MEMORANDO SOBRE REGIONALIZAÇÃO/REFORMAS DE CABO VERDE (ABRIL 2016)
Em 2013, o Movimento para a Regionalização de Cabo Verde-Diáspora associou-se ao GRRCV (Grupo de Reflexão da Regionalização em Cabo Verde), sediado no Mindelo, para elaborar o Memorando da Regionalização, onde foi elencado um conjunto de propostas no sentido da implementação de uma verdadeira Regionalização em Cabo Verde. O contexto de então era desfavorável a esta reforma, na medida em que o partido no poder sempre mostrou relutância ou tergiversação em relação ao tema.Tendo em consideração:
− O novo contexto político criado em Cabo Verde após as eleições de Março de 2016;
− O facto de o actual partido do governo ter incluído no seu programa político a Regionalização, prometendo, inclusivamente, o início da sua implementação, a título experimental, em S. Vicente, até ao fim do corrente ano;
− As conclusões da Palestra/Debate Cabo Verde − A Encruzilhada da Regionalização − que ocorreu em Lisboa a 30 de Abril de 2016;
Resolvemos actualizar o Memorando em função da nova realidade sociopolítica e publicar a versão que se segue.
As eleições recentes conduziram a uma nova maioria governativa, cujo manifesto de intenções abre naturais expectativas sobre um novo programa político e económico para Cabo Verde, pressentindo-se, por outro lado, a predisposição para um maior diálogo entre o poder político e a sociedade.
É inegável que Cabo Verde cresceu ao longo dos 40 anos de independência graças à ajuda internacional e beneficiando na última década da expansão do crédito internacional. Todavia, a economia cabo-verdiana continua com as suas debilidades congénitas e, por isso, com fraca inserção no mercado internacional, uma vez que não dispõe de um sector empresarial capaz de ombrear com os seus parceiros estrangeiros. Ciente desta realidade indesmentível, os últimos governos do PAICV procuraram investir na infra-estruturação do país, como forma de alavancar e estimular a actividade produtiva, recorrendo para esse efeito ao endividamento externo, mas sem se conseguir por enquanto os efeitos pretendidos. Entretanto, com o actual nível do endividamento e com a estagnação do crescimento da economia, assiste-se a uma degradação do quadro macroeconómico que poderá comprometer a própria sustentabilidade da dívida. Com este constrangimento, mesmo que se suspendam os programas públicos para não agravar o endividamento, poderá não ser possível restabelecer a solidez das finanças públicas.
Perante este cenário pouco animador, a tríplice conjugação entre as baixas taxas de crescimento económico, o circunstancialismo do peso da dívida pública e a diminuição da ajuda externa, constitui um sério aviso e um travão à possibilidade de criar riqueza para sustentar a economia e satisfazer os anseios de uma população a crescer décadas a fio e cada vez mais concentrada nos principais centros urbanos. Um número crescente de jovens aí residindo poderá estar condenado ao desemprego permanente e à pobreza crónica, impossibilitado de encarar a emigração como uma alternativa, como outrora aconteceu. Assim, todos os indicadores socioeconómicos poderão entrar no vermelho, situação susceptível de espoletar o aparecimento de tensões sociais e políticas e de gerar mais fenómenos de delinquência e criminalidade para além dos que já existem.
Na verdade, Cabo Verde encontra-se numa encruzilhada. Minúscula parcela deste mundo em acelerada mutação e sob o impulso de um incontornável processo de globalização, o futuro do arquipélago/país vai depender da forma como souber interpretar os sinais dos tempos para se adaptar aos vários desafios que se lhe colocarem pela frente.
É então momento para reflectirmos e perguntar se a causa original dos nossos problemas não estará directamente relacionada com o modelo de organização político-administrativa adoptado a seguir à independência. A opção então tomada foi a concentração de todo o Estado na ilha de Santiago, designadamente na cidade capital, onde se instalou e entrincheirou um poder político de cariz acentuadamente centralista e burocrático, condicionando sobremaneira o desenvolvimento equilibrado e igualitário que as populações sonharam sob os auspícios da independência nacional. Não seria exigível grandes conhecimentos em geografia humana e ciências sociais para se aperceber, em devido tempo, e com cristalina evidência, que esse paradigma iria produzir efeitos disruptivos, perversos e indesejáveis no território, consubstanciados no crescimento desmesurado da capital e num inevitável efeito centrípeto absorvendo os recursos humanos das ilhas da periferia, assim condenando-as irremediavelmente à estagnação, em muitos casos ao retrocesso, e à irrelevância política, social e económica.
