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domingo, 4 de setembro de 2016

[9635] - AINDA A REFORMA AGRÁGIA...



Os Acontecimentos de 31 de Agosto de 1981 em S. Antão  e a crise da Reforma Agrária: Um olhar actual e diferente...

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Todos os anos, vem-se comemorando, no dia 31 de Agosto, a data dos incidentes que ocorreram em Agosto de 1981 na ilha de S. Antão em consequência da questão da Reforma Agrária, um projecto proposto pelo governo do PAIGC em 1981, no seguimento da ruptura do Projecto de Unidade Guiné Cabo Verde. Nessa data, havia apenas 6 anos que o PAIGC tinha arrebatado o poder em Cabo Verde no seguimento de um processo conturbado que se iniciou com o golpe de Estado de 25 de Abril de 1974 em Portugal.
O projecto da Reforma Agrária correspondeu a um autêntico tiro no pé do poder, redundando no fim num outro tiro de pólvora seca revolucionária. Considerado um verdadeiro bluff político, foi uma espécie de sarna para o PAIGC se coçar toda vida, e uma mancha indelével na memória do povo da ilha de S. Antão.
Todavia, na altura Cabo Verde carecia de uma verdadeira Reforma Agrária, não aquela que foi apresentada em 1981, por ter sido incompetentemente concebida e implementada. De resto, as pessoas que estavam à frente do projecto não tinham experiência governativa nem tão-pouco conheciam o ‘terreno’ em Cabo Verde. Para além disso, o arquipélago estava do ponto de vista económico em estado indigente, na prática um país inviável, dependente da ajuda internacional para sobreviver, pelo que nem sequer havia o mínimo financiamento para um tão ambicioso projecto, que logo à partida deveria exigir muito investimento e sobretudo recursos humanos à altura. O governo da altura era exclusivamente constituído por militantes do partido no poder, jovens estudantes ou recém-formados imberbes, ex-guerrilheiros, muitos sem experiência profissional, mormente governativa. Arquitectavam-se projectos fantasiosos, sonhos em redor de castelos de areia, concebendo reformas sem curar da sua base de sustentação social e económica. Piorou tudo o facto de a reforma ter sido extremamente ideologizada, devido ao clima político que se vivia então. A Reforma Agrária era uma bandeira do PAIGC: na sua visão messiânica corresponderia a um processo revolucionário de expropriação de exploradores e de entrega de terras a explorados (que as não queriam por solidariedade com os proprietários dos terrenos), uma visão redutora dos problemas do campo em Cabo Verde. O fracasso de uma tal reforma estava, pois, garantido. Mesmo assim, a ser levado a cabo com seriedade e competência, ela deveria ser bem explicada e negociada com as populações, apresentando as suas vantagens sociais e técnicas. Tal exigiria a formação de equipas de peritos especializados nas áreas correspondentes (engenharias e tecnologias agrárias, economia, ciências sociais, etc.) e um aturado estudo prévio da problemática do campo em Cabo Verde, assim como dos diferentes modelos aplicados no mundo. Mas as competências não existiam na altura. O que Cabo Verde então precisava era essencialmente de travar a progressão inexorável das secas, solucionando ou minimizando o problema da falta de chuva, logo ausência de água para a agricultura, modernizar a incipiente e arcaica economia agrícola, assim como atacar os problemas sociais no campo. Ao invés, o projecto foi envolto num discurso revolucionário de circunstância, ainda por cima inquinado por uma verborreia marxista-leninista, como era a moda. Olívio Pires declarou na altura que “a Reforma Agrária é um acto eminentemente político” , “vamos confirmar a total identificação do Partido e Governo com as massas e vamos também provar quem são os verdadeiros amigos do nosso povo, os defensores dos seus interesses mais profundos” . “Reforma Agrária situa-se na luta de classes..”  (Voz di Povo 5/8/81, citado por Humberto Cardoso no livro: O Partido Único em Cabo Verde: Um Assalto à Esperança). Tudo isto criou anticorpos numa população santantonense católica e conservadora, onde a síndrome do anticomunismo estava ainda à flor da pele. Para além disso, a ilha era desde 1974 uma pedra no sapato do PAIGC, pela resistência que as suas populações manifestaram desde logo em relação à penetração das ideias do PAIGC e às mudanças anunciadas pelo seu governo em 1975, uma reacção um pouco similar ao que acontecera no Norte de Portugal em relação às ideias de esquerda. S. Antão era um baluarte da oposição, onde o único partido da oposição, a UCID, embora clandestino, estava fortemente implantado. Havia, pois, um conflito latente com o PAIGC e o seu governo, e bastava um rastilho para incendiar tudo.
