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sexta-feira, 23 de março de 2018

[10050] - A DESCOLONIZAÇÃO - CABO-VERDE III


As realizações do PAIGC e os conflitos entre “guineenses” e “cabo-verdianos” 


O ano de 1973 foi decisivo para a luta de libertação nacional conduzida pelo P.A.I.G.C.. Após o assassinato do seu líder histórico, Amílcar Cabral, em Conakry, a 20 de Janeiro, as ações foram intensificadas no teatro de guerra, e a direção deste partido decidiu avançar com a tomada dos aquartelamentos de Guilege e Guidage.

Não será exagero afirmar que, ao longo dos anos, a temática da rivalidade e dos conflitos étnicos entre militantes e dirigentes do P.A.I.G.C., envolvendo em particular os “guineenses” e “cabo-verdianos” tem sido privilegiada quando se pretende discutir os diversos problemas que este partido enfrentou, até à sua cisão em 1980.  Este conflito, apontado pelo próprio dirigente máximo do partido10 ter-se-á manifestado mais abertamente aquando dos acontecimentos ocorridos na noite de 20 de Janeiro de 1973. Em entrevistas publicadas em 1998, diversos dirigentes e militantes cabo-verdianos do P.A.I.G.C. que se encontravam nessa noite em Conakry, afirmaram que se tratou de uma tentativa de golpe, de cariz étnico, visando a eliminação física dos militantes cabo-verdianos e dos guineenses “mestiços”.11 Estes acontecimentos desenrolaram-se em Conakry e no barco 28 de Setembro, onde também foram presos diversos militantes e dirigentes. Contudo, nas chamadas “regiões libertadas”, sob domínio e administração do P.A.I.G.C., nas frentes sul, leste e norte e na representação do partido em Dakar nenhum dirigente ou militante caboverdiano ou “mestiço” guineense sofreu quaisquer ataques ou moléstias.12 Na sua obra Amílcar Cabral – vida e obra de um revolucionário africano, Julião Soares Sousa apresenta uma lista dos militantes que foram na altura acusados de envolvimento nas ações empreendidas contra a direção do P.A.I.G.C.13. De entre eles, surge, envolvido em suspeitas, o nome de um alto dirigente político e militar nascido na Guiné, Osvaldo Vieira, sem que até hoje tivessem sido reunidas provas contundentes que comprovassem o seu real envolvimento.

Assim, Luís Cabral acusa os militantes envolvidos de serem maioritariamente indivíduos que tinham sido acusados, julgados e condenados pelas estruturas partidárias por traição ou corrupção, e que se sentiam “politicamente queimados” junto às populações, e por conseguinte, encurralados na sua situação.14 Julião Soares Sousa afirma: “O que é certo é que a grande maioria dos assassinos eram elementos que, de uma maneira ou de outra, estavam descontentes com a sua situação no partido, (…).”15 Aquando da realização do IIº Congresso do P.A.I.G.C., em Julho de 1973, a questão do critério étnico para a eleição dos órgãos de direção do partido foi colocada. Julião Soares Sousa faz referência a “uma alegada reunião” realizada entre dirigentes guineenses16 e Luís Cabral fala de um movimento de responsáveis que “tentou criar uma categoria de ‘filhos autênticos da Guiné’”17. Não dispondo de dados que nos permitam compreender a forma como esta questão foi apresentada e por quem, não podemos deixar de constatar o seguinte: de entre os que têm sido considerados como fundadores do P.A.I.G.C. e que assumiram a direção do movimento independentista ao longo de quase duas décadas, o único nascido em Cabo Verde, onde também cresceu, tendo origem familiar cabo-verdiana, a saber, Aristides Pereira, foi o eleito para o cargo de Secretário-geral do partido, tendo ficado incumbido da condução da etapa final da realização do objetivo primeiro deste, a independência política da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Por essa ocasião, foi também criado o lugar de Secretário-geral adjunto, para o qual foi eleito o também fundador Luís Cabral, nascido na Guiné, de mãe portuguesa e pai caboverdiano, tendo crescido no arquipélago e vivido na Guiné já adulto. Foram eleitos para o Secretariado Permanente, para além dos dois dirigentes referidos, os Comandantes João Bernardo (Nino) Vieira e Francisco Mendes (Chico Té), ambos nascidos na Guiné. Por fim, foram eleitos 25 membros do Comité Executivo da Luta, antigo Bureau Político, constituído por 5 indivíduos nascidos em Cabo Verde e 20 nascidos na Guiné. Foram ainda constituídos dois novos órgãos de direção partidária, a saber, a Comissão Nacional do P.A.I.G.C. para a Guiné, presidida pelo Comandante Nino Vieira e a Comissão Nacional para Cabo Verde, dirigida pelo Comandante Pedro Pires.

