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quarta-feira, 23 de novembro de 2016

[9937] - MINDELO, CIDADE SAUDÁVEL...




A vocação da ilha do Monte Cara não é receber barcos, mas sim receber pessoas, venham elas por via marítima ou via aérea!
 (José Almada Dias, crónica “O Fado do Porto Grande versus Glamour Crioulo”)

Realizou-se na cidade do Mindelo no passado dia 11 de Novembro uma conferência denominada “Mindelo Cidade Saudável“, organizada pela representação em Cabo Verde do ISCTE (Instituto Superior de Ciências do Trabalho) de Portugal e a OMS (Organização Mundial da Saúde).

O evento foi muito concorrido, tendo merecido a honra de ter a participação de três membros do Governo: a Ministra das Infraestruturas que abriu o evento sublinhando “a pertinência deste movimento começar aqui no Mindelo pela sua tradição, experiência, vocação e tradição urbana e cosmopolita”, o Ministro da Economia que participou através de um vídeo gravado e o Primeiro-Ministro que encerrou.

A Câmara Municipal de São Vicente esteve presente (Presidente da Câmara e Presidente da Assembleia Municipal) juntamente com os Presidentes das Câmaras de Comércio de Barlavento e do Turismo, entre muitas outras entidades. Uma sala muito bem composta, mérito da incansável organização, motivada pela enérgica liderança de Helena Rebelo Rodrigues, representante do ISCTE em Cabo Verde.

Durante todo o dia houve intervenções com qualidade versando os temas “Políticas Públicas de Saúde”, ’’Desenvolvimento de Cidades Saudáveis” e “Saúde, turismo e bem-estar” ; de realçar a inovação de intervenções em vídeo-conferência do Secretário da Saúde do Município de Quito, capital do Equador e o discurso do Secretário de Estado da Saúde de Portugal directamente de Lisboa, numa parceria entre a organização do evento e a Cabo Verde Telecom. As novas tecnologias estão aí ao nosso dispor num presente que já foi futuro…

Na qualidade de moderador do painel “Desenvolvimento para o turismo”, coube-me a tarefa de lançar algumas provocações, entre as quais realço uma:

Qual é a vocação da ilha de São Vicente, ou qual deverá ser o seu futuro? Continuar a ser uma cidade-porto ou ser uma cidade turística?

A preceder esta provocação fiz uma breve introdução, acentuando que a ilha de São Vicente conheceu nos seus primórdios um desenvolvimento acelerado devido a um conceito que os economistas chamam de Economia de 3T – Transportes, Telecomunicações e Turismo. Transporte marítimo com a instalação de um entreposto carvoeiro para servir a navegação mundial; telecomunicações com a amarração dos cabos submarinos ingleses e italianos, ligando a Europa aos restantes continentes; turismo com a passagem de barcos com viajantes e aventureiros que ficavam instalados nos primeiros hotéis do país, construídos aqui na cidade do Mindelo há mais de cem anos.

Realcei que portanto atribuir a prosperidade do Mindelo apenas ao porto e ao transporte marítimo não é justo, sobretudo pelo papel importante que as empresas de telecomunicações tiveram na criação de emprego qualificado, trazendo para a ilha técnicos e engenheiros estrangeiros (ingleses e italianos), e formando pessoal local na Inglaterra, contribuindo fortemente para a criação de uma elite bem formada, esclarecida e viajada na cidade.

E ainda realcei que o Mindelo é há muito uma cidade do conhecimento, tendo albergado durante décadas o único liceu de Cabo Verde e a primeira Escola técnica do país, estabelecimentos de ensino que formaram muitas gerações de cabo-verdianos, marcando para sempre a história e a intelectualidade desta pequena nação.

O Mindelo continua a ter esta vocação de cidade do conhecimento, acolhendo estudantes das outras ilhas, naquela que é a cidade com mais Universidades per capita do país. Não será por acaso que foi aqui que nasceu há mais de duas décadas a primeira instituição universitária privada do país, o ISCEE (Instituto Superior de Ciências Económicas e Empresariais), que mantém uma relação de parceria com o ISCTE de Portugal, entre outras instituições de ensino superior.

A cidade do Mindelo, que nasceu e cresceu ligada ao mundo, teve que ao longo da sua história ir adaptando-se às mudanças globais de um mundo a que está intimamente ligada, ciente de que as vantagens comparativas dos países, regiões e cidades são de uma forma geral efémeras.

Neste turbulento mundo de hoje, a capacidade de antecipação, de ler as novas tendências e adaptar-se é mais do que nunca um factor de sobrevivência. Quem não inova, fica irremediavelmente pelo caminho.

Mindelo, uma cidade aberta às influências externas, já teve a sua quota-parte de crises. Neste momento encontra-se a meu ver mergulhada mais uma vez numa crise profunda, que ameaça tornar-se numa crise existencial e ou de identidade.

