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sexta-feira, 16 de setembro de 2016

[9679] - AS CRÓNICAS DE ARSÉNIO DE PINA...


Conta-me como se vivia nessas épocas

I
                                                         
Em idade já sou um macróbio. Acontece que, por vezes, ponho-me a recordar tempos antigos em face do que vou vendo, observando e reflectindo nos dias que correm. Talvez tenha algum interesse, tanto para os jovens como para os da minha idade e com pouco menos anos nos costados conhecer ou recordar algumas realidades ligadas à saúde, educação, desenvolvimento e vivências antigas de macróbios como eu.

Na década de quarenta (1942/43) do século passado, a minha família foi parar à Ilha Brava, ida do Fogo onde vivemos cerca de cinco anos. Pouco me recordo desta ilha, por ser muito criança, embora tenha ficado indelevelmente impressa na minha memória, os mortos, por fome, da crise terrível por que a ilha passou, debaixo da varanda da nossa casa, e do pedido um bês di boca que ouvíamos através da persiana da sala de jantar, nas horas das refeições, cujo odor atraía os famintos que deambulavam pela ruas. Nessa época população rondava os 160.000 habitantes e o orçamento da colónia era de cerca de 60.000 contos.
Poucos meses após a chegada, o meu pai foi destacado para o Sal para combater uma epidemia de tracoma que grassava entre a tropa do Corpo Expedicionário Português aí estacionada, tendo a família ficado na Brava. 1943 foi ano de chuva que se seguiu a anos de seca e fome que mataram dezenas de milhares de pessoas, sobretudo nas ilhas agrícolas do Fogo, Santiago, S. Nicolau e Santo Antão. O livro O Processo de Hermano de Pina, subsídios para a história da fome em Cabo Verde descreve algo dessa catástrofe na Ilha do Fogo e a incúria do poder colonial. Até haver produção agrícola, as carências alimentares eram enormes e evidentes; lembro-me da festa lá em casa quando recebemos uma encomenda, do Sal, do meu pai, constituída essencialmente por pequenos sacos contendo açúcar, dado que o café com leite era tomado amargo ou com mel de cana de que algumas pessoas ainda dispunham. Nessa época, não me lembro de nenhum carro circulando na ilha, mas havia-os em garagens, já inoperacionais, como relíquias do século anterior, que os emigrantes traziam dos EUA.

Da Brava embarcámos para S. Vicente, por volta de 1944, e fomos morar em Fonte Cónego, numa casa alugada que pertencia ao senhor Caquim Morais, tendo por vizinhos a mãe da Fininha (actual esposa do Soulé), Titu e Daniel, não muito longe, Nha Mari Paulina, uma simpática senhora que tinha um bar na esquina, sendo eu grande cliente dos seus drops, a família Ramos Pereira e do Bitim Leite, este organizador de partidas de futebol num largo atrás da casa onde eu morava. Futebolista titular, contou-me, há tempos, para diminuir as minhas habilidades futebolísticas, que, como eu era lofa (aselha) no futebol, punha-me sempre como suplente.
Com o meu pai no Sal, contraí febre tifoide, que me ia levando desta para melhor. Como, nessa altura, toda a febre alta persistente era sinónimo de paludismo, sujeitaram-me a injecções de quinino, de que guardo nas nádegas alguns nódulos de enquistamento. Por a febre não abrandar com a medicação, foi-me tirado sangue para análise no laboratório militar da equipe médica do Corpo Expedicionário, que diagnosticou febre tifoide. Tratamento específico, nenhum, que ainda a era antibiótica não existia, e fui resistindo à base de dieta rigorosa que me ia matando à fome e desnutrição, por ser voz corrente e doutrina médica, que os intestinos ficavam finíssimos como papel de mortalha e qualquer comida mais sólida poderia levar à sua perfuração. Durante um mês fui alimentado à base de caldo de galinha sem um grãozinho de arroz nem fibra de carne, sumos coados e água. O meu pai nem teve autorização para vir ver-me, e a minha mãe ia-me animando que, pelo Natal, já poderia comer e matar a fome. Tive de aprender a andar no fim da doença, tal a fraqueza das pernas.
Pelo Natal, fui para a mesa familiar, embora ainda sem autorização para comer, a não ser caldos. Ao cabo de algum tempo, sob a vigilância dos manos, da minha mãe, de uma empregada e de duas velhotas que moravam connosco – a tal família alargada – levantei-me da mesa e fui para o quarto. A minha mãe, para me consolar, foi ter comigo; encontrou-me a roer o osso de uma perna do pato que tinha surripiado sem que ninguém tivesse dado por isso. Se tivesse demorado mais tempo a procurar-me, seguramente, que nem osso teria encontrado, tamanha era a minha fome. Mesmo hoje, não sei como consegui botar a mão na perna de pato sob tantos olhares vigilantes.
Houve um alvoroço dos diabos com a minha proeza e mandou-se chamar o Dr. Sócrates da Costa, que chegou imediatamente para me examinar, receando a minha mãe que tivesse comprometido tanto cuidado na condução da terapêutica. A constatação do Dr. Sócrates foi que estava com o olhar mais vivo, não havendo motivos para alarme. Levantou-me o rigor da dieta e isso foi remédio santo para a minha recuperação. Actualmente, sabe-se que era o rigor da dieta que agravava a evolução da doença por faltarem proteínas na alimentação para robustecer as resistências naturais do doente à doença. O que se deve evitar é o excesso de farináceos e hortaliça que podem provocar distensão, por gases, dos intestinos.