Era fatal que tal fenómeno acontecesse, e não seria por falta de advertência, porque não escasseiam exemplos que a História nos aponta acerca dos malefícios sociais inerentes aos modelos centralistas, concentracionários e burocráticos, paradigmas da mais perfeita autocracia. Talvez por isso, precavendo-se, ilhas da Macaronésia como os Açores e as Canárias tiveram outra lucidez e sageza políticas ao procederem à desconcentração dos seus órgãos de governação no acto do seu processo de autonomia regional. No caso particular das Canárias, é exemplo a alternação da capital da região autónoma entre Santa Cruz de Tenerife e Las Palmas de Gran Canária, sugerindo o que poderia ter sido emulado por Cabo Verde.
Mas não. Ao invés da deliberada marginalização política a que foi votada a ilha de S. Vicente (assim como outras parcelas do país), o procedimento poderia ter sido o reconhecimento do seu papel na nova arquitectura político-administrativa do novo país, com benefícios muito prováveis em todas as áreas da vida nacional, na medida em que se alargariam as perspectivas de um desenvolvimento mais racional e mais equilibrado do conjunto das ilhas. No arranque do país, teria sido sumamente vantajoso manter dois (ou três) polos políticos fundamentais, em vez de eliminar sub-repticiamente um deles para apostar exclusivamente num, o que acabou por gerar uma macrocefalia com os defeitos, as distorções e os vícios que são lhe clássicos, mas que são de todo intoleráveis num estado insular que devia fazer do contributo da diversidade a força agregadora e enriquecedora.
Estamos, assim, perante aquilo que um elemento do nosso Grupo designou por “pecado original” e que consistiu tão-somente em instalar todo o Estado numa única parcela do território nacional, com isso iniciando-se um processo contínuo e imparável de crescimento anómalo e anquilosado, que agora só pode ser estancado com uma decisão política de sinal contrário que reverta os malefícios da decisão original. Aliás, as próprias leis da Física explicam o fenómeno com clareza meridiana: as Leis da Inércia e da Atracção de Newton enunciam que um corpo em movimento continua neste estado se não encontrar uma força contrária, e que quanto mais maciço é maior é a atracção ou acreção que exerce. Ora, foi precisamente o que aconteceu e está a acontecer com a capital cabo-verdiana, sendo que desta feita as ciências exactas se dão as mãos com as ciências sociais para explicar, curiosamente, um fenómeno comportamental.
É assim que, por força desta realidade, o critério para a gestão do orçamento e para os investimentos a que obedecia o governo anterior, em coerência com o seu modelo centralista e concentrador, tinha como fundamento essencial o peso demográfico e os encargos com o aparelho do Estado. Compreende-se que em certa medida não seja fácil mudar os parâmetros daquele critério, face ao imperativo humano-geográfico criado, consumado e imposto artificialmente por decisão política tomada há quarenta e um anos. Agora, só resta alterar essa realidade para que emerja um outro critério, doravante atento a princípios de unidade nacional, de equilíbrio, de equidade e de subsidiariedade, que são de importância basilar num pobre estado insular. Porém, isso só é possível mediante uma profunda reforma do Estado, que não só o emagreça no que tem de supérfluo e institucionalmente descartável, mas que, acima de tudo, introduza uma outra arquitectura político-administrativa. Sem isso, as mudanças e o desenvolvimento que se auspicia progressivo do país tornam-se uma miragem e a prazo poderá não ser mesmo sustentável a sua economia e o seu próprio funcionamento institucional, com riscos sérios para as condições de vida das populações e para os laços de coesão nacional.
