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quinta-feira, 9 de junho de 2016

[9305] - IDENTIDADE CRIOULA...

RELAÇÕES ENTRE
CABO VERDE E EUROPA

Como podemos relacionar-nos com o mundo se os nossos futuros diplomatas e políticos nem sabem de onde vieram os tambores que tocamos?
Fui convidado pela Universidade do Mindelo para fazer uma palestra sobre o tema “Relações entre a União Europeia e Cabo Verde” no âmbito das celebrações da Semana da Parceria entre Cabo Verde e a União Europeia (UE). Como convidados especiais, o embaixador da União Europeia em Cabo Verde e o ministro da Saúde, em representação do ministro dos Negócios Estrangeiros, ausente do país. Aceite o honroso convite, deitei mãos à obra, estudando o tema e, naturalmente, comecei pela tão badalada Parceria Especial (PE) entre o nosso país e a UE, a qual, confesso, nunca me tinha dado ao trabalho de analisar em detalhe. E coloquei as questões seguintes: O que é isso da PE? Em que consiste? E porque razão se chama especial? O que é especial desperta sempre muita curiosidade... Investigando um pouco, descubro no site da UE que o conceito por detrás da PE “[…] representa uma abordagem política que ultrapassa a mera relação de dador-beneficiário e responde assim a outros interesses comuns em matéria de segurança e desenvolvimento […]” e que “[…] foi dada resposta ao desejo de Cabo Verde ultrapassar o quadro das relações existentes, colocando-as num novo patamar e alcançar um grau de cooperação significativamente maior.” Um conjunto muito interessante de palavras, no qual me entusiasmou a intenção de ultrapassar a relação dador-beneficiário e de pretender ter um grau maior de cooperação. Este conjunto conceptual assenta por fim em seis pilares I. Boa governação, II. Segurança/estabilidade, III. Integração regional – Macaronésia e CEDEAO, IV. Convergência técnica e normativa, V. Sociedade do conhecimento, VI. Luta contra a pobreza e desenvolvimento Aqui o meu entusiasmo já começou a esmorecer. Só isto? Pareceu-me insosso, incompleto, em resumo, nada de especial!
Procurando mais, descubro ainda que Cabo Verde beneficia de uma chamada “Parceria para a Mobilidade”, através da qual a UE compromete-se a: • Mais possibilidades de imigração legal para os nacionais do país terceiro; • Assistência aos países terceiros a fim de ajudá-los a desenvolver a sua capacidade de gestão dos fluxos migratórios legais; • Medidas para fazer face ao risco de fuga dos cérebros e incentivar as migrações circulares ou as migrações de regresso; • Melhoria e/ou flexibilidade dos processos de emissão de vistos de curta estada aos nacionais de países terceiros. Perante um auditório com alunos na sua maioria do curso de Ciência Política e Relações Internacionais, levantei a questão da livre circulação de pessoas entre Cabo Verde e a UE, fazendo o paralelismo entre nós e os nossos primos crioulos africanos e arquipelágicos das Seychelles e das Maurícias: eles não precisam de vistos para entrar na UE e podem lá permanecer até 3 meses. São países com uma história semelhante à nossa, mas com algumas diferenças fundamentais: 1. Nós temos uma relação mais antiga com a UE, visto que a nossa nação é mais velha; 2. Temos uma grande diáspora residente na UE, e que sempre contribuiu para a construção dos países europeus (os nossos primos crioulos quase não possuem diáspora); Ou seja, nós gabamo-nos de ser o único país africano com uma Parceria Especial com a UE, mas são os outros crioulos africanos que têm o proveito. Nós cobramos vistos aos turistas europeus e as Seychelles e as Maurícias não. É caso para perguntar afinal quem é que tem uma relação especial de parceria com a UE? Como não gosto de me ficar apenas pelas críticas, tentei apresentar a minha versão do que deveria ser a nossa relação com a Europa. Comecei por elencar as razões que nos levam a ter de ambicionar uma relação especial com a Europa:
1. Dimensão identitária e cultural – ligação à Europa porque foram os europeus que acharam e povoaram Cabo Verde, o que faz com que sejamos uma nação fruto da expansão europeia, por outras palavras, somos legítimos descendentes dos povos europeus; 2. A UE é o maior parceiro comercial de Cabo Verde; 3. Ajuda pública ao desenvolvimento (esta razão não deveria existir se tivéssemos trilhado outros caminhos); 4. Remessas de emigrantes; 5. IDE – é da UE que vem a maioria do necessário e indispensável investimento directo estrangeiro; 6. Turismo – é da UE que vem e continuará a vir a esmagadora maioria dos turistas para alimentar o motor actual e futuro da nossa economia. Ou seja, um conjunto de razões que vão desde a dimensão identitária e cultural às pragmáticas relações económicas. Com base nestas razões, apresentei uma nova proposta, com um novo paradigma, ou seja, uma nova relação que: a) Seja baseada na nossa História comum, suportada nos elementos culturais e históricos que nos unem; b) Seja baseada nas pessoas e para as pessoas, servindo os cidadãos comuns cabo-verdianos e europeus