De S. Vicente fomos parar a S. Nicolau, para onde fora transferido o meu pai depois do trabalho no Sal. Isso deve ter sido por volta de 1945 por me lembrar da festa lá em casa com o fim da Segunda Guerra Mundial, que o meu pai seguia religiosamente pela rádio. Meteram-me na escola oficial do professor Pera Macias e lembro-me de ter tido por companheiros o Humberto Pascoal e o Bertol. Como passava a vida na brincadeira, não venci o ano, até porque o professor deixava muito a desejar como pedagogo, abandonando os alunos menos aplicados. Somente no ano seguinte é que entrei na linha com o método do professor Almeida Gominho, ex seminarista competente e rigoroso no seu método de ensino, que não permitia que nenhum aluno ficasse atrasado ou perdesse o ano. Ia tudo pela mesma bitola, e com mais ou menos varadas e palmatoadas, se o aluno não mudasse de ilha ou não morresse, concluiria o 2º grau com sucesso. Foi, portanto, o professor Gominho que me tirou do analfabetismo, tinha eu dez anos! Pouco tempo após a minha chegada a S. Nicolau conheci os filhos do Tenente Pélico, deportado político da Revolução da Madeira, e entre mim e um dos filhos, o Chiquinho, estabeleceu-se uma amizade e cumplicidade que ainda perdura. Ele já frequentava a 4ªclasse, eu ainda analfabeto chapado. Caçávamos pardais à fisga e tínhamos uma pontaria fantástica, a ponto de a vizinhança dizer que Arsinim e quel fidje de Pelque ês tâ cabâ qu´pardal dês terra. Acompanhava, muitas vezes, o Chiquinho e o irmão Lutcha nas caçadas às galinhas do mato e nunca vínhamos com as mãos vazias. Ajudava-os também no fabrico de cartuchos, desde a pólvora (feita com clorato de potássio e enxofre, da Botica), carvão vegetal, que nós próprios produzíamos, e pesávamos em balança de precisão do pai, e bagos de chumbo que preparávamos de tubos de canalização, provenientes de S. Vicente, que derretíamos. O fulminante era produzido de cabeças de fósforo, e para as buchas havia instrumento próprio. Os cartuchos vazios eram conservados religiosamente porque nem fita adesiva havia para a sua recuperação quando se estragavam, vindos, nessa altura, de Lisboa dos amigos do pai. Não há muito tempo, numas férias combinadas com o Chiquinho, vindo dos EUA, repetimos uma caçada às galinhas, com outro amigo do peito, Djack Pinheiro, pelas bandas da Praia Branca e Ribeira Prata, mas de carro, que as canetas já não dão para as andanças que fazíamos nessas épocas.

Em S. Nicolau vivia numa casa familiar, que pertencera ao meu bisavô Arsénio Daniel Fermino, chamada Tantchom, devido ao seu enorme tanque revestido de azulejos, que parecia uma piscina, e onde a meninada da Stancha (Vila) aprendia a nadar. A propriedade era enorme e ficava no centro da Vila da Ribeira Brava, com uma enorme variedade de árvores de fruta, desde papaeiras de vários tipos, mangueiras, bananeiras de todos os tipos, laranjeiras, figueiras, tangerineiras, coqueiros, mamoeiros, fruta-pão, palmeira, cibe, e um sector para criação de animais – galinhas, patos e porco. A propriedade já não pertence à família por ter sido vendida ilegalmente (sem procuração dos herdeiros) por um dos meus tios, após a morte do meu pai.
Nessa altura não havia em S. Nicolau nenhum automóvel, nem mota ou bicicleta e o transporte era feito por animais, cavalos, mulas e burros. A era dos antibióticos nem das vacinas e especialidades farmacêuticas ainda não tinha chegado à ilha, nem tão pouco a anestesia local, fazendo-se as extracções dentárias e suturas de ferimentos a sangue frio. Os medicamentos oficinais eram feitos na botica da delegacia de saúde, à base de xaropes, poções, linimentos, pomadas, substâncias activas em papéis e uma ou outra especialidade farmacêutica, tipo aspirina, quinino, enteroviofórmio; não havia farmácia particular. Somente em S. Vicente e Praia é que se poderia encontrar algumas especialidades farmacêuticas e anestesia local, e relativamente a especialistas, somente o médico-cirurgião era previsto no quadro de saúde da colónia e dotado no orçamento, um na Praia e outro em S. Vicente, isso praticamente até à à independência. Havia um estomatologista em S. Vicente, no privado, e por volta de 1966, outro na Praia, no Estado. Enfim, morria-se de dor de barriga ruim (apendicite) nas ilhas, de meningite e outras doenças infeciosas somente com a consolação da extrema-unção. A meninada que resistia a todas essas doenças infecto-contagiosas sem uma única vacinação, excluindo, por vezes, a antivariólica nas escolas, era realmente de constituição fisica robusta e resistente a tudo, e somente poderiam morrer atropeladas – bem poucas, por falta de automóveis -, por queda de rocha, afogamento ou por malnutrição (fome) nos anos de crise agrícola. Não admira, pois, que a mortalidade infantil fosse tão elevada, mas isso não constituía preocupação para o regime colonial. Quanto às crianças que sobreviviam, isso deveu-se à sua robustez natural.
A alimentação era variada, nos bons anos agrícolas, à base de catchupa com carne de porco salgada, cuscuz com manteiga-de-terra a substituir o pão (inaugurou-se na Stancha uma padaria durante a nossa estadia na ilha), peixe frito – raramente peixe cozido por o azeite de oliveira ser caro – e caldo de peixe, feijoada com chouriço ou linguiça e o tradicional modjo com carne de capado ou de cabrito. Não me lembro de ter comido bacalhau, nem sardinha, até à data de partida para Moçambique, em 1950, de passagem por Lisboa. Desconhecia-se a batata frita, até porque os óleos vegetais não tinham entrado na dieta do cabo-verdiano e eram substituídos pela banha de porco. De bebidas alcoólicas, excluindo o grog, desconhecia-se a cerveja e os refrigerantes, dando-se preferência aos sumos naturais e à água de fonte. 
                                                                                                    [continua]
                                                          

