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quinta-feira, 17 de março de 2016

[9019] - CRÓNICA DOS TEMPOS DA ESPERANÇA (II) ...


Tendo desaparecido um dos motivos da criação da ADEMOS, que era em primeiro lugar a preservação da Casa Adriana, a razão da existência dessa associação deixou de se colocar. Perante isso, de duas uma, ou sumíamos, derrotados pela arrogância do PAICV e seus ministros, ou nos mantínhamos de pé...

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Casa Adriana/ADEMOS: o laboratório do Movimento de Cidadania, do ADEMOS ao Movimento de Regionalização


Nunca saberemos ao certo as motivações que estiveram por detrás desta demolição. Como é sabido, aquela que era uma das mais lindas vivendas de S. Vicente, foi vendida ao Estado de Cabo Verde ao desbarato, nos anos 70, pela família Duarte Silva, que praticamente liquidara com a independência todos os bens que possuía em Cabo Verde, em consequência das nuvens cinzentas que pairavam sobre o país e da falta de confiança de quem tinha aí investido. Convém lembrar que neste período, em virtude do clima de terror e insegurança, muitos foram obrigados a liquidar décadas de labor, tudo vendido a preço de chuva a quem dava mais, deixando para trás os amigos e entes queridos. A sua terra, que tanto amavam, ficou entregue aos novos donos. Segundo o historiador Moacyr Rodrigues, que fez parte da ADEMOS (1), houve sempre preocupação, desde a independência, de preservar a Casa Adriana, que esteve algum tempo a seu cargo, para se lhe dar uma utilidade condigna, o que de resto foi o caso, pois enquanto o conhecido e distinto médico Dr. Duarte Fonseca esteve no activo, funcionou ali o seu consultório até aposentar-se. Tudo leva a crer que o sacrifício de um inestimável bem patrimonial da cidade do Mindelo teve motivação política, pois a ADEMOS tinha encontrado vários terrenos alternativos para a construção do empreendimento, solução que poderia ter satisfeito ambas as partes em disputa e salvado a face de todos. Mas, como sabemos, o Estado de Cabo Verde nunca respeitou a sociedade civil e com ela mantém sempre uma atitude de sobranceria e de força. Todavia, a sorte da Casa Adriana estava selada com um PAICV revigorado e legitimado eleitoralmente, e, para cúmulo, eivado de um discurso fundamentalista (como bem caracterizou o então amigo e conselheiro Onésimo Silveira). Como sabemos, após o 25 de Abril de 1974 foi montada uma campanha difamatória contra a memória de Adriano Duarte Silva (ADS), com o intuito de destruir a sua memória e justificar a demolição do seu busto. Sempre que escrevíamos artigos em imprensa on-line sobre ADS, no âmbito da ADEMOS, choviam comentários reles e difamatórios, provenientes de pessoas que presumimos serem prosélitas do regime ou defensoras radicais de uma ideologia de intolerância, não raro chegando a insultos de natureza pessoal, como, por exemplo (2): “Numa coisa concordo com este rapaz: o Dr. Adriano Duarte Silva foi um deputado fascista que cumpriu obediente e zelosamente o seu papel. Viva o colonial-fascismo! Viva Salazar! (e vivam os seus colegas Franco, Hitler e Mussolini”- assinado António Silva, ou “Porque não reclamar a colocação de busto do Dr. António de Oliveira Salazar, em cada uma das cidades, em Cabo verde, já que ele não foi um apenas deputado da nação portuguesa, como o Dr. Adriano Duarte Silva, mas Presidente do Conselho de Estado (1º Ministro) de Portugal e suas Colónias? Não se pode compreender a birra do Sr. José Fortes Lopes já que é o próprio povo de S. Vicente, na sua maioria, que não qualifica de "memoria histórica" os feitos fascizantes do Dr. ADS. A luta para a independência de Cabo Verde travou-se contra o colonialismo-fascista português de que o ADS era um zeloso guardião “ - assinado António Pereira.
Quem fala assim anonimamente ignora a história da ilha de S. Vicente, mas este caluniador é seguramente cobarde, pois esqueceu-se das valas comuns, dos fuzilamentos em massa a das torturas perpetradas pelo ramo guineense do PAIGC, na Guiné Bissau, como atesta este artigo:



“....Em seis anos de independência total da nossa terra, 500 pessoas foram fuziladas sumariamente, sem julgamento, e enterradas em valas comuns nas matas de Cumeré, Portogole e de Mansoa. Publicamos hoje, os nomes de algumas pessoas que foram massacradas pelo regime de Luís Cabral, pois só as fichas criminais é que chegaram ao conhecimento do Conselho da Revolução. Sabe-se que muitos camaradas das FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo, exército do novo Estado), discordaram do regime e das injustiças de que eram alvo, (...) e antigos comandos africanos criados pelas autoridades do colonialismo português na nossa terra foram mortos pelos Serviços de Segurança do Governo deposto. São bem conhecidos do nosso povo os crimes cometidos pelos elementos dos ‘comandos africanos` junto das populações indefesas. Era justo que fossem julgados e condenados pelos seus crimes. Mas tal não aconteceu. O regime de Luís Cabral violou flagrantemente as normas dos direitos do homem e nenhum comando africano, nenhum dissidente, foi levado a tribunal. Foram executados barbaramente no meio das florestas, contra os mais elementares princípios de justiça e contra os princípios do nosso glorioso partido...” (4a, b). E em Cabo Verde as torturas e as mortes em nome do Partido Único !

É assim que Adriano Duarte Silva ‘O Príncipe da Nosssa Ilha De Sonho’ imortalizado pelo maior compositor cabo-verdiano, B. Leza, em ‘Seló Seló Dr Adriano fidju querido des terra morena’ (http://brito-semedo.blogs.sapo.cv/142001.html), vê a sua memória vilipendiada por um anónimo e ignorante vira lata.

Para além disso, e para agravar o caso, circulavam teses alegando que Adriano Duarte Silva teria cometido o que hoje é o perfeito crime de lesa pátria: teria prejudicado em Lisboa o desenvolvimento da Praia e da ilha de Santiago, a favor de S. Vicente, sua ilha natal, como atestaram muitos comentadores provavelmente oriundos daquela ilha, relativamente aos artigos em referência. Mesmo assim, convém anotar um facto. O PAICV do partido único no poder, nos anos 80 do século passado, conhecia a acção de Adriano Duarte Silva em prol de Cabo Verde, e por isso nunca fez grandes campanhas ideológicas contra ele, até deixando que o busto (retirado por jovens excitados em 1974) fosse recolocado depois, por pressão da sociedade civil mindelense, que aos poucos fora acordando de uma década de hibernação forçada. Todavia, se em S. Vicente o 25 de Abril e os leitmotivs revolucionários foram passando à história, reconciliando-se a ilha com o seu passado, a imagem de Adriano Duarte Silva permanecia como um estigma na mente de uma certa nomenclatura paicvista. Assim, fazia sentido recuperar a campanha deletéria dos tempos revolucionários, na medida em que servia bem os propósitos da política centralista e de ressarcimento de Santiago, o denegrimento daquele que consideravam um defensor dos interesses de S. Vicente. Acresce que estava no ar o arranque da campanha eleitoral para as eleições de 2010 e o programa despesista da Agenda de Transformação já estava em marcha, para além do facto de interesses imobiliários cobiçarem pontos estratégicos de Mindelo, uma cidade deixada ao Deus dará, totalmente vulnerável. Recorde-se que ainda há bem pouco tempo não existiam políticas e leis de Salvaguarda, Defesa e Protecção do Património de Cabo Verde (não se conhecem os disposições do Município de S. Vicente em matéria de preservação do seu centro Histórico), nem autoridades competentes nesta matéria para zelar pela sua implementação. Felizmente, hoje, graças à nossa pressão e a uma sociedade civil mais sensível, estas leis existem e o centro da cidade do Mindelo está hoje classificado pelo Estado, logo, à priori, protegido contra demolições selvagens.

