terça-feira, 10 de abril de 2018
[10057] - A DESCOLONIZAÇÃO - CABO VERDE V
(…)
A duras penas, lá fomos rompendo por entre a multidão que faltava romper, divulgando o mais possível que Spínola não tinha podido vir. Não fiquei com a menor dúvida de que, se o Presidente tivesse ido à capital, era de todo imprevisível o que podia ter acontecido. A fúria era tanta que, naquelas condições, era receável o pior.”33
Tendo sido demitido o Governador então em exercício de funções, o novo Governador, Sérgio Duarte Fonseca, tomou posse no dia 21 de Setembro. Foi nessa altura que, de acordo com as afirmações de Aristides Pereira, a direção do P.A.I.G.C. decidiu preparar ativamente uma possível ação armada no arquipélago, tendo sido introduzidas armas clandestinamente e tendo tido início a preparação de milícias. Ainda segundo Aristides Pereira, foi impedido o desembarque do Comandante Pedro Pires no arquipélago, e outros quadros do partido sentiram-se em risco de prisão, pelo que passaram à clandestinidade no concelho de Santa Catarina, no interior da ilha de Santiago, até ao afastamento do General Spínola da Presidência da República em Portugal.34
Entretanto, a ação cívica no arquipélago prosseguiu e culminou com uma greve geral na administração pública, entre 27 e 30 de Setembro, e que teve uma forte adesão.35
Por fim, a 11 de Outubro, o Comandante Pedro Pires, presidente da Comissão Nacional de Cabo Verde do P.A.I.G.C. e membro do Comité Executivo da Luta, regressou ao arquipélago, tendo tido uma receção apoteótica por parte da população.36
Constata-se assim, que entre os meses de Agosto e Dezembro de 1974, tendo o Governo português reconhecido o direito dos cabo-verdianos a serem politicamente independentes, viveu-se um período particularmente agitado, em que não foi formalizado nenhum acordo, estando três partidos políticos a atuar no terreno. Contudo, em entrevista concedida ao jornalista José Vicente Lopes, José André Leitão da Graça fez as seguintes considerações:
“Quando se deu o 25 de Abril, o PAIGC tinha acabado de ser reconhecido o representante legítimo de Cabo Verde e da Guiné, era lógico que lhe coubesse o poder, tanto mais que a UPICV tinha surgido na emigração e a sua existência resumia-se a comunicados. Não tínhamos, verdadeiramente, uma organização. Foi difícil implantar essa organização mesmo entre os emigrantes. Eram, em geral, muito apáticos.”37
Atuando a partir da ilha de S. Vicente, a U.D.C. tinha acesso livre à rádio privada Barlavento, através da qual emitia comunicados dirigidos à população em geral.
No mês de Dezembro viveu-se um culminar dos confrontos entre os três partidos, que teve início no dia 9 com a tomada da Rádio Barlavento pelos militantes do P.A.I.G.C..38
Estando a U.P.I.C.V. a preparar uma manifestação para dia 1 de Novembro, o Comando-chefe das Forças Armadas decidiu proibi-la e, posteriormente, efetuar uma série de prisões para averiguações entre 14 e 18 de Dezembro. Justificou- se então a reabertura do estabelecimento prisional, antigo campo de concentração do Tarrafal, pelo número elevado de detidos, cerca de 70.39
Foi no âmbito desse contexto que o M.F.A. decidiu enviar um segundo ultimato ao Governo Português, ao qual este decidiu atender com a maior urgência e brevidade, conforme o relato de António Almeida Santos. Nesse telex, o M.F.A. dava ao Governo português poucos dias para transferir a soberania do arquipélago ao P.A.I.G.C., ameaçando fazê-lo localmente.40
Explica ainda Almeida Santos que ele e Pedro Pires reuniram-se em Lisboa com a maior brevidade possível para elaborar a versão final do acordo, no qual estava prevista a eleição por voto direto, secreto e universal de uma Assembleia Constituinte que deveria elaborar a Constituição do futuro Estado. Não tendo o P.A.I.G.C. aceite a organização de um referendo, foi esta a proposta mais consensual. São bastante expressivas as palavras de Almeida Santos referentes ao desfecho desta situação:
“Todos respirámos fundo. Enviou-se um telex para a Praia a comunicar o acontecimento, com seguro efeito sedativo. Um Vallium a cada militar não teria produzido melhor resultado.”41