e não apenas para propaganda política; c) Seja suportada na cooperação empresarial, ou seja, numa relação olhos nos olhos e não de doador-receptor; d) Tenha como lema principal a criação de riqueza através do fomento de uma próspera classe empresarial nacional, em vez do inócuo “combate à pobreza”, velho de 40 anos e com péssimos resultados (assistencialismo e dependência). e) Crie uma sociedade cabo-verdiana que valorize o mérito, o lucro, a prosperidade individual e colectiva, dimensões em que a Europa nos pode servir de exemplo. Mas para que tudo isso aconteça, para que possamos mudar a nossa relação com a Europa, temos primeiro que resolver os nossos problemas identitários, típicos das sociedades crioulas, para nos podermos relacionar sem preconceitos com a Europa e com o Mundo. Fiz um pequeno exercício com 
a plateia. Em tempo de festas populares, projectei umas imagens das nossas festas juninas e perguntei de onde provinham os tambores usados para tocar o Colá SanJon. Toda a gente respondeu em uníssono: de África!! E eu tive que dizer-lhes que estavam errados, que o tambor é europeu que, segundo os especialistas, é de origem celta, e que celtas eram povos que habitavam a Península Ibérica, o que faz com que sejam nossos antepassados, e que, portanto, temos sangue celta nas veias, etc. As caras de espanto foram elucidativas. Como podemos relacionar-nos com o mundo se os nossos futuros diplomatas e políticos nem sabem de onde vieram os tambores que tocamos? Mas o pior é que não sabem porque todos nós fomos treinados e formatados para responder automaticamente que a nossa cultura é totalmente africana. O ritmo que é tocado pelos tambores de Colá SanJon é claramente africano, a sensual dança igualmente, mas a festa, o navinzim e o tambor vieram da Europa. Esta é a beleza e a riqueza da primeira sociedade crioula e mestiça que cresceu neste que é o primeiro país do Novo Mundo, mas que, ideologicamente, preferiu reduzir-se à sua dimensão africana, tornando-se órfão de pai por escolha própria. Continuei o meu exercício elencando as nossas manifestações culturais mais conhecidas, como o Fim do Ano, o Natal, a Páscoa, o Carnaval e os santos populares, e perguntei de onde provinham. Ainda brinquei um pouco, perguntando se conheciam os povos crioulos das nações caribenhas, os Kassav da Martinica, o Bob Marley da Jamaica, a Rihanna de Barbados, e rematei com o Haiti, que é um país negro sem ser africano, mas reparei que estava a causar desconforto à plateia. Resolvi mudar para questões mais pragmáticas, reafirmando a minha convicção antiga e várias vezes defendida de que Cabo Verde deve posicionar-se como o resort privilegiado da Europa no Atlântico, atraindo as populações reformadas europeias para virem cá viver os seus anos dourados, e expliquei com números os enormes benefícios que o turismo residencial e de saúde tem para os países receptores, algo que já defendi aqui nestas crónicas da Identidade Crioula. E ainda partilhei algumas informações sobre a estratégia que está a ser seguida para atingir esse desiderato. Mas acrescentei que, para que isso aconteça, os cabo-verdianos têm de assumir que possuem sangue de proveniência europeia nas veias, e que isso faz de nós parte da Europa, da sua História e de todo o seu legado (devo salvaguardar que penso o mesmo em relação a África, antes que me crucifiquem. Mas Cabo Verde e os cabo-verdianos ainda não o assumiram, porque o ultrapassado discurso de termos sido colonizados pelos europeus ainda tem muita força. Como se fosse possível um pai colonizar um filho, ou um povo que não existia ser colonizado por um dos que lhe deu origem. Os nossos patrícios aqui da costa africana são os nossos “irmãos africanos”, enquanto os europeus são “estrangeiros” e “ex-colonizadores”. De facto, enquanto assim for, Cabo Verde nunca poderá relacionar-se descomplexadamente com a Europa e com os europeus. Perguntei ao Embaixador da União Europeia se seria compatível esta integração simultânea de Cabo Verde no espaço europeu e na CEDEAO. Ele respondeu pragmaticamente que isso dependia do grau de integração nos dois espaços. Para bom entendedor, meia palavra basta. Os exemplos dos crioulos das Seychelles e das Maurícias dizem tudo – apesar de serem países independentes situados na costa africana e longe da Europa (12 e 14h de voo), fizeram a escolha pragmática que mais lhes convinha. Por cá, continua a dominar a ideologia e por isso continuamos a gabar-nos de uma Parceria Especial de que a maioria dos cidadãos não tira nenhum proveito. PS: curiosamente, comecei a escrever esta crónica no Luxemburgo, aonde me tinha deslocado para fazer avançar o primeiro projecto empresarial entre Cabo Verde e esse país amigo, e que visa precisamente desbloquear projectos empresariais no domínio do turismo hoteleiro e residencial. Enquanto delineava na minha cabeça estes parágrafos, recebi uma mensagem de um amigo a perguntar-me se tinha ido lá pedir mais uns tostões ao Grão-Duque… (Expresso das Ilhas Nº 758)