Quem esteve à frente da decisão final da demolição da Casa Adriana foi a segunda figura do Regime do PAICV de 2000, o poderoso ministro das Infra-estruturas (de novo putativo número dois no próximo governo, caso o PAICV vença de novo, e pela quarta vez consecutiva, as eleições), que após mais de um ano a brincar ao jogo do cão e gato com os opositores da demolição, que inclusivamente apontaram vários locais alternativos, despachou rapidamente sobre o processo e encarregou o seu director do Ministério das Infra-estruturas de ir à ilha, o qual, mal desembarcou no aeroporto de S. Pedro, anunciou Urbi et Orbi que vinha da Praia com mandato para reduzir a cascalho o edifício. Assim foi, os bulldozers, num dia de Julho, entraram em cena, pela calada da noite, enquanto Mindelo dançava no festival da Baía das Gatas, e destruíram a linda e centenária vivenda, não obstante a oposição, embora tardia, da UCID (3) e da Câmara Municipal (4,5,6), e as tentativas de impugnação judicial da ordem. Politicamente, havia ordens da Praia para fazer desaparecer em definitivo a vivenda e, implicitamente, a memória do Dr. Adriano Duarte Silva que lhe estava associada, já que a figura do ilustre cabo-verdiano era um fantasma que pairava sobre o inconsciente do PAIGC/CV, pelas razões acima apontadas. A república fundamentalista e centralista não suportava mais vestígios de ADS. É de realçar os esforços do Onésimo Silveira, que proferiu um vibrante discurso de apoio à memória de ADS numa mesa redonda que teve lugar em S. Vicente, onde afirmou que seria uma “afrontosa agressão” à memória de Adriano Duarte Silva destruir o edifício onde viveu o “precursor da cabo-verdianidade” (7,8), sob o pretexto de erguer ali as instalações da Delegacia de Saúde, no sentido de sensibilizar o PAICV, já que ele gozava ainda de uma certa influência junto do primeiro-ministro e é amigo do então ministro das Infra-estrutura, ‘mnin de S. Vicente’. Destaca-se também o apoio do então Presidente Pedro Pires, que tinha recomendado maior respeito para com o Património Urbano de Cabo Verde no Fórum SIRUM (9, 10, 11,12), e que até aceitou receber uma delegação do Movimento encabeçada por Camilo Abu Raia e Maurino Delgado. Porém, nem mesmo uma opinião tão autorizada poderia ter sido tida em consideração, dado que se tratava de uma questão de afirmação de força e poder do regime contra os contestatários. Mesmo assim, chegou-nos aos ouvidos que se poderia ter evitado a demolição do edifício, não fosse a atitude julgada truculenta de um elemento do ADEMOS, com as suas diatribes públicas anti-regime, o que demonstra a prepotência, do quero, posso e mando, dos poderes em Cabo Verde. É que se estava a uns meses das eleições legislativas de 2010.

Tendo desaparecido um dos motivos da criação da ADEMOS, que era em primeiro lugar a preservação da Casa Adriana, a razão da existência dessa associação deixou de se colocar. Perante isso, de duas uma, ou sumíamos, derrotados pela arrogância do PAICV e seus ministros, ou nos mantínhamos de pé. De facto, não havia mais condições para a manutenção de um movimento exclusivamente dedicado ao património histórico e material, tarefa que poderia ser endossada a outros, que a poderiam até ampliar nos seus objectivos. Mas a ironia é que o processo Casa Adriana teve o condão de nos fortalecer civicamente e captar a adesão de muita gente para uma reflexão mais profunda sobre os problemas de Cabo Verde. Apercebemo-nos dos contornos políticos de várias questões que abordávamos e decidimos agir em conformidade estruturando e imprimindo às nossas acções uma maior dinâmica, sem contudo abdicarmos do distanciamento em relação às forças partidárias. Com efeito, um ano depois já tínhamos enviado um primeiro sinal forte com o Manifesto para um Vicente Melhor (13). O documento, que foi assinado por um número importante de cidadãos em Cabo Verde e na Diáspora, seria remetido aos titulares dos órgãos de soberania, líderes dos partidos políticos, deputados da nação, presidente da Câmara de S. Vicente e deputados da Assembleia Municipal de S. Vicente. Obviamente, o documento foi ignorado pelas instituições, dando pretexto a que muitos derrotistas e bota-abaixistas vissem reforçada a sua postura timorata, quiçá exclamando: “estão a ver, tínhamos razão, não vale a pena, o PAICV não ouve ninguém, em Cabo Verde já nada adianta”. Efectivamente a estratégia de associar um número importante de personalidades mindelenses num grande movimento de cidadania em prol de S. Vicente (logo de Cabo Verde), de modo a constituir uma força de pressão, não resultaria, na medida em que o regime acabaria por minar os nossos esforços e discredibilizar a nossa acção, tento em conta a sua rede tentacular de influência desestabilizadora e de compra de consciências. Só podíamos contar com nós mesmos, o núcleo duro.

Com o fim da ADEMOS, o desânimo e a desmotivação tomaram conta dos espíritos e quase que, dando razão aos derrotistas e bota-abaixistas, arquivávamos a militância cívica. Todavia, a rede de reflexão na Diáspora manteve-se intacta e não tardámos a concluir que tudo o que nos preocupava e incitava à militância cívica, desde as questões do património aos problemas sociais, era de ordem política. Por mais que quiséssemos evitar a colagem de rótulos à nossa actividade, concluímos também que nada podia inibir a consciência de quem se sente livre e tem como único móbil o bem da sua terra e da sua gente.

