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quinta-feira, 3 de novembro de 2016

[9874] - AS FRONTEIRAS DO CONHECIMENTO...

KANT E OS LABIRINTOS DA LINGUAGEM

     Muitas vezes nos queixamos de ler um tratado de filosofia e chegar ao fim com a sensação de que a experiência foi uma viagem por um mundo complexo e mirabolante de palavras, porventura seduzidos pela densidade da dialéctica, mas com pouco ou nenhum proveito gnosiológico. Deparamo-nos com uma linguagem abstracta, confusa, com aparentes lapsos de congruência e conexão interna, como se ela, a linguagem, deixasse de ser um rigoroso instrumento de mediação com o real. 
     Em grande parte dos casos, fica a impressão de que a matéria lida pode ser consideravelmente reduzida e simplificada sem prejuízo da integridade do conceito que nela se inscreve. É então que me pergunto se a matemática, de mãos dadas com a sintaxe, não pode ajudar a clarificar uma ideia atinente a uma questão filosófica contida num extenso e denso texto. Não é a matemática a ciência do raciocínio lógico, que utiliza padrões de linguagem e conjecturas para, através de deduções rigorosas, formular uma verdade? No entanto, aceito que se conteste este tímido postulado com o argumento de que a filosofia, ciência de pensar sobre o pensamento, é, pela sua própria natureza livre e fluída, insubmissa a padrões de mensuração e quantificação de linguagem.
     Acontece que um amigo meu tem, como eu, dificuldade em penetrar na linguagem de Kant e acha que, com um trabalho de corte e lapidação do estendal de palavras das suas teorizações, se pode facilitar a apreensão dos seus conceitos filosóficos. Em boa verdade, ele reconhece que com a simplificação se pode perder a beleza dos raciocínios eruditos sobre conceitos que só estão ao alcance de uma mente divina, mas que em compensação haveríamos de perceber a filosofia mais escorreitamente, mercê da escrita enxuta e da transparência dos raciocínios. 
     Salvo melhor entendimento, creio que a moda dos raciocínios longos e labirínticos foi introduzida pelos antigos filósofos gregos, de quem herdamos as dúvidas e as respostas possíveis. E por que é que assim procediam? Se calhar porque se sentiam mais próximos do Olimpo, talvez ambicionando a condição de semideuses. Daí presumirem-se, mediante o fraseado erudito e algo codificado, detentores de um privilégio inacessível ao frequentador comum das ágoras. 
     Como a exemplificação prática é sempre meio caminho andado para a compreensão de um raciocínio, o meu amigo pôs de lado a tibieza e deu-se ao trabalho de uma breve demonstração. Admitindo ele que Kant escrevia virado especialmente para interlocutores do seu estatuto intelectual, entendeu não ser descabido tentar desmontar as peças da sua linguagem para as reposicionar segundo uma ordem e mecânica que facilitem a intelecção dos seus raciocínios. Deste modo, pegou aleatoriamente numa página da “Crítica da Razão Pura” de Kant e fez aquilo que eu considero uma “tradução”. Ou seja, meteu parênteses em expressões redundantes e fraseologia divagante, logo inúteis; referenciou os apartes e excrescências verbais, logo dispensáveis. De seguida, fazendo como os matemáticos, desembaraçou dos parênteses, e como os lacónicos, eliminou os excessos referenciados. Em linguagem mais corrente, dir-se-á que eliminou a palha para tentar chegar ao fruto. O resultado foi, efectivamente, um texto mais reduzido e… mais compreensível. Sim, mais compreensível, mas não completamente joeirada de sinuosidades. Porque eu até penso que ele poderia ter ido mais longe no corte e na lapidação. O resultado poderia ser um texto de conteúdo um pouco mais entendível. Ou talvez não…
     Pode passar a ideia de que eu e esse amigo embirramos com o grande sábio, mas não é verdade. Pelo contrário, sentimos por ele uma irresistível e enigmática atracção, talvez a ânsia de partilhar os domínios divinos por ele frequentados, o que explica precisamente a razão por que volta e meia revisitamos os seus escritos, embora a perder-nos sempre nos mesmos tortuosos corredores. 

Tomar, 31 de Outubro de 2016
Adriano Miranda Lima

3 comentários:

  1. Parabéns, caro Adriano, pelo texto, pois nos dias que correm já pouca gente da nova geração lê e reflecte sobre assuntos sérios, preferindo textos curtos na net e jornais, cansando-se facilmente com leituras que exigem mais fôlego. É bom que, de vez em quando, os espevitemos com algumas tchuçadas bem localizadas.

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    1. Arsénio,
      Assino. O pior é que outros que podiam associar-se não se aderem. Podem mas nada fazem. E é assim que vamos sendo comidos cada dia um pouco mais.
      Obrigado, Caros Amigos.

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  2. Um grande teto do Adriano, desta vez entra pela área da filosofia que todos reconhecemos dotes. á disse ao Adriano que ele tem que escrever mais não somente para nos deleitar com a sua exímia prosa e pensamento filosófico mas também para partilhar a sua cultura e valores. Sobre Kant pouco posso falar, de ceretza estarie mais a vontade de falar sobre Einstein Bohr ou Schrodinger!!
    Queremos mais

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