José Almada Dias

4 comentários:

  1. EXCELENTE, EXCELENTE!

    Quem consegue refutar esta lúcida argumentação? É verdade, a culpa foi da "escolha" que os cabo-verdianos fizeram. Mas o que é doloroso é que não foram os cabo-verdianos que, livre e conscienciosamente, fizeram essa escolha. Toda a gente sabe isso e não vale a pena chamar os bois pelos nomes. Sempre achei também que essa "parceria especial" é uma treta, como treta tem sido ultimamente quase tudo o que vem da União Europeia.

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  2. O poder de análise do Almada Dias - como aliás um pequeno naipe de conterrâneos, não deixa qualquer dúvida a sensatos que conheceram no pré-independência e/ou estudaram a história da nossa terra, só pode ser aplaudido efusivamente. Pobre de quem se aproveitou de épocas (muito) difíceis, se deixou emprenhar pelos ouvidos e jurou por uma ideologia que nada, mesmo nada, nos convém. A breve trecho pouco nos restará do genuíno caboverdiano se os mais diligentes não saírem da letargia em que se encontram.

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  3. Bom o que o Almada diz vai ao desencontro da ideologia oficial, ou seja, algo politicamente incorrecto. Desde que a capital da Crioulidade (a identidade caboverdiana muitas vezes posta em causa por conceitos ideológicos importados e de veleidades de circunstância) foi condenada ao degredo, debater este tema deixa de fazer sentido. E nao me admira a estranheza dos estudantes universitários da Uni do Mindelo em relação ao tema. Passaram 41 anos de lavagem cerebral e são quase 2 gerações que estão em causa.
    Quanto à UE, este vê o EE acordado a Cabo Verde como o jeitinho dado a este país num determinado contexto, sem nenhuma consequência prática. Acredito que poucos sabem na UE que CV tem este estatuto (façam uma sondagemm aos portugueses!!) e mesmo nas grandes instâncias europeias ninguém deve dar importância a isto. Como podia ser diferente se Cabo Verde é uma nação assumidamente africana, fazendo parte da CEDEAO etc.

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  4. Para o EE tivesse consequências práticas CV teria que ter acesso aos fundos estruturais para as regiões Ultraperiféricas o que meia década tiraria erste arquipélago da mendicidade. Mesmo assim a UE dá um apoio orçamental de 50 Milhões de dólares, para além de outro financiamentos, sem contar com a ajuda bilateral entre países, tais como o Luxemburgo, a França a Espanha etc.
    Eu sempre estranhei como foi possível CV ter tido uma política de costas viradas ao Reino Unido tendo en conta o impacto da civilização anglosaxónica em CV, que entrou por S Vicente e entranhou profundamente em CV. Ou melhor eu sei porque: o Reino Unido não reconheceu o governo totalitário do Paigc em 1975, logo este países foi riscado do mapa oficial de CV durante os seus 40 anos de existência

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