DIVAGAÇÕES...

Lembro-me, frequentemente, de minha tia Conceição que, aliás, era - isso sim - casada com meu tio, sargento reformado do exército. Era uma mulher baixa, ventre dilatado, sempre corada...Não parava, nunca: se não cozinhava, lavava roupa, limpava o pó, arrumada gavetas mais do que arrumadas, esfregava ou, então, alimentava os coelhos, pelos quais se levantava de madrugada para lhes poder oferecer as folhas mais verdes, colhidas na hora...As poucas vezes que a via parada, era a fazer qualquer coisa, passajando as meias, pregando botões...Ocasionalmente rezava manuseando um rosário polido pelo tempo e pelo uso, sussurrando as orações, de olhos semi-cerrados, finalmente longe do seu mundo pequenino, desinteressante, repetido, cinzento, talvez a mulher mais só que eu conheci a quem nem a alegria da maternidade fora concedida...

Nos Verões quentes de Agosto, depois de meu tio se ter deitado, lado-a-lado com o seu mau humor e o seu mau carácter, sentávamo-nos no patamar da escada exterior que dava acesso à casa, sobre uma adega perdida no meio de uma quinta enorme, sem água canalizada, sem electricidade, sem telefone, sem sorrisos...Então. eu tentava explicar à tia Ção o pouco que então sabia do Universo, que dali se vislumbrava numa sinfonia de estrelas brilhando no negro azulado do firmamento, fazendo ênfase nas distancias inimagináveis que nos separam do sol, da lua e do céu, que é uma coisa sem fim, ou cujo fim se não conhece...E ela parecia gostar de ouvir, embora me ficasse a sensação de ela dizer que sim a tudo, só para não me magoar.. A tudo, não, pois uma noite, quando, uma vez mais, se falava no facto de o Céu ser, apenas, uma referência incomensurável, ouvi-a comentar: "Mas, ó filho, se isso do Céu é assim lá tão longe que não tem fim como é que eu sinto Deus, que vive no Céu, sempre ao pé de mim...?!"

Aí, eu entendi que, afinal, a minha querida e sacrificada tia Conceição não vivia tão só como parecia: tinha a companhia da Fé...

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