A RAZÃO DO CRAVO
O cravo tem predicados, todos os que quisermos associar à beleza da sua forma singela, ao regalo visual da sua cor e à excelência ácida do seu perfume, para se impor no reino da natureza. Não interessará querer penetrar nos segredos do cosmos para perceber os critérios de escolha, as subtilezas do acaso ou as secretas congeminações bioquímicas que determinaram a singularidade única desta flor. Interessa é tê-la nos nossos jardins, fruir a sua cor, aspirar a sua fragrância, enfim, emoldurá-la na nossa apetência infinita pelo belo. Dar-lhe como prenda um lugar central na metáfora de todos os nossos sonhos.
E como não podia ser assim se o cravo é o símbolo da Revolução de Abril? Se a liberdade veio, como disse a poetisa Sofia de Mello Breyner Anderson na “madrugada que “ela” esperava/ o dia inicial inteiro e limpo/onde emergimos da noite e do silêncio/ e livres habitamos a substância do tempo?
Será que o cravo veio, predestinado, na lapela dessa madrugada, qual símbolo o mais excelso de uma revolução com armas mas sem violência, convulsiva nos seus intentos mas morigerada no modo e no processo?
Não se sabe bem como tudo aconteceu, pois existem várias versões. Uma delas é que uma florista ia levar cravos para um hotel e foi vista por um soldado e este logo se apoderou de um exemplar, ou lhe foi oferecido, que pôs na boca do cano da sua espingarda, gesto que depressa foi imitado por outros companheiros de armas. É muito provável que tenha sido assim, mas foi pena o acto não ter sido captado por uma qualquer câmara fotográfica para o imortalizar, no tempo e no silêncio da intimidade do gesto, como a mais bela e radiosa metáfora de uma revolução. No gesto do primeiro soldado cristalizou-se a espessura de um barroquismo, a mais harmoniosa conciliação entre o instinto e a sublimidade da natureza humana. E o cravo foi, naquele momento, o fiel servidor daquele propósito.
Passaram-se já 41 anos desde aquela madrugada. A história destes tempos implica exigências que nem sempre encontram o melhor compromisso entre as subjectividades e as escolhas racionais. À serenidade e à limpidez do juízo contrapõem-se muitas vezes a execração, a distorção e o tumulto, derrogando a proeminência natural do bom senso e da humildade, aparentemente esquecido o mistério rubro de um cravo que o acaso prendeu à boca das nossas espingardas, como símbolo de uma crença que ainda ressoa na mudez das nossas insanáveis inquietações.
O cravo não fazia parte do texto da “Ordem de Operações” do Movimento de Abril, nem o seu significado traduzível na semântica da sua linguagem. Portanto, a figura do cravo não preponderou na razão de quem urdiu essa ordem, a flor foi um daqueles imponderáveis que acontecem nos campos de batalha. O cravo foi a sua própria razão e a melhor maneira de a perceber é lembrar agora estes versos de Florbela Espanca:
Bocas rubras de chama a palpitar,
Onde fostes buscar a cor, o tom,
Esse perfume doido a esvoaçar,
Esse perfume capitoso e bom?!
Tomar, Abril de 2015
Adriano Miranda Lima
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