É irónico que esta pesada herança da reforma agrária, hoje caia exclusivamente nos ombros do PAICV, o partido herdeiro em linha directa do PAIGC. É preciso recordar que o MPD é também um partido herdeiro do PAIGC, apesar de ter nascido em finais da década de 80, quando as mudanças impostas pela Perestroika de Gorbatchev implicaram a queda dos regimes de partido único. Aquele partido, na realidade, nasce de uma costela do PAICV; de resto uma parte significativa dos seus actuais membros só abandonara o PAICV em vésperas da grande derrota deste nas eleições de 1992, enquanto muitos cidadãos livres e apartidários davam o litro na oposição em Cabo Verde e na Diáspora, contestando abertamente ou clandestinamente o regime de Partido Único, tendo sido criado para o efeito a UCID em 1976. É preciso lembrar que grande parte da elite intelectual cabo-verdiana aderira aos ventos da mudança sob a égide do PAIGC, convertendo-se num ápice em simpatizantes ou militantes da causa, embora exista uma grande dúvida em relação ao ‘povo’, uma vez que em 1975 não foi consultado e não lhe foi deixado exprimir livremente a sua opinião sobre o seu destino. Ser da oposição nessa altura era muito mal visto, conotado com inimigos do povo e de Cabo Verde, um país levado ao rubro pelo discurso revolucionário: Cabo Verde seria uma cidadela revolucionária sitiada por forças da reacção com tentáculos internacionais. O silenciamento da oposição, que se incarnava na UDC e na UPICV, deixou um vazio político total em Cabo Verde, um país polarizado, situação que nunca mais foi revertida. Olhando para trás 40 anos, podemo agora questionar-nos como seria este país se a dita oposição tivesse vingado como partido no xadrez político do recém-nascido país. De certeza, bem diferente seria Cabo Verde, pois teria poupado as derivas extremistas e aventureiras. Mas, para o PAIGC, estava fora de questão eleições directas e livres, face à possibilidade de perder o poder para a oposição pela via democrática, pondo em causa a sua narrativa e a sua legitimidade pretensamente histórica, de ser a única Força, Luz e Guia. Desta forma, somos todos ou quase todos um pouco paigcistas, logo co-responsáveis pelo regime instalado em 1975. É claro que ficam de fora os que se opuseram declaradamente ao regime, assim como os que começaram a criticar ponctualmente os seus projectos. Todo o busílis da problemática do regime de Partido Único e das crises que ele engendrou reside neste paradoxo. De resto, é a problemática dos sistemas autoritários.
Assim, não faz de todo sentido, 35 anos passados, partidarizar ou clivar a questão entre os dois partidos rivais, entre os que são do MPD, logo contra a Reforma Agrária, e os que são do PAICV, logo favoráveis. Com efeito, aquando dos conflitos políticos que ocorreram em Cabo Verde entre 1974 e 1981, quase todos estávamos, pelo menos a elite, no mesmo barco, uns apoiando fanática ou cegamente as políticas do partido no poder − o PAIGC, outros moderadamente, e muitos estavam calados. 
A dúvida que persiste é se o MPD como partido não terá tido uma responsabilidade acrescida nesse projecto de reforma agrária, na medida em que o mesmo foi suportado pelas alas mais à esquerda, ou radicais, do PAIGC, que mais tarde se separaram deste partido quando o reduto dos comandantes da luta armada na Guiné Bissau se sentiu com força e os pés fincados em Cabo Verde para se livrar deles. Na realidade, relativamente à dita ala, tratava-se de jovens imberbes e imaturos, estudantes liceais no país ou universitários em Lisboa, com uma cultura exclusivamente livresca da revolução, um pouco no ar do tempo de Maio de 68. Face ao punhado de experientes, maduros e tarimbados combatentes da Guiné, que já tinham percorrido meio mundo e conhecido vários países e regimes, os ‘jovens’ burgueses contavam pouco. Todavia, e paradoxalmente, são estas alas de jovens (do leninismo, estalinimo, trotskismo, maoísmo, etc) que deram em 1974 conteúdo e suporte ideológico ao PAIGC, um partido cuja coluna vertebral ideológica era Amilcar Cabral, o seu único ideólogo e intelectual, e que ficou órfão com a sua morte. Chegados a Cabo Verde muitas décadas passadas, num terreno quase estranho, os combatentes da Guiné socorreram-se do conhecimento do ‘terreno’ e, sobretudo, dos conceitos adquiridos por estes ‘jovens’ nos campus universitários de Portugal durante as décadas de 60 e 70. A deriva marxista-leninista daquele partido até à cisão no seu seio, em princípios dos anos 80, não será alheio a este contexto, embora o PAIGC estivesse sempre entre uma tenalha formada pelo que restava da máquina administrativa, dita colonial, situado politicamente entre o centro e a direita, e o conglomerado de jovens ditos revolucionários de extrema esquerda. Estes, embora a maioria nem sequer fosse considerada militante do PAIGC