Assim, pode afirmar-se que, aquando do início do processo negocial que conduziu à independência de Cabo Verde não existiam ou desconhecem-se até à data quaisquer questões relativas a conflitos étnicos entre dirigentes e militantes “guineenses” e “cabo-verdianos” do P.A.I.G.C.. Esta questão surgiu novamente de forma explícita aquando do golpe de Estado militar perpetrado a 14 de Novembro de 1980 em Bissau. Nessa ocasião, os golpistas fizeram sobretudo duras críticas à atuação do governo deposto, mas também proferiram as mais graves acusações contra os dirigentes cabo-verdianos, sugerindo que estes tinham sido os autores de fuzilamentos sumários no país. Tal acusação não impediu o Presidente do Conselho da Revolução, Comandante Nino Vieira, Primeiro-Ministro do governo deposto e Presidente da Comissão Nacional da Guiné do P.A.I.G.C., de afirmar ao Presidente do partido, Aristides Pereira, que os golpistas pretendiam prosseguir o relacionamento com Cabo Verde18. Outrossim, até à data não foram apontadas a morte e/ou prisão de dirigentes políticos e militares cabo-verdianos que então residiam na Guiné-Bissau, em número reduzidíssimo, segundo os cálculos de Aristides Pereira19. Pelo contrário, verificouse a morte de alguns dirigentes guineenses e foi apontada a prisão de mais de uma dezena de dirigentes políticos e militares naturais deste país20. A rutura com Cabo Verde foi formalizada em 1981, aquando da criação do P.A.I.C.V. pela ala caboverdiana do P.A.I.G.C.. Durante algum tempo, porém, foi manifestado um certo descontentamento pelo facto de ter permanecido a sigla “C” no P.A.I.G.C. da Guiné, que os dirigentes guineenses sempre se recusaram a retirar. Na posse de mais elementos de análise, poderemos compreender se pela recusa da retirada do “C” os dirigentes guineenses de então não quiseram assumir a rutura com a ala caboverdiana do partido ou se acharam que esta alteração não seria bem acolhida pela população.  Pode afirmar-se que a estratégia proposta e adotada pelo P.A.I.G.C. de associar guineenses e cabo-verdianos na luta anticolonial e pela emancipação política dos povos em questão, mais do que causadora de problemas insanáveis, foi eficaz e bemsucedida, tendo sido atingido por esta via o principal objetivo enunciado por este partido, a saber, a independência política destes territórios através da criação de dois Estados.         
Pelo acima exposto, tudo indica que as rivalidades e/ou conflitos entre os naturais destes dois territórios ou ainda entre os nascidos na Guiné-Bissau, sendo uns considerados estrangeiros e outros nacionais, de acordo com critérios de categorização ainda não inteiramente explicitados por nenhum autor, não terão constituído, por si só, motivos de força maior para provocar mudanças de relevo na estrutura partidária e/ou na estratégia global de condução do movimento independentista. Como tem sido notado por autores que se têm debruçado sobre esta matéria21, não é possível proceder a uma análise aprofundada dos acontecimentos mais estreitamente ligados à manifestação destas rivalidades étnico-nacionais sem ter em conta diversos outros fatores que a elas estiveram constantemente associados, tanto os de ordem interna, como regional, imperial e internacional.  Outrossim, tendo em conta a grande multiplicidade étnica e religiosa que é característica da sociedade bissau-guineense, que por volta de 1970 integrava animistas, muçulmanos, católicos e protestantes e mais de 20 grupos étnicos, parecenos largamente insuficiente uma análise de conflitos étnico-identitários que se cinjam ao caso dos nascidos na Guiné que tinham ou não origem familiar cabo-verdiana. Para uma análise que não seja superficial desta realidade social, é necessário indagarse acerca da forma como eram vistos e categorizados, e por quem, os nascidos na Guiné de origem sírio-libanesa, europeia, a saber, portuguesa, francesa, alemã, até goesa, e sobretudo, os muitos filhos de refugiados guineenses das diversas guerras ocorridas ao longo do século XX, que nasceram nos territórios africanos vizinhos. Assim, para o caso em apreço, importa questionar o conceito de “guineense” assumido pelos militantes que recusavam como nacionais os nascidos na Guiné com origens estrangeiras: até que ponto, para eles, faria sentido lutar por um território que englobasse todos os povos que então viviam na chamada Guiné Portuguesa, ou seja, terão realmente aderido ao projeto proposto pelo P.A.I.G.C. de criação de um Estado que englobasse e integrasse todos estes povos? Ou ao pretender eliminar a direção “cabo-verdiana” do P.A.I.G.C. pretendiam, na verdade, desistir do objetivo que era também deste partido de libertar politicamente Cabo Verde e avançar desde logo com a proposta das autoridades portuguesas de negociar a independência da GuinéBissau?