É que estranhamente, o Mindelo perdeu há algum tempo esta capacidade de antecipar o futuro. No passado as elites da cidade, as mais interventivas do país, olhavam para o que se passava lá fora procurando o que de melhor se fazia e sendo sempre os primeiros no país a trazer as novidades. Hoje, as elites do Mindelo estão presas a interesses partidários e outros, todos de curto prazo e vistas curtas, fazendo com que a ilha já não seja a porta de entrada do país, deixando de ser a capital da inovação. Prova disso, foi ter sido ultrapassada pelas ilhas do Sal e da Boavista, as novas pioneiras do turismo nesta nova era pós-independência.

Ora, o turismo é a maior indústria do mundo desde 1997. É a que mais cresce, que mais riqueza e emprego cria no planeta. É também uma das que, segundo especialistas, parece ter o futuro mais risonho tendo em conta que à medida que o nível de vida vai aumentando por esse mundo fora, aumenta todos os anos o número de pessoas que viajam em negócios, em lazer, em busca de saúde, bem-estar e tranquilidade, etc, etc.

Voltando à conferência, o Presidente da Câmara do Turismo, Gualberto do Rosário Almada acabou por responder à minha provocação, dizendo que do ponto de vista da Câmara que preside a cidade do Mindelo é uma cidade turística, podendo oferecer produtos turísticos que nenhuma outra ilha de Cabo Verde pode oferecer.

Ainda há pouco tempo, o actual Ministro da Economia de Cabo Verde, José Gonçalves, tinha afirmado por mais de uma vez que São Vicente é a ilha de Cabo Verde que mais produtos turísticos pode oferecer. 

Este vosso cronista, que vem defendendo estas ideias há quase duas décadas, sente-se reconfortado por começar a ter alguns aliados de peso.

Mas, como disse e bem Gualberto Almada, tem que ser a cidade do Mindelo e a ilha de São Vicente a quererem este desiderato.

Uma sapiente observação. Significa dizer que as forças vivas desta cidade-ilha e as suas autoridades têm que assumir de vez este desafio do Mindelo evoluir do simplório, limitativo e ultrapassado conceito de cidade-porto, para algo bem mais complexo, abrangente e moderno que é ser a cidade turística de referência no Atlântico médio.

Significa deixar de pensar que o futuro virá do porto, e entender o porto como apenas mais uma infra-estrutura da ilha. Significa evoluir de uma cidade-porto para uma cidade turística que tem um porto. A diferença não é semântica, é profunda!

Significa perceber de vez que:

1.  O bunkering e o transbordo de pescado nunca tirarão São Vicente e a sua cidade do Mindelo da miséria em que se encontram; muito pelo contrário, irão perpetuá-la;

2.  O porto era grande, daí o nome de Porto Grande, no tempo dos pequenos navios à vela e de carvão, mas que hoje a baía é pequena para sonhar ser um porto de referência neste tempo de barcos de enorme dimensão e calado;

3.  Que o porto e as actividades comerciais a ele ligadas ajudaram a criar emprego e riqueza num passado em que a maioria das pessoas nem 4ª classe tinha, mas que já não servem para criar os postos de trabalho bem pagos almejados pelos milhares de jovens licenciados que saem todos os anos das universidades e que querem empregos onde se sintam realizados;

4.  Que a visão de desenvolvimento centrada no porto foi a causa da ascensão mas também da queda de São Vicente e do Mindelo;

5.  Que ser uma pequena mas sofisticada cidade turística, que pode oferecer o pacote de turismo de alto valor acrescentado mais sofisticado do país é incompatível com a presença e circulação de marinheiros/pescadores ignorantes e sem modos, à procura de bares de alterne e prostituição infantil – os tempos de má memória dos marinheiros asiáticos a circular nesta cidade estão ainda frescos na nossa memória e a ser avivados todos os dias;

Mas para que isso aconteça, ainda temos muitos obstáculos a ultrapassar, a começar pela mudança de mentalidades das elites mindelenses actuais.

Ainda temos que travar uma batalha estratégica entre os que:

·    Adoptam uma atitude de game changers contra os que defendem o status quo;

·    Entre os visionários adeptos do pensamento estratégico e disruptivo e os gestores do dia-a-dia que privilegiam a visão de curto prazo;

·    Dos que são capazes de sonhar, ambicionar e arriscar ter um futuro risonho e os que preferem o conforto do que conhecem;

·    Dos que defendem uma economia de futuro versus os que estão amarrados a uma economia de tradição, do déjà vu;

Trata-se de duas visões completamente antagónicas e mutuamente exclusivas. E chegou a hora da sociedade mindelense fazer uma escolha com qual das duas se quer orientar.

Mindelo foi grande enquanto a primeira visão dominou; os vários anos de crises sucessivas terão levado à ascensão e primazia dos segundos, afundando a ilha no marasmo em que se encontra.

Mindelo ostenta a partir de agora o título de Cidade Saudável de Cabo Verde. Mas como tive a oportunidade de referir, uma cidade só é saudável quando as pessoas que vivem nela possuem perspectivas de vida sustentáveis para si mesmas e para os seus descendentes, o que não é o caso actualmente.

