As políticas levadas a cabo pelo novo PAICV eram encaradas como notoriamente humilhantes para a ilha do Porto Grande, com um propósito declarado de a colocar sob a bota do poder central, cada vez mais poderoso e irrenunciável nos seus propósitos de dominação
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Mesmo lobotomizado, pisado, castrado e asfixiado pelo partidarismo e pela má política, no seu sentido rasteiro e deletério, S. Vicente é onde tudo começa e muitas vezes acaba, e frequentemente em sua desvantagem. Por ser uma sociedade horizontal, livre e de tradição urbana, tendo tido no passado pessoas com um nível de escolaridade e cultura acima da média, esteve sempre na vanguarda das transformações em Cabo Verde. Se há um sítio em Cabo Verde onde a sociedade civil pode desabrochar, renascer das suas cinzas, é precisamente S. Vicente, desde que as condições socioeconómicas assim o proporcionem. Pois é desde meados de 2000 que nestas ilhas começaram a despontar opiniões contestatárias face à mudança de paradigma político-económico com a eleição em 2000 de um PAICV de cariz marcadamente fundamentalista e arrogante. Estavam em marcha políticas centralistas demasiadamente, ou quase exclusivamente, viradas para o desenvolvimento da ilha de Santiago, que levava sempre a parte do leão no que tange aos investimentos. Os fundamentalistas consideram que ela deverá ser o único e exclusivo centro de Cabo Verde, lugar que, segundo eles, fora roubado pela sua rival S. Vicente desde o século XIX, por intermédio da presença britânica e do Estado Novo. As políticas levadas a cabo pelo novo PAICV eram encaradas como notoriamente humilhantes para a ilha do Porto Grande, com um propósito declarado de a colocar sob a bota do poder central, cada vez mais poderoso e irrenunciável nos seus propósitos de dominação. Sentia-se que tais políticas votariam a ilha, outrora a mais importante do arquipélago ao ostracismo, ao abandono e à marginalização política e económica. Em resposta à situação que se perfilava na prancheta do poder para o futuro da ilha, surgiam vários movimentos de cidadania, os germes do novo inconformismo em S. Vicente. Era inevitável o confronto democrático e de ideias, enformando contornos ideológicos, entre os elementos mais vanguardistas da sociedade civil, nomeadamente da Diáspora, e os poderes instituídos. Duas questões despoletaram o tal confronto: as questões do património urbano da cidade do Mindelo e da Língua (a tentativa de erradicação da língua portuguesa, de marginalização dos 9 crioulos, o nascimento do exótico ALUPEK, alfabeto alternativo no qual se ia escrever uma nova língua cabo-verdiana). O que alguns aprendizes de feiticeiro da causa linguística não sabiam e continuam a não saber, é que no futuro esta aventura irá dividir ainda mais a sociedade em castas: os falantes exclusivos do crioulo, orgulhosamente fechados nestas ilhas ‘paradisíacas’, e os nobres filhos dos ‘papás’, os protagonistas desta reforma patrioteira, que, sendo ao mesmo tempo ‘internacionalistas’ e poliglotas, logo, em geral, dominam a língua portuguesa, além de bem situados na vida, têm possibilidade de mandar os filhos estudar em Lisboa, Paris Oxford, Cambridge ou Harvard. É assim que a actual candidata a primeiro-ministro de Cabo Verde, orgulhosa do seu português alfacinha, acusa o líder da UCID, António Monteiro, ‘mnin de Soncent’ de falar mal o português, por ter cometido algumas gafes gramaticais, típicas de quem fala o crioulo regularmente e pouco frequentemente o português. É irónico esta atitude vinda da líder de um partido que arvorou desde 2001 uma bandeira radical de erradicação da diversidade linguística “a guerra das línguas: (1) crioulo contra a língua portuguesa (2) eliminação das 8 versões dos crioulos autóctones e fusão num crioulo unificado de base no crioulo de Santa Catarina de Santiago, escrito no ALUPEK, segundo a vontade e ordem dos fundamentalistas” como pano fundo!! Mas, relativamente à questão da Língua, não vou aqui dissertar, visto ter-me pronunciado longamente num artigo de opinião, publicado recentemente no Liberal.
