês que mostra ter os seus cinquenta anos, porém ainda forte e robusto. Trajava de luto. 
Informado pelo valoroso marinheiro do sucedido, o aldeão exclama benzendo-se:
-- Santo Deus! … Foi ele! Foi o maldito Ricardo! Vai para dez anos, que nenhum crime se comete nesta pobre terra, que não seja obra dele e dos seus infames satélites. Há um mês que “ bati-tu” (1) passou à noite por sobre minha casa. E daí a três dias…. Ah! Minha filha, minha filha!

(1) Pássaro marinho, semelhante ao corvo pequeno. O seu canto lúgubre pressagia desgraças àqueles por cuja morada passou. Mais uma superstição daquela pobre gente! 

A Voz de Cabo Verde – 1912                                                                       Continua
(Pesquisa de Artur Mendes)




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