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terça-feira, 1 de novembro de 2016

[9865] - CARTA DE SANTO ANTÃO...


Hoje vamos segressar à ilha de Santo Antão, com um apaixonado por essa terra, o Luís Leonardo.

Porto Novo – Ilha de Santo Antão, poucos minutos passam das oito horas da manhã quando eu e a minha colega de viagem, Sónia, chegamos a uma das ilhas que mais curiosidade nos tem suscitado ao longo dos anos. Por outro lado, Correia, um pacato sexagenário nascido na ilha de Santiago, por força do trabalho, visita regularmente todas as vilas e ribeiras de Santo Antão. Firmina, apesar de residir no Mindelo, foi professora numa pequena vila do interior de Santo Antão. Por fim, o incrivelmente bem-disposto Mota, que me mostrava fotos de uma caminhada que havia realizado no fim-de-semana anterior na zona de Ribeira Grande – mas, quando lhe formulei o convite, mesmo tendo lá estado no fim de semana anterior, não hesitou em aceitar.

A primeira amarra é lançada para terra e a porta traseira prepara-se para abrir. Por momentos, confesso que me senti bem perto de casa – qualquer semelhança com o Cais das Colunas em plena hora de ponta, não é coincidência, mas sim a realidade.

Numa saída um tanto ou quanto atribulada, a correria dos que chegam mistura-se com a dos que partem, mas são os que entram e não pretendem embarcar, os verdadeiros causadores do caos que por momentos se instala: “Ponta do Sol Senhor?”, “Ribeira do Paul, alguém”, “Mi tem serviço di táxi!”. Todas as tentativas são válidas na angariação de novos clientes, até mesmo sermos empurrados literalmente para dentro de uma “Hiace” (nome dado a todos os veículos de transporte com 9 lugares em Cabo Verde). Com algum esforço e sempre com o “Não, obrigado” na ponta da língua, aceleramos o passo e conseguimos deixar o Porto.

Primeira paragem: Pequeno-almoço e escolha dos locais a visitar. A parte nutricional é de extrema importância! Afinal saí da cama por volta das cinco da manhã e optei por manter o estômago vazio, numa tentativa quase frustrada de dificultar a tarefa ao enjoo. Atento às necessidades energéticas do longo dia que me esperava e a já notória falta de nutrientes, forrei o estômago com uma farta cachupa pobre (feijão, milho e chouriço) e um enorme “balde” de café da Ilha do Fogo.

Relativamente ao locais a visitar, a tarefa não se revela complicada tendo em conta que a zona nordeste concentra grande parte das povoações e ribeiras, algo facilmente explicável por ser a única zona verde e húmida, que contrasta com o resto da ilha, marcadamente castanha e árida. Optámos pelo percurso pela “Estrada da Corda”, uma estrada empedrada de basalto, construída nos anos 70.

Serra acima, as povoações vão sendo cada vez mais escassas, o isolamento bastante notório e o verde vai assumindo a sua posição como característica principal da paisagem. O jipe abranda e o Correia confessa nunca ficar indiferente à beleza do local onde acabávamos de chegar. Aponta o dedo na direcção de um gigantesco buraco branco e exclama: “Mais logo iremos estar ali em baixo”. Um manto branco move-se lentamente, cobrindo harmoniosamente um gigantesco buraco natural e permitindo por vezes que os campos verdejantes da Ribeira do Paul surjam por entre a nebulosidade.

Aproveitamos para nos refrescar com uma das muitas cervejas que nos acompanham na geleira e regressamos novamente à estrada, avançando mais alguns quilómetros, até ao momento em que somos surpreendidos pela vila de Esponjeiro. A estrada atravessa literalmente a vila e não havendo muito para fazer, os seus habitantes concentram-se junto à estrada. Paramos com o objectivo de conversar um pouco com os habitantes, o que acabou por ser uma sorte para a dona do único negócio local, que acabou assim por vender todos os seus queijos.

Após reforçarmos o estômago com um pouco do queijo que havíamos comprado, seguimos caminho para não muito longe dali nos cruzarmos com um grupo de caminhantes. A beleza natural, os trilhos e a temperatura amena acabam por ser factores chave na escolha deste local por trekkers de todo o mundo. Oferecemos boleia, mas estes apressaram-se a agradecer explicando que o seu objectivo consiste nas caminhadas, pelo que não faria sentido aceitar.

Alguns quilómetros depois e sensivelmente a meio do percurso, somos surpreendidos por um dos pontos mais altos e emblemáticos desta estrada. “Delgadinho”, um caminho esguio erguido através da sobreposição de pequenas rochas, numa estrutura em tudo similar a um castelo de cartas. Ribeira da Torre de um lado, Ribeira Grande do outro e apenas um pequeno muro, com não mais de meio metro de altura, nos impede de uma vertiginosa queda.

Sinto que estou perante uma paisagem única e de uma beleza tremenda. É certo que não sou conhecedor de todos os recantos naturais que o planeta tem para oferecer, mas não acredito que alguém, por mais viajado que seja, possa ficar indiferente a um cenário desta magnitude. Já todos se encontram dentro do carro, prontos para seguirem serra abaixo, mas a mim ainda me falta a coragem para abandonar este local. Grito “SANTO ANTÃO É LINDO!”, espero que o eco termine a sua viagem por entre vales e montanhas e, já de lágrima no olho, dirijo-me ao carro, como que obrigado a seguir caminho.