Todas estas questões tiveram o impacto de uma verdadeira provocação, qual gota de água que fez transbordar o copo já quase cheio, para que rompêssemos o silêncio, porque era nítido estarmos perante uma intencionalidade que já mexia com a nossa identidade e a nossa herança cultural, implicando no imediato com a ilha de S. Vicente, mas susceptível de a prazo repercutir-se no país como um todo. Com efeito, na primeira década deste século, parecia que a cidade do Mindelo poderia tornar-se um estaleiro, com o seu centro histórico votado ao desaparecimento e ameaçado de ser substituído por um centro moderno, na visão neo-realista socialista, com prédios kitsch de arquitectura duvidosa, roçando entre a leviandade e o mau gosto. Tanto o poder como forças especulativas pensavam fazer gato-sapato de uma cidade totalmente vulnerável, sem leis de conservação do património urbano, nem um curador digno do seu nome. Para além de nada estar classificado, numa cidade com um Centro Histórico, havia então uma total demissão e alheamento das principais forças vivas da sociedade, muito mais inclinadas para aspectos mundanos ou de sobrevivência. A ilha, abandonada à sua sorte, estava entregue a interesses estranhos e alheios aos seus verdadeiros problemas, que variavam entre os políticos de curto prazo e os especulativos. Pois é, para além da ameaça à traça urbana da cidade, estava na calha o desaparecimento de emblemáticos pontos históricos e culturais da Ilha, algo inimaginável havia apenas uma década: Casa Adriana, Eden Park, Fortim d’El Rei, Liceu Velho, edifício da antiga Administração do Concelho, Consulado Britânico, etc., etc., patrimónios que num estado normal seriam preservados e requalificados. Tratou-se assim de uma batalha desigual para a preservação de património em grande parte herdado de uma traça arquitectónica de cunho colonial português e britânico, mas adaptado à realidade cabo-verdiana.
Foi então que a ADEMOS (1) surge, inicialmente formado por um núcleo duro grupo de amigos da Diáspora (José Fortes Lopes, Nuno Ferro Marques, Adriano Miranda Lima, Luiz Silva, Valdemar Pereira, Arsénio de Pina, Virgílio Brandão, o falecido José Figueira Junior (Zizim Figueira), Fátima Lopes, Joaquim Almeida (Morgadinho), Jorge Martins, Ângela Benoniel Coutinho e um grande número de simpatizantes na Diáspora) e de um número importante de pessoas sensíveis ao património e residentes em Cabo Verde (dos quais se destacaram Camilo Abu Raya, Maurino Delgado, Nuno Ferro Marques, Júlio César Alves, Moacyr Rodrigues, etc.), além da participação de núcleos em vários pontos do arquipélago, nomeadamente profissionais da área do urbanismo, paisagismo, arquitectura, conservação do património etc. Pois é, esta associação cívica, que chegou a contar quase 100 membros espalhados por Cabo Verde e pela Diáspora, entra em força na cena, deixando a passiva sociedade mindelense e cabo-verdiana atónita e perplexa. Todavia, a fraqueza da ADEMOS residia no facto de ela se tentar restringir aos problemas do património material, quando o problema era mais amplo, e essencialmente político, pelo que a associação tinha que mudar de cariz ou desaparecer, com o fim do combate pela preservação da Casa Adriana. Com efeito, com este malogrado acontecimento, as questões do património deixaram de ter actualidade, após terem jogado um papel importante no debate cívico. Deste modo, o núcleo duro da ADEMOS realizou o ‘spinoff’ e transformou-se num Movimento de Cidadania.