Finalmente, a 19 de Dezembro de 1974, foi rubricado em Lisboa o Acordo de Transição entre o Governo português e o P.A.I.G.C., que previa a nomeação de um Governo de Transição que deveria conduzir o processo de preparação da independência do arquipélago durante 6 meses. A delegação portuguesa era constituída pelo Major Melo Antunes, Ministro Sem Pasta, Dr. Mário Soares, Ministro dos Negócios Estrangeiros e Dr. António de Almeida Santos, Ministro da Coordenação Interterritorial. Por sua vez, a delegação do P.A.I.G.C. era constituída pelo Comandante Pedro Pires, membro do Comité Executivo da Luta do P.A.I.G.C. e Presidente da Comissão Nacional de Cabo Verde do P.A.I.G.C., Dr. Amaro da Luz e José Luiz Fernandes Lopes, ambos membros da mesma Comissão. No Artigo 1º do referido Acordo foi estipulado que:
“O Governo Português reafirma o direito do Povo de Cabo Verde à autodeterminação e independência em conformidade com a lei constitucional portuguesa nº 7/74 de 26 de Julho, e com as resoluções pertinentes da Organização das Nações Unidas e tendo também em conta a vontade expressa da O.U.A..”42
Os opositores do P.A.I.G.C. neste processo têm acusado a direção deste partido de ter influenciado as autoridades portuguesas no sentido de afastar os militantes e simpatizantes da U.P.I.C.V. e da U.D.C., através da sua detenção no mês de Dezembro de 1974. Por sua vez, a U.D.C. é acusada pelo P.A.I.G.C. de ter sido uma organização instrumentalizada pelo General Spínola.
Vieram a público alguns testemunhos que versam sobre estas questões controversas. Assim, relativamente a um acordo que tivesse sido estabelecido entre o Movimento das Forças Armadas e o P.A.I.G.C., o responsável máximo do M.F.A. no arquipélago até ao mês de Novembro de 1974, o 1º tenente Miguel Judas, afirma numa entrevista concedida a 26 de Agosto de 1996, que numa fase inicial entrou em contacto com dirigentes do P.A.I.G.C. procurando uma atuação em conjunto e seguindo instruções de uma estrutura clandestina na Marinha que era favorável à instauração de um regime democrático e que ele integrava, sem que estivessem implicados outros ramos das Forças Armadas. Afirma, assim, que considerando o M.F.A no seu conjunto, não havia atuação concertada com o P.A.I.G.C..43
A sua exposição parece coincidir em muitos pontos com a do responsável máximo do P.A.I.G.C. no arquipélago durante esta fase, o Comandante Silvino da Luz, que numa entrevista concedida a Leopoldo Amado a 23 de Julho 1998, faz referência a um diálogo e a um entendimento com “uma parte mais esclarecida das Forças Armadas” portuguesas.44
Após a partida do 1º tenente Judas, a situação ter-se-á deteriorado, como o próprio afirma na mesma entrevista: “(…) na altura na tomada de posse do Governo de transição, havia lá uma certa confusão. Em São Vicente havia para lá umas situações já fora de controlo. E há umas situações bicudas e o Almirante Almeida d’Eça pediu-me que lá fosse, uma semana antes da tomada de posse. Eu voltei lá nessa altura, em Dezembro.”45
Como foi referido acima, é necessário ter presente que, de acordo com Silvino da Luz e Aristides Pereira, feita a avaliação da situação no terreno e a nível internacional, no mês de Setembro de 1974 a direção do P.A.I.G.C. optou por introduzir armas clandestinamente no arquipélago e por preparar milícias. De acordo com o 1º tenente Miguel Judas, os militares portugueses estacionados no arquipélago ter-se-ão apercebido dessa movimentação:
“Eles podiam desembarcar coisas [?], eles tinham informação acerca dos movimentos dos navios, a gente andava lá com a Marinha atrás dos navios dos russos que andavam a carregar com as coisas… Portanto, eles tinham condições internacionais e tinham condições práticas e logísticas para criar um sarilho…”46
A dada altura, Silvino da Luz afirma que chegou a haver um risco de confronto armado aquando de uma reunião no Comando militar português na ilha de S. Vicente, ao qual o P.A.I.G.C. exigia que pusesse cobro às atividades da Rádio Barlavento, dominada pela U.D.C..47
