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quinta-feira, 24 de novembro de 2016

[9941] - A CRIOULIZAÇÃO NAS ILHAS - (2) ...

...CONTINUAÇÃO...

Processo de crioulização

A crioulização, frequentemente referida como mestiçagem cultural ou caldeamento cultural na literatura em português, é um termo proveniente da linguística. Nas ciências sociais, não existe uma definição consensual do conceito, visto que processos de mistura cultural distintos em contextos históricos diferentes foram considerados casos de crioulização.2 Knörr propõe uma definição mais restrita, que limita crioulização a "um processo em que pessoas etnicamente diversas se tornam indigenizadas e desenvolvem uma nova identidade coletiva carregando (diversos graus de) referência étnica".3 Isso significa que, durante o processo, identidades étnicas anteriores desaparecem e são substituídas por uma única nova identidade étnica.

Segundo Chaudenson (2001), o processo de crioulização (linguística) ocorreu em duas fases consecutivas. A primeira fase, chamada de sociedade de habitação, foi dominada por pequenas unidades de produção e uma maior aproximação entre colonos e negros, que eram poucos e não ultrapassavam o número de brancos. A segunda fase, a da sociedade de plantação, foi marcada pelas culturas de exportação, pela organização agroindustrial da produção e por uma maior distância social entre senhores e escravos, que constituíam a grande maioria da população. Nessa fase, os escravos tinham pouco contato direto com a minoria branca. Os recém-chegados, conhecidos por "escravos boçais", já não eram socializados por colonos europeus, mas sobretudo pelos escravos crioulos, mas a mudança de uma fase para a outra não ocorria de forma abrupta ou absoluta. Durante a sociedade de habitação, já existiam plantações, enquanto pequenas propriedades continuaram a existir durante a sociedade de plantação.

Geralmente, pode-se constatar que a matriz e as estruturas das culturas e das sociedades crioulas são europeias e que os africanos imprimiram marcas importantes nos seus conteúdos. Portanto, os escravos africanos que partilhavam certos conceitos comuns, conseguiam manter os seus conhecimentos, os seus conceitos e crenças, sobretudo em relação à sua vida privada e caseira, que era menos submetida ao controlo dos colonizadores brancos, sobretudo na sociedade de plantação. A música foi o único domínio em que tradições europeias e africanas sobreviveram e influenciaram-se mutuamente, visto que os cantos, a música e a dança dos escravos eram permitidos ou tolerados em várias circunstâncias.4 Também no nível da cultura material, as contribuições africanas foram significativas, porque muitas vezes se adaptaram melhor ao ambiente natural das colónias tropicais (agricultura, pesca, construção de casas, alimentação e uso de plantas medicinais).5

Como os escravos africanos provinham de regiões e etnias diferentes, também a sua bagagem cultural era relativamente diversa. Em comparação, a cultura dos brancos, na sua maioria portugueses, era, porém, relativamente homogénea. Ademais, em vista do monopólio do poder político, os africanos não podiam desenvolver e estabelecer as suas próprias instituições e a sua legislação fora dos parâmetros fixados pelos portugueses. Como resultado, o sistema de parentesco e a organização económica, religiosa e política dos africanos não sobreviveram no novo ambiente. Pela mesma razão, desapareceu parte da sua cultura material, assim como técnicas de forja e escultura. Uma exceção, no caso de Cabo Verde, foi a tecelagem importada da Guiné, onde eram produzidos os panos de algodão, objetos principais de permuta no tráfico de escravos na costa vizinha. Além disso, os africanos, nos dois arquipélagos, foram evangelizados pela Igreja Católica, e os seus nomes foram substituídos por nomes portugueses, afastando-se, assim, os escravos das suas culturas de origem.

O encontro direto e prolongado entre a cultura portuguesa e as várias culturas africanas nos dois arquipélagos gerou um processo de aculturação mútua: uma europeização dos africanos, bem como uma africanização dos europeus, o que resultou na emergência de duas sociedades crioulas com as suas próprias línguas e culturas. O processo de crioulização ocorrido nos dois arquipélagos corresponde à definição do conceito proposto por Knörr, pois as diversas identidades étnicas anteriores perderam-se e foram sendo substituídas por novas identidades coletivas. Integrando-se em culturas únicas, todos os diversos elementos culturais ficaram sujeitos a modificações, e novos elementos vindos dos ambientes locais foram igualmente incorporados às culturas crioulas. Em tais culturas, continuidades diretas e formais com a África foram mais exceções do que propriamente regra.6

No âmbito da expansão portuguesa em África, o processo da crioulização em espaços insulares anteriormente desabitados foi bem diferente dos processos de aculturação de elementos ocidentais nas sociedades continentais. No último caso, tratou-se da interação entre europeus e as sociedades já existentes, enquanto nas ilhas, desabitadas, a expansão marítima esteve na base da origem de novas sociedades. Para todos os primeiros habitantes de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe o espaço e o ambiente eram desconhecidos, e o processo da crioulização no novo território ocorreu no contexto de desigualdade entre os brancos e os africanos. No que diz respeito a Cabo Verde, Fernandes confirma que o grau, a natureza e a incidência das perdas variam conforme os grupos envolvidos: "Para os dominantes, trata-se de uma perda auto-consentida, estratégica e provisória, para os dominados ela é heteroinduzida, compulsória e definitiva".7

Nos dois arquipélagos, o clima, a insalubridade, a falta de recursos naturais e a distância em relação a Portugal impediram a imigração de brancos em números consideráveis. Isso distingue a colonização de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe da colonização da Madeira, dos Açores e das Canárias, que foram maioritariamente povoados por europeus. Cabo Verde, com o seu clima árido ou semiárido e com chuvas irregulares, possuía condições difíceis, tanto para os europeus como para os africanos provenientes dos Rios da Guiné.8 Em comparação, o clima tropical, quente e úmido, a abundância de chuva e a vegetação exuberante de São Tomé e Príncipe eram ainda mais hostis para os brancos, por causa das doenças tropicais frequentes em tal ambiente. Por outro lado, para os escravos africanos em São Tomé e Príncipe, oriundos do delta do rio Níger (até 1553), do Congo e de Angola, o clima e a natureza do arquipélago não eram tão diferentes das suas terras de origem, como eram no caso de Cabo Verde. Essas condições naturais nos arquipélagos tinham consequências inevitáveis na organização das populações e no desenvolvimento das economias locais.- (CONTINUA)...


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