até 1974, muitos sendo militantes do PCP e de outros partidos de esquerda portuguesa, constituíam, pois, a ala progressista e intelectual do PAIGC, conhecida como a ala de Lisboa. A ala de Conacri (na realidade residente em várias capitais africanas e na Europa do Norte) era uma ala de matriz africana ou africanista, do estilo sekuturista/sengorista/huefueboignista (alguns eram quadros radicados na então Guiné portuguesa, outros faziam parte da Diáspora cabo-verdiana nas colónias francesas), pouco intelectual, pouco ou menos dada às ideologias e teorias revolucionárias, era muito pragmática e propensa a alianças com os ex-funcionários ‘dito coloniais’, a partir do momento em que se submetessem ao novo poder instalado. Esta ala teria, pois, uma perspectiva de poder muito terra a terra, inspirando-se os seus elementos nas ditaduras africanas, já sabiam o que era o poder e como mantê-lo. O que os movia exclusivamente era a conquista e a conservação do poder, legitimados pela participação na guerra da Guiné.   
Para além deste contexto, é preciso integrar a crise da Reforma Agrária num contexto mais abrangente, associado à própria natureza do regime instalado e aos conflitos engendrados no Norte de Cabo Verde. A tentativa de nascimento de um partido da oposição foi matada no ovo em Dezembro de 1974, por uma acção conjunta entre o MFA e o PAIGC. Saldou-se tudo numa derrota humilhante da oposição nascente (o seu esmagamento) e a conquista triunfal do poder pelo PAIGC. Tratou-se de um período conturbado, durante o qual houve coacção psicológica, intimidação e perseguição de cidadãos, encarceramento no Tarrafal de dezenas de outros, forçando ao abandono de Cabo Verde de muitos dos seus filhos e depois, quando o facto estava consumado, de milhares de cidadãos de todo o arquipélago, acusados de reaccionários. Por outro lado, não se pode esquecer que S. Vicente, já em 1977-78 fora o palco da primeira crise do regime do PAIGC. Com efeito, logo após a Independência o regime endurecera a sua atitude para com esta ilha devido o renascer das cinzas da oposição, tanto em S, Vicente como na Diáspora, tendo havido um incremento de uma actividade política considerada subversiva pelo regime. Concomitantemente, já era visível o descontentamento e protesto dos comerciantes que emitiam os primeiros sinais de socorro, dado que a ilha soçobrava lentamente devido à hemorragia humana e económica e à ausência de alternativas,  assim como de projectos viáveis para a sustentabilidade da sua economia. Os comerciante tinham razão, pois dava-se início ao lento e inexorável processo do Centralismo do país na Capital, que ia marginalizar e paralisar aquela que se constituíra, havia mais de um século, no principal pólo económico, cultural e intelectual de Cabo Verde. Para o PAIGC, S. Vicente, embora aparentemente converso à sua causa em finais de 1974, já não era tão fiável como parecia, tendo ido longe demais no seu radicalismo revolucionário em favor do mesmo partido durante o período em causa, pelo que todo o cuidado deveria ser pouco. Com efeito, circulavam na ilha rumores forjados de intentona contra-revolucionária e de atentados a instalações e infra-estruturas da ilha, a serem perpetrados pela oposição com o intuito de derrubar o poder recém-instalado. Uma onda de repressão abateu-se sobre S. Vicente no período 1977-78 que resultou em prisões arbitrárias de várias personalidades conceituadas na ilha, assim como tortura e morte de dezenas de cidadãos. O destacado intelectual cabo-verdiano Baltasar Lopes chegou a ser preso domiciliariamente, acusado de membro da oposição e participação em actividades conspirativas. A ilha cedeu face ao argumento da força, mas não se submeteu.
Perante estas considerações, parece-me demasiado redutor individualizar a responsabilização pelos acontecimentos ocorridos em Cabo Verde de 1974 a 1991, em que a tentativa de imposição de uma Reforma Agrária configura os limites a que chegou o radicalismo político e a repressão policial. É todo o sistema gerado no contexto revolucionário da independência que criou e gerou este e outros problemas, que deve ser responsabilizado. Deste modo, julgo que o problema não pode circunscrever-se ao processo da Reforma Agrária acusando alguns bodes expiatórios do PAICV. As responsabilidades repartem-se horizontalmente e verticalmente e inscrevem-se num processo revolucionário em que a rede de cumplicidades é tentacular. Apesar de se viver em clima de democracia, na minha opinião, não existem condições políticas para apurar toda a verdade e ajustar contas com o passado, como alguns pretendem. Num país de festivais e carnavais, estaríamos perante um perigoso teatro de caça às bruxas e de linchamentos políticos.
31 de Agosto de 2016
José Fortes Lopes