Ora, é efetivamente umas semanas anterior à tomada da Rádio Barlavento por militantes do P.A.I.G.C. a declaração formal de apoio do M.F.A. a este partido, datada de 9 de Novembro. O documento, intitulado “Estudo sobre a situação político-económica em Cabo Verde”, foi assinado em S. Vicente a 7 de Novembro de 1974 pelo Capitão Tenente Bastos Saldanha, pelos Primeiro -Tenentes Rebelo Marques e Vidal Pinho e pelos Subtenentes Seita Duarte e Silvestre Barreiros e a 9 de Novembro de 1974 foi aprovado e adotado pela Assembleia de Delegados do M.F.A..48
Relativamente à prisão dos indivíduos considerados militantes e/ou simpatizantes da U.D.C e da U.P.I.C.V., Manuel de Lucena, antigo alferes miliciano em Cabo Verde, onde chegou a 16 de Novembro de 1974, e onde se tornou dirigente do M.F.A., subscreve a versão de alguns presos, tendo afirmado num depoimento a 30 de Julho de 1997, que, com a tomada da Rádio Barlavento, começou a ser pedida a prisão dos indivíduos em causa. Pedro Gonçalves, também ele antigo alferes miliciano em Cabo Verde, onde chegou na mesma data, tendo-se igualmente tornado dirigente M.F.A., concorda com essa versão dos acontecimentos, ao afirmar numa entrevista concedida a 3 de Fevereiro de 2003 que após a ocupação da Rádio Barlavento, o P.A.I.G.C. começou a pedir essas prisões às autoridades portuguesas.49
Até à data, nenhum dirigente do P.A.I.G.C. assumiu a autoridade moral dessas prisões, no seu conjunto. Relativamente à U.D.C., desconhecemos a existência de quaisquer testemunhos, depoimentos, entrevistas ou livros de memórias dos seus dirigentes que relatem qualquer aspeto relacionado com todo este período conturbado da História de Cabo Verde. O dirigente da U.P.I.C.V., José André Leitão da Graça, afirmou ao jornalista José Vicente Lopes encontrar-se no estrangeiro por altura do desenrolar dos acontecimentos, onde foi informado por um militar português acerca das prisões e de um suposto acordo secreto entre o P.A.I.G.C. e o governo de Vasco Gonçalves.50 Por sua vez, António Caldeira Marques, jurista cabo-verdiano convidado a encarregar-se dos processos dos presos, afirma que as ordens de prisão vieram de Lisboa.51
Na obra de autoria de José Vicente Lopes, faz-se referência ao relatório final da missão em Cabo Verde do capitão Augusto Torres Mendes, Comandante militar na ilha de Santiago e que deu as ordens de prisão nessa ilha. Nesse relatório, que não pudemos consultar, é explicado que os cidadãos em causa foram detidos pela própria população.52
Por fim, o General Amílcar Fernandes Morgado, oficial de Infantaria e chefe de gabinete do Alto Comissário e ainda chefe do governo de transição nomeado poucos dias depois, apresenta muito detalhadamente esta versão dos factos, afirmando que, ao decidir efetuar as prisões, as autoridades portuguesas no arquipélago reagiram a uma “ampla movimentação de massas populares”:
“Em São Vicente, no dia 14 de Dezembro de 1974, foram apresentadas, em menos de duas horas, cerca de sessenta moções das mais diversas proveniências, em que se exigia a prisão de elementos tidos como provocadores, informadores da exPIDE/DGS ou que actuavam em nome de partidos políticos não reconhecidos. Essas moções, todas de S. Vicente, foram dirigidas às mais variadas entidades: ao Comandante-chefe, ao Comandante do CTICV, ao M.F.A., ao encarregado do Governo, à Rádio Voz de S. Vicente (nova designação da emissora ocupada) e à direcção nacional do PAIGC. As referidas moções atingiam um total de 28 indivíduos, dos quais oito eram referidos nominalmente em todas. Esses oito indivíduos foram efectivamente detidos em 14 e 15 de Dezembro, entregues às forças militares e colocados no presídio do Tarrafal.”53
Posto isto, é necessário referir que em Portugal são raríssimos os documentos disponíveis para consulta relativos a este período e que integrem arquivos públicos: é o caso do Arquivo Nacional/Torre do Tombo, do Arquivo da Marinha e do Arquivo Histórico Militar. Em Cabo Verde desconhecemos a possibilidade de consulta pública de documentos que integrem os arquivos dos três partidos em causa e no Arquivo Histórico Nacional não há documentos para consulta relativos a este período preciso, nem tão pouco na Fundação Amílcar Cabral.