5 comentários:

  1. Momentos inolvidàveis que desfilam, tanto os bons como os menos bons, sucedidos antes do Arsénio ter nascido e... depois, pouco depois. Raros são os que procuram saber desse passado que constitui a nossa Histôria tão rica de eventos e se comprazem e dar palmas ao que sucedeu hà bem pouco. Se o presente vale ou passado, com a sua genuinidade, vale mais ainda. Experimentem analizà-lo.
    Vou aguardar pela continuação e garanto-vos que o contador de passagens vai dar um pulo.
    Braças e mantenhas.

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  2. Excelente testemunho de vida

    Como gostaria de saber expor da mesma forma o que foi a minha meninice aqui na "metrópole" na mesma época: -- Ter de levantar- me de madrugada para ir para a bicha do pão.( ainda guardo algumas senhas de racionamento )Minha mãe ralhar comigo por jogar à bola... medo da tuberculose... dizia-me: Não vês que há sanatórios por todo o lado! Curar a maleitas com algodão canforado e papas de linhaça... nem sequer se sonhava com antibióticos! Ir quase descalço para escola... o índice de alfabetismo era trágico.... a maquina de costura da minha mãe foi empenhada várias vezes... para termos um pouco de azeite tínhamos de ir à aldeia do meu pai (Degracias) ficava a vinte e tal quilómetros de Coimbra... da estrada principal até lá não havia estrada, meu tio esperava-nos na Venda Nova que distava sete quilómetros... percorridos a pé... Os doentes No regresso o azeite tinha de estar bem escondido por causa da guarda não o confiscar ... Os doentes eram transportados em padiola em cima de burros... água só do fontanário, luz de candeeiro!

    A mesma miséria da "mãe" das colónias!

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    1. Rapaz, fazes-me lembrar de como levavam os doentes ao hospital. Vôs tinheis burros mas... no Mindelo ainda as mulas e os carros não se atreviam passar pela cidade. Os doentes eram transportados numa cadeira de verga (importada da Madeira) com um varapau e a ajuda de três homens. Conforme o estado do paciente ouviam-se gemidos ou gritos.
      Vamos ouvir mais coisas.

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  3. O Arsénio é um excelente contador de história. Aqui traz-nos a história da sua vida/família. Deliceei

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  4. Mas que delícia de narrativa, Arsénio! Lemos e revemo-nos em muito do que dizes, com as recordações a invadir-nos em torrente impetuosa. E também com uma lagriminha no canto do olho, porque vêm à memória os nossos pais e as nossas emoções juvenis.
    Estou a ver que temos em comum a residência em Fonte de Cónego. No mesmo largo joguei futebol. Na mesma esquina conheci a Mari Paulina, em cujo estabelecimento comprava rebuçados, sucrinha e bolo de mel. Não sei se te recordas, Arsénio, de ela ter pendurada na parede uma foto emoldurada do seu "fidje motche" com um boné de capitão de navio. Ele andava embarcado mas nunca apareceu por lá.
    Mas claro que quando por lá andei já tinhas saído. Boas recordações, mesmo aquelas mais duras e penosas que todos nós trazemos no cardápio das nossas vidas.
    Quero só esclarecer que a Fininha é a mulher de sempre do meu tio Carlos Soulé. Como dizes "actual esposa", pode ficar a ideia de que teve outra antes.

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