A este propósito, muitos opositores da reforma do Estado que almejamos, invocam o argumento da unidade nacional para questionar qualquer intenção de descentralizar o poder, como se os excessos do centralismo e a macrocefalia da capital não constituíssem a mais declarada ameaça ao espírito de coesão nacional. O raciocínio devia basear-se em premissa precisamente contrária. Num país arquipelágico, o espírito de unidade nacional deve basear-se em tudo o que possa unir o que a geografia dividiu. A pedra basilar e a trave mestra do “edifício nacional” em (re) construção, só podem passar pela partilha democrática do poder e pela rigorosa observância de princípios como o da subsidiariedade e da discriminação positiva, para que a convergência social, política e económica seja a meta final do Estado de direito democrático.
Em 2015, o MPD tornou pública a sua posição sobre a regionalização do território, reconhecendo que ela poderá ser elemento de correcção das assimetrias nacionais e permitir que cada região possa autonomamente, no seu espaço de jurisdição, definir estratégias de desenvolvimento, estabelecer prioridades de investimento público, regular um sistema de incentivos ao investimento privado, resultando assim uma maior eficiência da administração pública global, o que não implica necessariamente um agravamento significativo de despesas públicas e mesmo prevendo que em termos de custo/benefício possa ser favorável no contexto geral do orçamento público.
No entanto, somos agora confrontados com a notícia da atribuição de um Estatuto Especial para a Praia, parecendo haver intenção de o actual governo concretizar o que antes fora sendo ventilado mas que o seu antecessor congelara por eventual conveniência política face a outras mais gritantes prioridades nacionais e a oposição de uma parte esclarecida da opinião pública. É por demais despropositada a atribuição desse estatuto a uma capital já de si prenhe de benefícios e a rebentar pelas costuras, tanto mais que a expectativa dos cabo-verdianos das outras ilhas e do interior de Santiago seria a reiteração da promessa eleitoral alardeada pelo MpD e que lhe permitiu conquistar uma expressiva votação eleitoral em todo país, nomeadamente na ilha de S. Vicente. A concretizar-se a atribuição de mais uma regalia à cidade capital, sobrariam razões para se pensar que, ao invés do prometido, se pretende acrescentar mais uma peça à engrenagem do centralismo.
Apesar desta notícia que, queiramos ou não, vem agora ensombrar as nossas expectativas, não podemos deixar de saudar a abertura do novo governo saído das eleições de Março 2016 e a sua intenção de levar a cabo um conjunto de reformas do Estado (descentralização, desconcentração, desburocratização), veiculando o processo de regionalização, que em certa medida vem ao encontro das recomendações e propostas contidas no nosso Memorando da Regionalização, de 2013, e no nosso livro Os Caminhos da Regionalização, de 2014. Com efeito, os propósitos do governo coincidem com o nosso entendimento de que é inadiável a constituição de órgãos de governação regional com poderes suficientes e de que esta é a melhor via para melhorar a gestão administrativa e política do país.
Em virtude de algumas dúvidas suscitadas pela terminologia e pelos conceitos, entendemos oportuno sublinhar que qualquer modelo de regionalização tem implícito um conteúdo eminentemente político na sua filosofia conceptual, independentemente do leque de competências e atribuições com que se identificam os poderes regionais que gera. Seja o que resultar do estudo que irá realizar-se em sedes próprias, o facto é que o fundamento da regionalização não poderá ser desvirtuado: transferência de competências políticas e administrativas, a ser aplicada em função das características específicas das nossas ilhas e das suas vocações naturais e das suas potencialidades económicas, demográficas e sociais.