Não obstante as inflexões resultantes da pressão da sociedade civil, entretanto desperta, e da consciencialização por parte da sociedade da importância do património urbano, não somente como valor historio mas também socioeconómico, as políticas do actual regime do PAICV, com a sua agenda desenvolvimentista de Transformação, continuam a preferir construções faustosas, obras de fachada que dão uma impressão de desenvolvimento e de falso progresso, mediante a reconversão irresponsável e sem critério do património que está votado ao abandono. Esqueceram-se ou nunca souberam que o património é uma fonte de receitas nos países onde a indústria do turismo se desenvolveu de maneira sustentada e integrada na economia local, embora com o ónus de não garantir os votos do zé-povinho num país como o nosso, pelo que podia ficar à mercê de políticos ignorantes ou sem escrúpulos. Assim, à custa do património urbano centenário, ganhou-se muito dinheiro deixando ruir conscientemente ou demolindo por da cá aquela palha património, passando por cima da traça urbana da cidade e dos valores estéticos mais elementares. Relembrando, em 2008, o regime decidira demolir o palacete onde vivera Dr. Adriano Duarte Silva (ADS), denominada pela ADEMOS (1) Casa Adriana (2), sobranceira à zona da Fonte do Doutor, para no seu lugar construir-se um monstro de vidro e metal inapropriado para climas tropicais, destinado a ser um Centro de Saúde, quando havia alternativa por recurso a terrenos mais adequados, e se poderia salvaguardar esse património centenário, que bem se prestava para manifestações de índole cultural, para além de servir para lembrar aos mindelenses que na casa vivera o ilustre Adriano Duarte Silva, um dos nossos maiores benfeitores. Deputado por Cabo Verde no parlamento Português durante o Estado Novo, não utilizou as suas funções para tecer loas ao Regime salazarista, como era prática comum, mas para lutar pela dignidade dos cabo-verdianos, levantando a sua voz contra os preconceitos, e com isso impedindo a aplicação do famoso Estatuto do Indigenato em Cabo Verde. Este ilustre cabo-verdiano, que fora digníssimo Reitor do liceu de S. Vicente, lutou denodadamente para que o estabelecimento mantivesse as suas portas abertas (3,4,5) depois de mandadas fechar pelo Estado Novo, e, anos mais tarde, e já com a saúde abalada, não descansaria enquanto a baía do Porto Grande não visse um dia construído o seu Cais Acostável (1960). Além disso, empenhou-se toda a vida para que Portugal mudasse a sua política colonial em relação a Cabo Verde, propondo um estatuto mais digno, o da adjacência, em vez de colónia (6,7,8,9,10). Adriano Duarte Silva, ‘O Príncipe da Nosssa Ilha De Sonho’ foi imortalizado pelo maior compositor cabo-verdiano, B. Leza, na canção, hoje totalmente caída no esquecimento, ‘Seló Seló Dr Adriano fidju querido des terra morena’, que pode ser escutada no link do Blogue Esquina do Tempo (http://brito-semedo.blogs.sapo.cv/142001.html). Mudam-se os Tempos Mudam-se As Vontades. (in Cabo Verde Direto)
Referências:
1 - http://cultura-adriana.blogspot.pt/
2 - http://cultura-adriana.blogspot.pt/2010/05/casa-adriana-escadaria-bairro-adriano.html
3 - http://brito-semedo.blogs.sapo.cv/416747.html
4 - http://mindelosempre.blogspot.pt/2011/10/0132-adriano-duarte-silva-como-reitor.html
5 - Adriano Duarte Silva faleceu há cinquenta anos: http://brito-semedo.blogs.sapo.cv/142001.html
6 - http://mindelosempre.blogspot.pt/2016/02/1901-adriano-duarte-silva-em-luta-pelo.html
7 - http://debates.parlamento.pt/catalogo/r2/dan/01/04/01/051/1946-03-20/0885
8 - http://mindelosempre.blogspot.pt/2011/10/0126-adriano-duarte-silva-pequena.html9 - ADRIANO DUARTE SILVA. Legislaturas: IV, V, VI, VII. Parlamento.pt
10 - Lembrando a figura de Dr. Adriano Duarte Silva, Maurino Delgado, pdf, 2010. http://www.nhaterra.com.cv/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=1054
Março de 2016
José Fortes Lopes | jose.flopes@netcabo.pt
[escrito com a antiga grafia da língua portuguesa]
A esperança tem levado com baldes de água fria. Mas temos de continuar a abrir-lhe janelas, as possíveis e dentro das nossas possibilidades de influenciar o poder político. O José Lopes dá o exemplo como ninguém, e só falta que a sociedade se deixe contagiar porque só assim a onda cresce.
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