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quinta-feira, 21 de julho de 2016

[9481] - UMA VISÃO ABRANGENTE...

António Miranda Lima


A PROPÓSITO DE ALGUMAS POLÍTICAS CABO-VERDIANAS


     Notícia do “Expresso das Ilhas” de 20 de Julho dá a saber que o governo anterior ocultava as recomendações do FMI, só para não expor publicamente a censura a algumas das suas políticas internas.
     Por exemplo, o FMI sentenciou, na altura em que veio a lume a ideia megalómana da construção da “Cidade Administrativa” na Praia, que não aprovava semelhante projecto. Por isso é que tudo ficou no papel, pois não fora a crise mundial, com as restrições ao crédito daí resultantes, o mais certo teria sido avançar com essa monstruosidade, que iria fazer disparar a dívida do país para níveis ainda mais gravosos.
     Mais, afinal sabe-se agora que o FMI mandou há quatro anos (2012) suspender o programa “casa para todos” por entender que o investimento público deveria ser de outro jaez, primando por uma selectividade que favoreça o crescimento qualitativo da economia. Além do mais, não havia garantias de que o programa fosse economicamente sustentável, e isso numa altura em que a dívida pública já ostentava sinais de manifesta perigosidade. Mas o governo de então fez orelhas moucas porque a promessa de casa para todos era a bandeira eleitoral com que pretendia, entre outros estratagemas, manter-se no poder.
     Porém, tudo acabou por ruir porque falharam os pressupostos para o financiamento que fora gizado (mais uma vez a crise). Por outro lado, a procura dessas casas não teve o resultado que se esperava, dado que as famílias a que se destinavam não tinham um rendimento capaz de garantir os respectivos encargos, como aliás o demonstrou a fraca adesão popular ao projecto. Assim, será de concluir que o governo não teve os devidos cuidados prospectivos, sobretudo no que ao segundo requisito diz respeito? É provável que sim.
     Mas o mais grave é que a falência do programa, que fora encarado como passível de revitalizar as empresas de construção civil cabo-verdianas, acabou por ditar a sentença de morte do sector. 
     O governo justificava a necessidade do programa com o défice habitacional em Cabo Verde: défice quantitativo de 40.776 habitações e défice qualitativo de 66.013 habitações, conforme reza o jornal aqui citado. Mas aqui é que a coisa fia fino. Tais défices devem registar-se com maior incidência onde houve aumento demográfico em consequência da política centralista do governo. Julgo que quem passar pelas ilhas da periferia encontrará inúmeras casas desocupadas, pelo facto de os seus donos ou inquilinos terem debandado para a Praia e também para S. Vicente, à procura de trabalho onde a oferta era mais garantida. 
     Basta reparar no galopante crescimento demográfico observado na ilha de Santiago, em especial na cidade da Praia, para logo se perceber a flagrante relação de causalidade entre a oferta de trabalho e o crescimento populacional. O mesmo aconteceu, mas em grau consideravelmente menor, na ilha de S. Vicente. As populações de Santo Antão têm S. Vicente mais à mão para resolver os seus problemas de emprego, ocasionados pelas secas e também pela pouca atenção dada ao investimento nas infra-estruturas agrícolas da Ilha das Montanhas. Para um rural santantonense é muito mais fácil e barato rumar a S. Vicente para arranjar trabalho, mesmo que esta ilha não passe hoje de uma miragem em relação às suas antigas capacidades económicas. Com efeito, é na Praia que se concentra a maior parte do aparelho do Estado e onde houve lugar à maior parte do investimento. Por conseguinte, é impossível não relacionar o défice habitacional com uma ocupação desigual do território.
     O que é um terrível paradoxo é o programa “casa para todos” ter determinado a falência do sector de construção civil e com isso provocando uma drástica redução da oferta de trabalho, seja na Praia ou em S. Vicente. Na verdade, o problema já não se restringe ao mero circunstancialismo habitacional, pois acabou por ter efeitos perversos na oferta de trabalho e, consequentemente, na sobrevivência de muitas famílias.
     Daí concluir-se que as condições de vida nas ilhas poderiam ser hoje diferentes, acaso tivessem sido aplicadas as ajudas externas e o financiamento do Estado de uma forma mais equitativa no território. Certamente que o tal défice habitacional seria bem menos expressivo, na medida em que as necessidades de habitação obedeceriam a um maior equilíbrio entre as ilhas. No entanto, outra forma de acudir ao sector da habitação seria, por exemplo, a reabilitação das “moradas” dos centros urbanos, onde existem inúmeras casas desocupadas e por isso em estado de degradação, o que, ainda por cima, tem o ónus de desfeitear a paisagem urbana das nossas cidades.
     Entretanto, à parte esta questão aqui abordada, o FMI, conforme se pode ler no Expresso das Ilhas, tem estado em cima do governo a chamar a atenção para a urgência de medidas que promovam o crescimento económico e resolvam a situação crítica em que se encontram as empresas do sector público. É que está a causar sérias preocupações o problema da dívida do país, o qual, condiciona ou pode mesmo travar futuros financiamentos da economia.
     Com isto tudo, não é minha intenção sugerir culpas partidárias sobre os actuais problemas de Cabo Verde. Penso que nenhum dos partidos do arco da governação pode enjeitar responsabilidades quanto às políticas de fundo que foram adoptadas no passado e nos conduziram a uma situação de bloqueamento. O modelo de organização político-administrativa de Cabo Verde tem a sua matriz no centralismo e na concentração do Estado na cidade capital. Embora o partido do actual governo tenha feito promessas eleitorais sobre a descentralização e o estudo de um modelo de regionalização, temo que tudo não tenha passado de simples estratagema eleitoralista. Sabe-se que, uma vez no poder, a primeira medida tomada, e com escrupuloso consenso entre os dois principais partidos, foi a aprovação de um Estatuto Especial para a cidade da Praia. Como se passassem por aí as verdadeiras prioridades nacionais, que são muitas e vária índole! Pudera, na cidade capital é onde as duas principais forças políticas têm instalados todos os seus interesses – políticos, profissionais, pessoais e familiares. Descentralizar/desconcentrar equivale a mexer profundamente com isso tudo.
     Sem querer ser pessimista, diria que é pouco animadora a situação da nossa terra. Não sei qual será a saída para o futuro, ou se há mesmo qualquer saída, sendo previsível que a situação se possa agravar ainda mais com os actuais impasses de uma União Europeia cada vez mais sintonizada com a lógica do capitalismo e sem credibilidade para pleitear na diplomacia internacional.