À medida que descemos, o mar surge na linha do horizonte e, bem lá no fundo, a vila de Ribeira Grande, onde iremos ficar alojados durante a nossa passagem pela ilha.

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2 comentários:

  1. Creio que o autor do texto é português. É notória a sua sensibilidade poética a modelar o tom desta narrativa. Se dúvidas houvesse, a lágrima no olho confessada no fim é a melhor prova.
    De facto, Santo Antão não deixa ninguém indiferente. No ano passado, um colega meu de profissão (coronel, português) visitou S. Vicente e Santo Antão com a sua cara-metade. Antes da viagem, fornecera-lhe as informações que julguei úteis. Quando regressou, fez-me um breve relato do que viu e apreciou mas o que mais relevou foi a visita a Santo Antão.
    Eu, estou umbilicalmente ligado a essa ilha. É onde nasceram a minha avó materna e o meu avô paterno.
    Quando visito santo Antão, sinto que se sou cabo-verdiano é principalmente por causa da ilha. Por um chamamento interior, silencioso e profundo, que ouço do alto daquelas montanhas.

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  2. Peço desculpas à filha do nosso querido professor Dr. Guilherme Chantre que nos mandou esta carta e que aqui transcrevo pela sua riqueza. As duas nativas da ilha de Januario merecem esta homenagem.

    -/-
    Olá, Menina de Fajã dos Cumes/ Pé de Neva

    Fiquei muito sensibilizada com tua crónica sobre o lugar onde nasceste, quase a tocar os céus! Bela descrição feita com coração e sensiblidade. ao mesmo tempo, descrevendo o bravado dos alunos que desciam montes e vales para adquirirem mais escola que os havia de fazer singrar na vida!
    É que eu também sou da majestosa Ilha de Santo Antão, que eu amo e admiro e auguro que algum dia tenha "seu lugar ao sol", quando for realmente descoberta para o turismo!
    Outro aspecto da tua crónica que me ligou a ti foi a reminiscência dos anos de caminhada pelas ribeiras da ilha, em demanda de explicadores nas vilas da Ponta do Sol e da Ribeira Grande.

    No meu tempo de estudante, em Santo Antão, a escolaridade ia até a 4ª classe do ensino primário. Nessa altura tinham introduzido um ano mais acima da 4ª classe, o de "admissão aos liceus", que se estudava fora e ia-se fazer o exame no Liceu Gil Eanes, em São Vicente.
    Do Terreiro eu ia todos os dias até o Tarrafal onde assistia explicação pelo meu professor, Manuel Coutinho, aluno brilhante do liceu à espera de oportunidade de ir continuar os estudos em Portugal. Depois de prestar provas em MIndelo, regressei a casa, ciente de que eu iria para o Liceu. Mas não aconteceu. Meus pais não concordaram em enviar uma criança de 11 anos a viver em São Vicente por si mesma. Senhor Coutinho anuiu en explicar-me o primeiro ano do liceu. No segundo ano, passei a ir com um grupo de crianças e jovens da Povoação para a Ponta do Sol onde os irmãos Brigham Gomes tinha iniciado um curso de explicações para alunos do liceu.

    Todos as manhãs, antes das 7 horas, saía com os Caldeira Marques para a caminhada a pé para a Ponta do Sol .Terminadas as aulas às 12 h, dentro de uma hora regressávamos a casa. Entretanto no ano seguinte, João Morais abriu um curso de explicações na Povoação. Isso beneficiou muito os alunos da vlla e das ribeiras, por estar mais perto . De Fachoca, de Coculi, de Chã de Pedras. das montanhas circumvizinhas, todos caminhávamos de manhã para a escola: uns a pé, outros de burro, de mula, a fazer "quartos" uns, enfim. Éramos um grande grupo. Sacrificio? Ninguém pensava nisso, mas na oportunidade de atingir nosso alvo, pois queríamos alcançar nossos sonhos de ser alguém. Além disso criaram-se belas amizades que continuam até hoje, não falando das traquinices pelas ribeiras de jovens despreocupados a caminho dos seus sonhos...

    Como no passado, gerações anteriores à minha, também prosseguiram estudos em Portugal, antes mesmo de haver o Liceu en São Vicente. Familias sacrificavam-se a mandar filhos e filhas a estudar em Lisboa. Dessa geração surgiram medicos, engenheiros, professores, agrónomos, funcionários públicos que serviram a terra e as colónias por anos a fio, enaltecendo o espírito do desejo de conhecimento do santantonense, perseverança na adversidade, mesmo calcorreando aquelas ribeiras pedregosas e montanhas íngremes -- mas sem desvanecer, pois em cada um de nós havia o desejo de vencer -- qual espírito firme com as rochas altaneiras de Santo Antão, minha Ilha querida!

    Bem hajas, menina de Fajã dos Cumes! Singraste! Que outros sigam teu exemplo!

    Manuela Chantre de Barros (Nov.1,2016,EUA)
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