Algo que também me intriga e preocupa são as promessas eleitorais. Não acredito nas estafadas promessas de dar num dia o que fora recusado durante anos e na receptividade enganosa dos candidatos ao Poder
Fico, por vezes, meditando, se seremos intrinsecamente conservadores, aceitando os nossos males endémicos como a pobreza, a desigualdade, a fome ou a emigração/imigração, como inevitabilidade; talvez nos tenhamos, num ponto qualquer da nossa história, resignado cristãmente. Será? Embora não creia nisso e acredite que a razão é outra, é pensamento que me intriga e fustiga com frequência, porque constato que somos reconhecidos e respeitados em todos os países onde trabalhamos e vivemos sem sinais de resignação mas de luta e empenho.
Persegue-me também a degradação da nossa democracia, que se vem acentuando com início no espírito de nepotismo e compadrio que impede a selecção dos melhores, fecha os olhos às más práticas e aos abusos de alguns, ficando indiferente, para não dizer autista, aos avisos que previram a deterioração a que se chegou. Estamos a chegar a um ponto em que a corrupção já não incomoda e se confunde com esperteza e habilidade dos sem escrúpulos em enriquecer sem grandes esforços. Inclusive, a linguagem jurídica tem eufemismos para embranquecer tal prática de modo a que o público fique sem saber do que realmente se trata – peculato, gestão/administração danosas, enriquecimento ilícito, clientelismo, falência fraudulenta, tráfego de influência, etc. Um dos meus autores preferidos, Aquilino Ribeiro, descreveu o problema da conversão do praticante do acto ilícito do seguinte modo: “ Fazer entrar gentes encardidas de corrupção da unha dos pés aos cabelos dos toutiços, oportunistas para lá de todo o credo e honra no honesto caminho, não é tarefa fácil”. O melhor é prevenir a sua a sua existência e difusão criando condições hostis à sua criação.
O nepotismo, o clientelismo e a burocracia cultivada e empolada são práticas que favorecem a corrupção, bem como desigualdades gritantes que beneficiam os ricos e poderosos e castigam severamente os fracos e pobres. Uma dessas desigualdades é a legislação, elaborada, não pelos deputados do Parlamento, mas por escritórios privados de juristas, ligados por posição ou conhecimento aos bem situados na vida, os mesmos que depois irão defender em tribunal, com êxito, por conhecerem todos os alçapões das leis, os réus ricos de actos ilícitos e de crimes praticados, o que permite a estes aumentar o seu poderio e fortuna.
Outra anomalia preocupante são as nossas “universidades”, mormente as privadas que nasceram como beldroegas após as chuvadas com a democratização do país. São ramos de negócio, não universidades; não têm massa crítica (doutores na docência) em número suficiente para serem consideradas universidades. A universidade custa muito dinheiro e leva tempo para se constituir. Mesmo como negócio (baseado no mercantilismo) são más por produzirem no mercado muita oferta de profissões sem saída em Cabo Verde, ou cujos empregos estão saturados ou há pouca ou nenhuma procura. Outrossim, não são reconhecidas na Europa e Américas. O ensino privado tende a inflacionar as notas e promover o facilitismo, de forma a captar mais alunos e a preencher as suas necessidades de financiamento. Apesar de reconhecer que existem honrosas excepções, a generalidade das restantes está associada a esse tipo de prática.
A educação é um bem semi-público demasiado precioso para ser entregue exclusivamente aos privados. Os melhores exemplos europeus do ponto de vista educativo surgem nos países onde existe uma aposta e presença claras do Estado, do sector público, neste domínio – Finlândia, Noruega, Suécia.
O país tem talvez mais médicos do que os necessários no Quadro do Serviço Nacional de Saúde, embora exista desequilíbrio por falta de planeamento e organização em algumas especialidades chaves. O Quadro da Saúde (não só de médicos) é mal remunerado, não se levando em conta os graves riscos a que os técnicos estão sujeitos, que outras profissões desconhecem. Para se obter boa qualidade de desempenho e afastar as tentações corruptivas, há que evitar no máximo a promiscuidade entre o público e o privado.
Algo que também me intriga e preocupa são as promessas eleitorais. Não acredito nas estafadas promessas de dar num dia o que fora recusado durante anos e na receptividade enganosa dos candidatos ao Poder.