Tomar, 21 de Julho de 2016

6 comentários:

  1. Bom texto, como sempre, e boa foto de quando o Adriano esteve na Suíça, aquele país que fica entre a república do Rossio e o reino da Praça da Figueira.

    Braça geográfica,
    Djack

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  2. Estes dois projectos (Casa para Todos e Cidade Administrativa) quase bilionários, numa terra miserável, foram sempre criticados abertamente, nas edições online dos jornais, nos blogues e no facebook, por nós como Elefantes Brancos e sumidouros de dinheiros. A oposição, do MPD e da UCID, andava escondida ou criticava timidamente, pois como sempre conivente. E o FMI deu-nos razão, só que nunca soubemos pois a informação foi escondida. Quem em CV criticou em devido tempo as megalomanias a que assistimos nestes últimos 15 anos?

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  3. Caro Adriano
    Saudações e um abraço

    Com a devida vénia e consciente da minha iliteracia, permita-me que responda ao seu contundente e oportuno artigo, na parte que diz respeito ao programa governamental " Casa Para Todos":

    Tanto quanto julgo saber ( por leitura diversa e expressa na Imprensa) este programa estava enquadrado num substancial empréstimo de (S&O) 200 milhões de euros, concedido pelo (na altura)Instituto Cooperação Portuguesa.

    O "milando" arrebentou quando a oposição em peso arrasou a (s) virtude (s) do projecto,e, dando realce à abusiva falta de pagamento atempado, às empresas empreiteiras....Enfim, foi um "pô" boca na trombone, na tambor e cornetim!

    Ao ponto de "obrigar" ministro das OP a desculpar-se, d'uma forma e em termos ultrajantes de que a culpa dos sucessivos atrasos da obra e pagamentos era da responsabilidade do Governo português..., uma vez que as respectivas faturas já estavam na posse do Instituto... estando por pagar cerca de 16 milhões de euros...

    Portanto, o FMI nada tem a ver teve com este projecto.
    .....

    Como me senti duplamente ofendido com as palavras indelicadas do Sr Ministro, fiz chegar uma cópia ao IC Portugal.

    Melhores e respeitosos cumprimentos

    Amendes

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    1. Caro Mendes, fez muito bem em colocar a questão, para ajudar a clarificar algum ponto em que eu possa não ter sido explícito, pelo que agradeço o seu comentário. Só agora respondo porque estive fora o dia quase todo.