Reconhecemos e aceitamos de antemão que o modelo de região que se escolha para Cabo Verde não poderá ser pré-definido e concebido à régua e esquadro, mas sim algo sujeito a uma progressiva evolução e constante avaliação, com os ajustamentos, correcções e aperfeiçoamentos que a experiência for recomendando. É próprio das ciências sociais que assim seja, tal a complexidade e imprevisibilidade dos fenómenos que são do seu domínio, razão por que entendemos que o estudo da problemática em causa deverá revestir-se de conveniente latitude mental e abertura de espírito, e alicerçar-se no firme propósito de encontrar as soluções que melhor se coadunem com a nossa realidade, de modo a que se concretizem as reformas que a modernização do país exige e o aprofundamento da democracia exige. Para tanto, e tendo em conta os pressupostos contidos no Memorando atrás referido, propomos/sugerimos ao Governo de Cabo Verde a adopção urgente das seguintes medidas:
1) Desenvolvimento de todos os esforços tendentes à concretização da prometida reforma do Estado, a qual deve incluir uma verdadeira descentralização do poder e a desconcentração dos órgãos e estruturas do Estado, sem descurar a desburocratização dos serviços; não poderá de forma alguma ser precedida de medidas extemporâneas ou mesmo contrárias a esse desiderato, como, por exemplo, a atribuição do tencionado Estatuto Especial para a Praia;
2) Realização de um Fórum sobre esta problemática alargado a todas as forças políticas e à sociedade civil, e com a participação de políticos e peritos internacionais de países com experiência em matéria de descentralização e regionalização, para debater o caso concreto de Cabo Verde e encontrar o modelo que melhor lhe sirva;
3) Acordo para a constituição de uma Comissão Independente constituída por elementos das principais forças políticas da sociedade civil e assessorada por consultores das diversas especialidades integrantes deste problema, que deverá preparar um relatório e uma proposta para uma profunda reforma do Estado (incluindo a descentralização, a desconcentração e a desburocratização da máquina do Estado) conducente à definição do modelo de região mais consentâneo com a realidade cabo-verdiana. Deverá assentar num calendário e num roteiro, onde constem medidas concretas (quantificadas e quantificáveis) para a sua implementação, designadamente integrando os seguintes pontos:
4) Concepção de um modelo de regionalização que seja exequível e racionalmente sustentável à custa de uma adequada redução do poder central e de um redimensionamento articulado do poder autárquico;
5) Transferência de competências políticas e recursos (humanos, económicos e financeiros) do Estado Central para as comunidades regionais, conferindo-se-lhes assim os instrumentos materiais e jurídicos que as tornem capazes de estancar a realidade actual da desertificação e do empobrecimento humano e económico das ilhas da periferia;
6) Introdução de políticas de incentivo à desconcentração humana e retorno dos quadros às ilhas de origem;
7) Revisão dos critérios de concepção orçamental que vêm aprofundando as assimetrias no arquipélago, como os que se baseiam apenas na proporcionalidade mecânica atinente ao número de habitantes e à dimensão da ilha;
8) Concomitantemente com o que precede, adopção de políticas de discriminação positiva e abolição da uma mera contabilidade baseada no número de habitantes, como única forma de reduzir as assimetrias, as clivagens políticas, sociais e económicas entre o centro e as periferias do território;
9) Instituição de um sistema bicamaral, com um Senado ou Câmara Alta em que terão assento os representantes de cada Ilha ou regionais, incluindo as comunidades emigrantes. Será uma forma de garantir maior democraticidade, na medida em que a representação parlamentar com novos rácios por ilha beneficia o equilíbrio regional;
10) Reconhecimento de que as diversas comunidades emigrantes dispersas pelo mundo são parte integrante e activa de Cabo Verde e que todos os seus problemas devem passar a ser encarados e resolvidos no quadro das regiões de origem dos seus membros. Para o efeito, a descentralização e a desburocratização devem convergir para que cada região tenha as competências necessárias para a realização desse desiderato.
Lisboa, Maio de 2016
Pelo Movimento para a Regionalização de Cabo Verde-Diáspora
ADRIANO MIRANDA LIMA
ARSÉNIO FERMINO DE PINA
JOSÉ FORTES LOPES
LUIS SILVA
ADRIANO MIRANDA LIMA
ARSÉNIO FERMINO DE PINA
JOSÉ FORTES LOPES
LUIS SILVA
A seta indica o bom caminho, o Caminhos da Regionalização, para ferente
ResponderEliminarOs regionalistas pretendem o bem do país como um todo, acreditando que a regionalização pode ser a via para lá chegar.
ResponderEliminarESTE POST JÁ REGISTOU, ATÉ HOJE, 132 VISUALIZAÇÕES...
ResponderEliminarESTE POST REGISTA, HOJE, 155 VISUALIZAÇÕES...
ResponderEliminarBoa frequentação Zito. Que venham mais para conhecerem o memorando.
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