Ora, não é, evidentemente, função do historiador reproduzir as diferentes versões de um dado acontecimento, e muito menos simplesmente assumir uma delas como correspondendo à verdade científica dos factos. Como recorda Vincent Duclert : “La mémoire individuelle ou collective, les souvenirs vivants en d’autres termes, sont une des sources de la fabrication du savoir historien. Mais une source ne peut, à elle seule et sans travail d’analyse, de confrontation et d’écriture, se transformer en savoir constitué. (…) C’est de faire mourir l’histoire que de la confondre avec la mémoire.”54
O necessário trabalho de análise e confrontação só pode ser realizado a partir de uma diversidade de fontes que se possam cruzar. Perante a impossibilidade de aceder à esmagadora maioria das fontes escritas relativas ao período que precede a tomada de posse do governo de transição e a evidente escassez de depoimentos dos diversos atores implicados no terreno conturbado que foi o período que medeia o 25 de Abril e 31 de Dezembro de 1974, podemos, ainda assim, tecer algumas considerações e fazer algumas perguntas às quais, em nosso entender, será necessário poder responder para se chegar a uma melhor compreensão do processo de descolonização em Cabo Verde, e mais especificamente, no que respeita aos acontecimentos no terreno:
1/ dispondo o P.A.I.G.C. de armas no arquipélago, até que ponto os soldados portugueses aí presentes estariam dispostos a iniciar um conflito armado?
2/ a U.D.C e a U.P.I.C.V. seriam, na altura, estruturas partidárias que pudessem constituir uma alternativa à proposta do P.A.I.G.C.?
3/ Sem uma análise aprofundada das divergências e eventuais conflitos no seio das Forças Armadas portuguesas estacionadas no arquipélago não se poderá responder cabalmente às seguintes perguntas: por altura do 25 de Abril, que peso tinha realmente o M.F.A. nas Forças Armadas portuguesas estacionadas no arquipélago? O M.F.A. apoiou o PAIGC desde o início ou tinha uma corrente que o apoiava? Pode considerar-se esta corrente maioritária no seio do movimento, desde o 25 de Abril, ou foi ganhando força com a atuação do P.A.I.G.C. no terreno e com o avanço das negociações entre o Governo português, o P.A.I.G.C. e a F.R.E.L.I.M.O.?
Não restam dúvidas de que o P.A.I.G.C. impôs-se perante as instâncias internacionais, cujas posições o Governo português decidiu reconhecer. Parece-nos, contudo, de especial relevo tentar saber qual terá sido a posição do Governo dos Estados Unidos da América na altura, tendo em conta a importância estratégica do arquipélago no Atlântico Médio e o facto de, aquando da 2ª Guerra Mundial, este país ter considerado muito seriamente a possibilidade de invadir a então colónia portuguesa.55
(continua)...
33 Santos, Quase Memórias, 234. 34 Pereira, O meu testemunho, 277, 283. 35 Lopes, Cabo Verde, 373. 36 Lopes, Cabo Verde, 385. 37 Lopes, Explicação, 73. 38 Lopes, Cabo Verde, 392. 39 Lopes, Cabo Verde, 392 – 97. 40 Santos, Quase Memórias, 247. 41 Santos, Quase Memórias, 250-51. 42 AN/TT, DCV - Descolonização de Cabo Verde, Caixa 1 “Acordo entre o Governo Português e o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC)” 43 Arquivo de História Social, ICS/UL http://www.ahs-descolonizacao.ics.ul.pt/caboverde.htm 44 Pereira, O meu testemunho, 6245 Arquivo de História Social, ICS/UL http://www.ahs-descolonizacao.ics.ul.pt/caboverde.htm 46 Arquivo de História Social, ICS/UL http://www.ahs-descolonizacao.ics.ul.pt/caboverde.htm 47 Pereira, O meu testemunho, 622. 48 AN/TT, DCV - Descolonização de Cabo Verde, Caixa 4, “Estudo sobre a situação político-económica em Cabo Verde” 49 Arquivo de História Social, ICS/UL http://www.ahs-descolonizacao.ics.ul.pt/caboverde.htm 50 Lopes, Explicação, 83.
51 Lopes, Cabo Verde, 397. 52 Lopes, Cabo Verde, 396. 53 Arquivo de História Social, ICS/UL http://www.ahs-descolonizacao.ics.ul.pt/caboverde.htm, sessão de 2 de Outubro de 1998 54 Vincent Duclert, L’Avenir de l’Histoire, (Paris: Armand Colin, 2010), 37. “A memória individual ou coletiva, noutros termos, as recordações vivas são uma das fontes de construção do saber histórico. Mas uma fonte não pode, por si só e sem trabalho de análise, confrontação e escrita, transformar-se num saber constituído. (…) É fazer morrer a história confundi-la com a memória.” (traduzido por mim) 55 António Telo, Portugal na Segunda Guerra (1941 – 1945), (Lisboa: Veja, 1991), 28-9.
O processo de descolonização de Cabo Verde Ângela Sofia Benoliel Coutinho (IPRI/UNL)
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