      Começo por esclarecer que nada tenho contra o programa, porque medidas desta natureza fazem parte do meu ideário político ou do meu imaginário de justiça social, como se queira. Só que, sendo Cabo Verde um país muito pobre, há necessidade de reflectir aturadamente antes de se gastar o pouco que existe. E se tudo se faz com supostos fins eleitorais, mais ominosa é ainda a pouca atenção dada aos actos políticos. Se fui algo “contundente”, como diz, é precisamente por essa razão.

      No entanto, se em relação ao programa casa para todos se aceite o erro político, no tocante à ideia da construção da cidade administrativa na Praia, a megalomania raia o absurdo e não tem desculpa.

      Se reler o meu texto, verá que eu não disse que o FMI financiou o projecto ou que tal lhe foi proposto. De facto, e como bem diz, o projecto teve a participação de um financiamento português da ordem de 200 milhões de euros, a juntar aos encargos directamente assumidos pelo governo cabo-verdiano. O que provavelmente aconteceu foi o FMI ter considerado o projecto de duvidosa sustentabilidade e um uso de dinheiros públicos pouco consentâneo com as recomendações que vinha fazendo em matéria de investimento produtivo.
      Aqui também permito-me dizer-lhe que não concordo que as instâncias internacionais, mesmo aquelas que concessionam financiamentos aos países em dificuldade, interfiram nas decisões soberanas dos governos, desde que não violem gravemente as regras e os princípios. Basta ver o que está a acontecer em Portugal. Mas o problema é quando um país está nas mãos dos credores ou deles depende para fazer funcionar a sua economia. Daí que eu até entenda que o anterior prmeiro-ministro não tenha feito caso da recomendação do FMI sobre esse projecto de casa para todos. Pena é as dúvidas sobre a sua sustentabilidade não terem tardado a confirmar-se, sendo verdade que houve incumprimento do Estado de Cabo Verde para com as empresas construtoras, a partir do momento em que o programa não teve o respaldo que se esperava por parte das famílias carentes de habitação. Na altura, o José Maria Neves reconheceu “as dificuldades que as famílias carenciadas tiveram no acesso ao crédito bancário, o que levou o executivo a impor uma ‘política de renda resolúvel’, para facilitar o pagamento das prestações”. Admitiu que essa medida acabou por trazer "dificuldades de tesouraria" à empresa Imobiliária, Fundiária e Habitat, SA (IFH, que gere a linha de crédito do programa), o que inviabilizou o pagamento da contrapartida financeira do Estado de Cabo Verde e levou ao incumprimento no acordo estabelecido com Portugal. Conclusão: o governo não deve ter feito o trabalho de casa, como se impunha.
      Segundo li, o actual governo cabo-verdiano quer renegociar a linha de crédito com o governo português, tencionando fazer os possíveis para que o programa não naufrague. A braços com os seus próprios problemas, não vejo que o governo português tenha grande margem de manobra para responder favoravelmente. Portugal está também em sérias dificuldades financeiras e no país há igualmente inúmeras famílias carenciadas em matéria habitacional.
      Mais duas observações.
      Este caso deve servir de lição para o futuro. Em Cabo Verde o dinheiro não cai do céu e não pode haver perdão para políticas pouco prevenidas no que ao uso do erário público diz respeito. A consequência mais gravosa da falência (ou do impasse) do projecto recaiu sobre o sector da construção civil, que é vital para a criação de emprego.
      Não concordo que este caso sirva de arma de arremesso político senão na medida em que ele deva suscitar uma reflexão de todos sobre o que deve balizar a governação pública em Cabo Verde.
      Um abraço amigo
      Adriano

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  4. Estou habituado aos escritos do amigo Adriano que leio com imenso agrado. Pena as suas sugestões não serem aproveitadas abertamente. Mas, hà indicios de que são utilizadas "en petit comité".
    Portanto, persiste porque não perdes o teu tempo.
    Força !!!

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  5. Adriao faço da tua resposta minha. Não posso estar mais de acordo contigo. É revoltante ver o caldo entornado quando fomos os primeiros a avisar o governo do PAICV a não avançar teimosamente para programas megalómanos. Mas os votos contam mais do que tudo e os egos e o convencimento de uma certa elite maior que o infinito.
    E agora CV está em apuros! Penso que Portugal vai acabar por correr mais uma vez a mão a CV. Há mais ganhos do que perdas em estar eternamente a suportar um país inviável à nascença e agora em pré-falência?

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