Preparada desde 1972 e anunciada por Amílcar Cabral, ainda em vida, a proclamação unilateral da independência da República da Guiné-Bissau concretizouse no dia 24 de Setembro de 1973, em Madina do Boé. A 3 de Novembro seguinte, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou uma resolução condenando o Governo Português pela ocupação ilegal de uma parte do território da Guiné-Bissau e exigindo que iniciasse negociações com o P.A.I.G.C.. A não concretização do projeto de invasão armada do arquipélago por guerrilheiros do P.A.I.G.C. não impediu que a Assembleia Geral das Nações Unidas reconhecesse este partido como único legítimo representante dos cabo-verdianos, o que também foi feito a 5 de Abril de 1974 pelo Comité de Descolonização das Nações Unidas.22 Por sua vez, a Organização da Unidade Africana admitiu a Guiné-Bissau por unanimidade, a 19 de Novembro de 1973.  No respeitante ao cenário internacional era esta a situação em vésperas do golpe de Estado de 25 de Abril de 1974 em Portugal, que teve como uma das consequências imediatas a alteração da política colonial que vinha sendo seguida até então pelo Governo Português.

 10 Amílcar Cabral, Pensar para melhor agir – intervenções no seminário de quadros, 1969 (Praia: Fundação Amílcar Cabral, 2014), 134. 11 Pereira, O meu testemunho, 445, 536, 553, 620. 12 José Vicente Lopes, Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História (Praia: Spleen, 2012), 181. 13 Julião Soares Sousa, Amílcar Cabral – vida e morte de um revolucionário africano (Lisboa: Nova Veja, 2011), 512, 513. 
14 Cabral, Memórias, 75, 76. 15 Sousa, Amílcar, 514. 16 Sousa, Amílcar, 522. 17 Cabral, Memórias, 110. 
18 Ângela Sofia Benoliel Coutinho, “Os dirigentes do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde), da fundação à divisão : estudo de percursos individuais, de estratégias familiares e de ideologias” (Doutoramento em História de África, Universidade de Paris I – Panthéon Sorbonne, 2005). 19 Coutinho, “Os dirigentes do PAIGC.” Aristides Pereira faz referência a 5 indivíduos.   20 Coutinho, “Os dirigentes do PAIGC.” 
21 Ver Sousa, Amílcar e Tcherno Djaló, O mestiço e o poder – identidades, dominações e resistências na Guiné (Lisboa: Nova Vega, 2012) 266-67. 
22 José Vicente Lopes, Cabo Verde os bastidores da independência, (Praia-Mindelo: Instituto Camões, 1996), 347. 

O processo de descolonização de Cabo Verde   Ângela Sofia Benoliel Coutinho  (IPRI/UNL) 

2 comentários:

  1. Como escrevi anteriormente este trabalho apesar de bom tem um vies muito direccionado para a narrativa do Paigc. Em Cabo Verde é impossível confrontar teses e outras narrativas pois as coisas ficam no domínio oral. Os vencedores silenciaram os vencidos e acabaram mudos.
    Apesar de reconhecer o valor deste trabalho, tenho por mim que a verdadeira história está distante desta que é contada aqui: mas isto é um ponto de vista.
    O drama destas narrativas é que se estivéssemos num outro país mais aberto, europeu por exemplo, haveria confronto de ideias de opiniões sobre esta e outras matérias etc. Haveria a direita o centro a esquerda cada uma com as seus pontos de vista públicos debatidos em jornais e na TV. Em CV é o que sabemos. Não digo mais nada!!

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    1. Concordo plenamente José, fico à espera de receber uma versão com outra visão sobre os mesmos acontecimentos, para publicar no AC!!! Abraço

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