O turismo vem beneficiando meia dúzia de nacionais, os que tinham terrenos para vender, hotéis e residenciais, porque os grandes hotéis pertencem a estrangeiros e tudo que aí se consome é importado, exceptuando o peixe, a lagosta e uma ou outra fruta nas ilhas do Sal e Boavista; dá emprego subalterno a alguns, mas na Boavista, por exemplo, encheu a ilha de barracas de lata, cartão e de lixo por incúria do responsável do Poder que deveria ter exigido, em contrapartida das facilidades concedidas, condições higiénicas (tratamento do lixo e do esgoto) e de habitabilidade dos empregados nacionais. A imigração africana continua descontrolada, num país com alta taxa de desemprego, por mero populismo ou receio de tomar atitudes firmes, de pessoas que não nos trazem nenhuma mais-valia profissional ou económica, pelo contrário, tem vindo engrossando o desemprego e actividades ilegais.
A criação do Secretariado das Comunidades não alterou em nada o monopólio da TAP e TACV de modo a favorecer a visita dos nossos emigrantes por os preços continuarem proibitivos, dos mais elevados do mundo, e nem contribuírem para os TACV continuarem a estar em maus lençóis. O prometido “open sky” nunca se concretizou, o que viria baixar os preços dos bilhetes e moralizar os hábitos dos TACV relativamente aos vencimentos dos seus quadros superiores e normas de serviço, promovendo visitas mais frequentes da nossa diáspora.
Outra preocupação é a minguada produção nacional – agrícola e industrial – que não tem tido nenhuma protecção nem estímulo que a leve a incrementar para substituir algumas importações. Não me alongo no assunto por o ter tratado recentemente.
Intrigante podermos acondicionar e embalar correctamente cereais, massas alimentícias e farinhas e continuarmos a importar os mesmos produtos embalados, havendo disponibilidade de satisfazer o mercado com produtos nacionais ou mesmo importados a granel como se faz com o trigo, que são muito mais baratos.
Para se viver decentemente com o mínimo de qualidade de vida, será necessário ter e respeitar regras, princípios, leis, mas igualmente deveres. Leis que se respeitem, que unam um grande número em torno de instituições sólidas com projectos exequíveis adaptados às necessidades do país e estímulos que motivem os cidadãos a colaborarem.
Bem, fiquemos por aqui em capítulo de preocupações para não criar situações de depressão nos que nos lêem. Melhor fariam os políticos se procurassem descobrir as causas dessas anomalias para as resolver, em vez de propalarem que vivemos em sabura na Crioulândia. Algumas preocupações seriam facilmente resolvidas, bastando aos governantes aprenderem a escutar e dialogar com modéstia com quem percebe dos assuntos. Afinal, a cidadania que os governantes se fartam de pedir, significa tão-simplesmente fazer o público questionar o poder e conhecer as opções políticas, o que, seguramente, não lhes convém, como vêm demonstrando. (in Cabo Verde Direto)
Parede, Março de 2016
Arsénio Fermino de Pina
Pediatra e sócio honorário da ADECO | pinaarsenio@gmail.com
Pediatra e sócio honorário da ADECO | pinaarsenio@gmail.com
[escrito com a antiga grafia da língua portuguesa]
E dizer que temos gente capaz que é vergonhosamente preterida.
ResponderEliminarQue raio de terra onde os melhores nunca são chamados para dar o seu contributo pelo engrandecimento da Nação porque que se instalou com a mediocridade não aceita a derrota.
Nos devidos momentos é preciso audácia e determinação de general mas, infelizmente, na nossa situação estamos perdendo a paciência que resta. Há que gritar porque se nos deixarmos levar mais uma vez será difícil ter a serenidade nos dias vindouros
Obrigado, Amigo por mais esta análise.
Ler os artigos do Arsénio é como assistir às aulas de um reputado mestre em todas as artes da vida e da ciência. É o saber de formação académica e é o saber de experiência feito, ambos com o selo da autenticidade que só um "cocuana" prestigiado pode conferir. E eu, que também sou "cocuana", estou em condições, também por alguma experiência, de certificar que o Dr. Arsénio é o nosso grão-mestre. Para quem não sabe, "cocuana" é o nome que se dá em Moçambique às pessoas já com cabelo branco e calejadas, pelo que são ouvidas reverencialmente nos conselhos das aldeias.
ResponderEliminarSó na nossa aldeia, em Cabo Verde, os titulares do poder acham que nada têm a aprender com a palavra e a experiência de quem sabe. Por isso é que a nossa "aldeia" corre o risco de ficar pequenina ou ao deus dará.
100% de acordo! Também estou tremendamente céptica com tudo isto! Já não acredito. Há gerações do post independência que perderam valores e que deixaram de respeitar os mais sábios, os mais ilustrados da terra, porque lhes foi retirado isso da sua aprendizagem da vida. O que sobrou e o que observam a alcandorar-se no comando com muito oportunismo, com raríssimas execepções, são maus exemplos do saber, do saber fazer e do saber estar, de nobreza e de modéstia que eram algum apanágio entre nós.
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