O Presidente da Câmara Municipal disse que não se pode falar em qualidade de vida, quando vivemos com grades nas casas. Concordo e acho que essas grades físicas são o resultado prático de nos termos deixado agrilhoar na prisão da falta de visão e de audácia, que transformaram este El Dorado do emprego e da prosperidade numa cidade de desemprego e de desesperança.

O Primeiro-Ministro de Cabo Verde fez um motivante discurso de encerramento que transmitiu esperança e energia, afirmando que a nossa geração tem a obrigação de transformar o Mindelo na cidade que todos nós sonhamos.

Concordo em género, grau e número. Significa que temos a disponibilidade de um Governo recém-eleito para trabalhar com os são vicentinos na procura da sua felicidade, felicidade essa que deverá ser fruto das escolhas dos próprios são vicentinos.

Para alguma coisa decidimos ser independentes e tomar as rédeas do nosso destino nas nossas mãos. Portanto, se falharmos a culpa será toda a nossa. Já não haverá portugueses nem outros para acusarmos dos nossos males e atraso.

Mindelo tem que acordar de vez, sacudir os traumas do passado e desafiar de forma inovadora, empreendedora e corajosa o futuro.

Numa próxima crónica traremos as nossas propostas para contribuição para esse Mindelo próspero do futuro.

O sonho comanda a vida…

4 comentários:

  1. Uma visão aparentemente radical de um presente amarrado ao passado mas que me parece cruelmente realista...

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  2. Artigo a ler obrigatoriamente para quem se preocupa com a situação actual e o futuro desta gloriosa Ilha Cidade, S. Vicente /Mindelo

    Segundo Almada Dias "atribuir a prosperidade do Mindelo apenas ao porto e ao transporte marítimo não é justo, sobretudo pelo papel importante que as empresas de telecomunicações tiveram na criação de emprego qualificado, trazendo para a ilha técnicos e engenheiros estrangeiros (ingleses e italianos), e formando pessoal local na Inglaterra, contribuindo fortemente para a criação de uma elite bem formada, esclarecida e viajada na cidade."
    Segundo ele há duas visões da Ilha/Cidade

    Entre os visionários adeptos do pensamento estratégico e disruptivo e os gestores do dia-a-dia que privilegiam a visão de curto prazo;

    · Dos que são capazes de sonhar, ambicionar e arriscar ter um futuro risonho e os que preferem o conforto do que conhecem;

    · Dos que defendem uma economia de futuro versus os que estão amarrados a uma economia de tradição, do déjà vu;
    ""Trata-se de duas visões completamente antagónicas e mutuamente exclusivas. E chegou a hora da sociedade mindelense fazer uma escolha com qual das duas se quer orientar.

    Mindelo foi grande enquanto a primeira visão dominou; os vários anos de crises sucessivas terão levado à ascensão e primazia dos segundos, afundando a ilha no marasmo em que se encontra."

    O futuro é bem incerto pois como todos sabemos e arremata bem o autor
    " É que estranhamente, o Mindelo perdeu há algum tempo esta capacidade de antecipar o futuro. No passado as elites da cidade, as mais interventivas do país, olhavam para o que se passava lá fora procurando o que de melhor se fazia e sendo sempre os primeiros no país a trazer as novidades. Hoje, as elites do Mindelo estão presas a interesses partidários e outros, todos de curto prazo e vistas curtas, fazendo com que a ilha já não seja a porta de entrada do país, deixando de ser a capital da inovação. Prova disso, foi ter sido ultrapassada pelas ilhas do Sal e da Boavista, as novas pioneiras do turismo nesta nova era pós-independência."

    Mindelo há 40 anos que perdeu a capacidade de definir o seu destino quando a visão centralista e planificada tomou conta do país e levou as pessoas a um estatuto de assistidos

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  3. Bernard Show que disse "o homem é único animal que sente cobardemente medo".
    O medo em S.Vicente parece ter mais de 41 anos de existência. A geração actual precisa ser mais cidadã e mais empreendedora e não acreditar em promessas porque senão os filhos vão herdar um "nothing land".

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  4. É um artigo de muito interesse, que põe o dedo na nossa dolorosa ferida mindelense. Concordo com o diagnóstico feito pelo Almada Dias, que não hesita em responsabilizar a sociedade civil da ilha. Mas pergunto se o élan vital não se foi todo ele embora pelas razões que conhecemos e amiúde denunciamos? Isto é, com a fuga das elites em 1975 e com a absorção pela "Praia" do pouco que ficou, uma vez concentrado todo o aparelho do Estado na capital? Claro que nada é irremediável. É preciso convencer-se de que a reconstrução não pode ser feita com base na matriz de outrora, e nisto tem toda a razão o articulista. Significa que o impulso terá de ser dado por uma nova sociedade civil, doravante impulsionada por uma juventude mais instruída e mais apetrechada academicamente. Mas não julgo que o caminho do progresso se retome sem aquilo por que temos terçado armas: mais autonomia político-administrativa para a ilha.

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