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quarta-feira, 23 de novembro de 2016

[9938] - A CRIOULIZAÇÃO NAS ILHAS - (1)...

Em 2014, a Revista online "Afro-Asia", que se edita em Salvador, Brasil, publicou no seu Nº 49 um extenso trabalho da autoria  do pesquisador Gerhard Seibert, do Centro de Estudos Internacionais (CEI) do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), subordinado ao tema CRIOULIZAÇÃO EM CABO VERDE E S. TOMÉ E PRINCIPE - DIVERGÊNCIAS HISTÓRICAS E IDENTITÁRIAS.
Este trabalho chegou-nos pela mão do amigo José Fortes Lopes e dado o seu indiscutivel interesse  histórico-científico resolvemos divulgá-lo nestas páginas. Dada a  extensão do trabalho, tal divulgação será feita ao longo da publicação de excertos cronológicos que respeitarão a sequência do estudo e a sua integral publicação. Esperamos que o apreciem!


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RESUMO

Cabo Verde e São Tomé e Príncipe foram as primeiras sociedades crioulas do mundo atlântico. Inicialmente, em muitos aspetos, a colonização dos dois arquipélagos pelos portugueses era muito semelhante. Contudo, a diferente posição geográfica e as divergências do clima e do meio ambiente condicionaram o desenvolvimento de economias distintas e diferenças no grau da miscigenação nos dois arquipélagos. Diferente desenvolvimento socioeconómico no século XIX, marcado, em São Tomé e Príncipe, pela recolonização e pelo restabelecimento da economia de plantação e, em Cabo Verde, pela consolidação da sociedade crioula e pela emigração, reforçou as divergências existentes. As diferenças refletem-se em distintas afirmações identitárias das duas sociedades crioulas. Cabo Verde afirma uma singularidade da sua sociedade crioula, enquanto, em São Tomé e Príncipe, domina uma identidade africana.

(Palavras-chave: crioulização - miscigenação - mundo atlântico - Cabo Verde - São Tomé e Príncipe.)


As primeiras sociedades crioulas do mundo atlântico emergiram ao longo do século XVI em Cabo Verde e em São Tomé e Príncipe. Quando os portugueses chegaram pela primeira vez aos dois arquipélagos africanos, por volta de 1460 e 1470, respetidamente, ambos encontravam-se desabitados. Pouco depois da descoberta, os portugueses povoaram as ilhas de Santiago e do Fogo, em Cabo Verde, inicialmente as únicas colonizadas do arquipélago, assim como as de São Tomé e do Príncipe, por colonos brancos e escravos africanos do continente. Para todos os novos habitantes, brancos e escravos africanos, as novas terras eram ambientes desconhecidos. Os dois arquipélagos foram os primeiros territórios em que europeus e africanos conviveram permanentemente. Devido à ausência de mulheres brancas, a união entre homens europeus e escravas africanas era frequente. A mestiçagem, biológica e cultural, entre brancos e negros nos dois arquipélagos resultou na emergência das sociedades crioulas.

O modelo da colonização e da administração aplicado pelos portugueses nesses arquipélagos nos séculos XV e XVI era muito semelhante. Contudo, a posição geo-estratégica diferente e, relacionada com ela, a diferença do clima e do meio ambiente entre Cabo Verde e São Tomé e Príncipe condicionaram o estabelecimento de economias distintas e de diferenças no grau de mestiçagem biológica. Isso, por sua vez, resultou em padrões de escravatura e em características de mestiçagem cultural divergentes.

A recolonização de São Tomé e Príncipe, no século XIX, e as transformações socio-económicas que dela resultaram reforçaram, ainda, as diferenças entre as duas sociedades crioulas. Tais processos históricos de crioulização levaram à afirmação de identidades culturais e políticas distintas entre Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Os cabo-verdianos afirmam ser o "resultado" de um caso particular da colonização portuguesa e consideram-se uma nação crioula. O kaboverdianu é a língua materna de todos e é falada concomitantemente com o português, o que culminou numa situação de diglossia. Também os símbolos nacionais de Cabo Verde refletem as particularidades culturais do país.

Em contraste, e apesar da percepção das diferenças culturais em relação às sociedades continentais, os são-tomenses consideram-se africanos. Além disso, em São Tomé e Príncipe o português é mais falado e valorizado do que o forro, o crioulo local maioritário. Ali a crioulidade não se encontra nos símbolos nacionais cujas referências são africanas.

Essas situações divergentes coincidem também com opiniões dominantes sobre as duas ex-colónias em Portugal. Representativo nesse contexto é o ex-primeiro ministro e ex-presidente português Mário Soares (1924-...) que, em 2005, qualificou Cabo Verde como "a melhor expressão das sínteses culturais que a experiência euromundista produziu", enquanto, em 2008, depois de uma visita a São Tomé para comemorar o 40º aniversário da sua deportação pelo regime salazarista para a ilha, o mesmo classificou-a apenas como "grande produtora de cana-de-açúcar" e "entreposto de escravos".1 Este artigo visa a analisar os diferentes processos históricos de crioulização e suas respectivas consequências identitárias nas duas sociedades crioulas. - CONTINUA...


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