5 comentários:

  1. Os Acontecimentos de 31 de Agosto de 1981 em S. Antão e a crise da Reforma Agrária: Um olhar actual e diferente
    Como o título do artigo esclarece trago aqui um olhar actual e diferente aos eventos dramáticos em torno da crise crise da Reforma Agrária em S. Antão de 1981. Como defendi Cabo Verde carecia na altura de uma verdadeira Reforma Agrária, não aquela que foi apresentada em 1981, por ter sido incompetentemente concebida e implementada. A reforma tendo sido apresentada como uma bandeira revoucionária, na sua visão messiânica, correspondendo a um culminar de um processo revolucionário era a garantia do seu fracasso.
    Considero inútil a tentativa de partidarizar ou clivar a questão entre os dois partidos rivais, entre os que são do MPD, logo contra a Reforma Agrária, e os que são do PAICV, logo favoráveis. Ao longo do artigo enquadro o contexto abrangente da história do periodo revolucionário 1974-1981 úteis para esclarecer a juventude e reavivar a memória de uma história que se esfumou no tempo, e que é muito mal contada. Não pretendo com este artigo apresentar verdade toda, mas simplesmente um ponto de vista.

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  2. A ideia duma reforma agraria em Cabo Verde data-se dos anos cincoenta. A leitura das obras de josué Castro, médico e geografo do nordeste brasileiro,(Gegogradia da fome e geo-politica da fome) teria sido muito discutida em Cabo Verde. A cana secarina seria a responsavel das fomes no nordeste brasileiro e em Cabo Verde pelo se exgia a sua substiuiçao por outras plantas. E Amilcar Cabral como engenheiro agronomo, preocupado com as secas em Cabo Verde, alinhava-se na necessiddade duma reforma agraria em Cabo Veerde que continua necessaria para corresponder às necessidades da populaçao, integrando-o no seu programa maior do paigc. Infelismente a reforma agraria teria de ser preparada com os agricultores e apoiada por tecnicos e meios financeiros que o paigc não possuia. Foi o maior erro do Paigc que saia duma derrota na Guiné Bissau.A emigraçao levantou-se em massa contra o paigc com manifestaçoes em todos os cantos do mundo. Em Cabo Verde somente o jornal Terra Nova ousou condenou o histerismo do paigc e seus militantes , que depois venderam os terrenos oferecidos. Portanto ha' necessidade duma grande reforma agraria em Cabo Verde pois Cabo Verde tem condiçoes de produzir para o seu sustento. Temos agua a se perder no mar, faltam barragens, tecnicos, escolas agricolas e meios financeiros para avançar com um tal projecto necessario à sobrevivencia de Cabo Verde. A democracia exige-a...

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  3. Sim Luiz reforma agraria para modernizar a agricultura tanto para a autosuficiência como para a exportação pode ser um sonho realizável. Repara Israel é tão seco como CV e hoje tem uma agricultura moderna que exporta até produtos tropicais.
    O prblema é quando as coisas começam torto...

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  4. Parece anedota...

    Em 1911/12 os agricultores de Santo Antão, revoltaram-se contra o Governo devido ao exagerado valor que Alfandega cobrava pela exportação de laranja (a maior parte apodrecia ou era comida de gado)... O Governo cedeu baixando a respectiva taxa.
    Só que, à boa maneira portuguesa, subiu a da importação das embalagens!
    Lido na: Voz de Cabo Verde

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  5. O texto do José é perfeitamente elucidativo sobre uma politização que não deve fazer-se à volta da questão, ao pretender-se que o actual PAICV deve arrostar sozinho com o legado de culpas pelo insucesso dessa tentativa de reforma. É que muitos dos que hoje se movimentam na cena política cabo-verdiana, tendo transitado do antigo partido único para outras formações, designadamente o MpD, foram ideólogos de um processo que não terá sido convenientemente precavido e atento à mentalidade da nossa gente. Neste ponto, aliás de importância fulcral, o José explica-se muito bem, sendo conveniente que cada um assuma as suas responsabilidades pelo passado.
    Quanto ao resto, o Luiz dá também uma boa achega ao lembrar que uma reforma agrária bem concebida está por fazer em Cabo Verde. Direi mesmo que é um imperativo nacional. Sem partidarização, sem precipitações, olhando pelo que de positivo se faz noutras paragens.

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