A ADEMOS consistiu numa iniciativa conjuntural. Doravante era preciso ir às raízes dos problemas e depressa reconhecemos que a centralização e a concentração do poder na ilha de Santiago eram a causa primária de todas as malformações e desigualdades no país, com reflexos negativos na sociedade e na economia. Em Cabo Verde, mantivemos contacto com o único elemento sobrante de ADEMOS, o pivô, o incansável Júlio César Alves, com o qual sempre dialogámos e permitiu que se mantivesse uma referência local após a implosão da ADEMOS. Toda a estratégia de implantação inicial do Movimento da Regionalização em S. Vicente passou por ele. O nosso Manifesto da Regionalização (14) foi assinado, em S. Vicente, por Júlio César Alves e João Lima e por mim, em representação da Diáspora, tendo sido publicitado nos principais jornais cabo-verdianos, na esperança de ser amplamente divulgado em S. Vicente, de modo a constituir um catalisador para a mobilização da ilha em prol da regionalização, o que acabaria por acontecer, mas levando anos a consolidar (15). Em Mindelo, fundava-se em 2013 o Grupo de Reflexão sobre a Regionalização de Cabo Verde (GRSRCV), que aparece hoje como um interlocutor no debate sobre a regionalização. Podemos afirmar hoje que este processo apanhou de surpresa a classe política e as elites entretidas na sua pastosa rotina, pois pela primeira vez, em 40 anos, um grupo de cidadãos dava um murro na mesa e questionava o sistema. Tudo isso produziu repercussões e as reacções não se fizeram esperar. Como “há males que vêm por bem, consideramos que o contencioso da Casa Adriana, a sua demolição, foi um catalisador do processo cívico em direcção à Regionalização, ou não fosse o espírito de Adriano Duarte Silva aquilo que denominamos Cultura Adriana (1), nome feliz encontrado por Virgílio Brandão, ajudando-nos a encontrar os melhores caminhos para S. Vicente e Cabo Verde, Os Caminhos da Regionalização” (16).

Tivesse o poder político escutado a sociedade civil e reconhecido nela uma parceira disposta a um diálogo construtivo e sempre necessário, certamente que a política nacional teria beneficiado, porque ela não é feudo exclusivo das organizações partidárias. Afinal, qual Fénix a renascer das cinzas, das desilusões poderão renascer novas esperanças, graças ao empoderamento da sociedade civil.

Março de 2016

José Fortes Lopes | jose.flopes@netcabo.pt

[escrito com a antiga grafia da língua portuguesa]

Referências
1 - http://cultura-adriana.blogspot.pt/
2 - http://www.asemana.publ.cv/spip.php?article56644#ancre_comm
3 - http://www.rtc.cv/index.php?paginas=13&id_cod=6352http://www.rtc.cv/index.php?paginas=13&id_cod=6352
4a - http://www.cart1525.com/gouveia/independencia.pdf
4b - https://sites.google.com/site/pequenashistorietas/historia-de-portugal/mortos-por-fuzilamento
5 - http://noticias.sapo.cv/inforpress/artigo/8277.html
6 - http://www.forcv.com/news/cape-verde/assembleia-municipal-de-s-vicente-vota-para-a-preservacao-da-antiga-residencia-do-dr-adriano-duarte-silva/
7 - https://www.youtube.com/watch?v=aGnc62Koxao
8 - http://noticias.sapo.cv/inforpress/artigo/4588.html
9 - https://www.ces.uc.pt/myces/UserFiles/livros/662_26.pdf
10 - http://cultura-adriana.blogspot.pt/2010/05/1-sirum-seminario-internacional-de.html
11 - http://cultura-adriana.blogspot.pt/2010/05/propostas-urbanas-para-o-centro-de_25.html
12 - https://cidadeseglobalizacao.wordpress.com/2011/10/18/reabilitacao-urbana-do-mindelo-e-santa-maria-%E2%80%93-as-propostas-do-seminario-internacional-de-reabilitacao-urbana-do-mindelo-em-debate/
13 - http://asemana.sapo.cv/spip.php?article61979
14 - http://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=MOVIRECV
15 - http://movimentoparaaregionalizaoeautonomias.blogspot.pt/ http://movimentoparaaregionalizaoeautonomias.blogspot.pt/
16 - http://noviactual.blogs.sapo.cv/cabo-verde-os-caminhos-da-148754

1 comentário:

  1. Temos todos de rasgar janelas de esperança neste edifício que cada vez mais parece fechar-se. Mas todos têm de se esforçar um bocadinho.

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