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domingo, 24 de junho de 2018

[10068] - OS DEGREDADOS



DEGREDADOS

Foi numa madrugada de janeiro melancólica e lúgrebe com um carme dantesco. Sob uma chuva miúda e fugida entre duas filas de guardas de baioneta armada, marcham para o cais os degredados.

Na rua erma e gélida qual catacumba em que a romper o silêncio apenas ressoava o passo regular da soldadesca, um taberneiro madrugador abria a loja, especava-se depois entre portas a ver desfilar aquele cortejo de desgraça e, erguendo o braço espalmando a mão suja murmurava rindo alvarmente:-- “ São vadios…”. E eles os párias que a justiça proscrevia, passavam cabisbaixo e andrajosos dardejando olhares de fome.

Eu, quedei-me a examinar esses presos dos quais apenas uns seis, de melenas e ar gingão inspiravam asco; a maioria dos da leva uns vinte talvez, tinham o tipo d’operários sem trabalho e caminhavam com uma atitude de verdadeiras vítimas da imperfetibilidade social.
Horrorizava ver, numa selva de baionetas, marchar para a morte lenta ou para o vício, esse contingente do grande exército dos sem pão; e levavam o sinete do vilipêndio, esses desgraçados que poderiam ser cidadãos honestos e generosos. O taberneiro o dissera! Eram vadios…

****

      Chegada ao cais a força fez alto, uniu as fileiras, e as coronhas da Mauser batendo pesadamente no solo produziram um som cavo e profundo como um dum rumor subterrâneo; as águas barrentas e revoltas do rio batiam numa fúria impotente contra a muralha do molhe e, de lá em baixo, fortemente atracado, o rebocador bambaleava-se galhardamente de popa à proa esperando fumegante o momento de conduzir os presos para o paquete.

-- Agora, no cais procedia-se à chamada; um sujeito grave, de certa idade bradava já em voz irritante o último nome da lista que tinha na mão: “ João Maria”, pronto! Disse um rapaz ainda imberbe que chorava em silêncio.

Uma mulherzita sua conhecida que chorava a meu lado contou-me a sua história. Ele era enjeitado, aprendiz de carpinteiro, um dia despediram-no e o pobrezito, depois de procurar em vão em que ganhar a vida, viu-se sem dinheiro e sem abrigo e passou a dormir nas praças públicas; foi preso várias vezes; por último deram-lhe parte e agora lá o mandaram para essas áfricas …

Afastei-me confrangido ao ouvir esta história que tinha tanto de singela como de trágica.
E enquanto os clarins dos navios de guerra tocavam a alvorada n’um tom plangente e triste como uma marcha fúnebre, a bordo do rebocador, esse contingente do grande exército dos sem pão dispunha-se de lágrimas nos olhos e coração opresso a partir para a morte ou para depravação se não morressem pelas febres aprenderiam a ser criminosos!
Eram vadios….

Armando D’Aquino
Em “ A luz” Lisboa, 25 janeiro de 1909

Nota: - Cabo Verde – A deportação portuguesa para Cabo Verde parece ter sido verdadeiramente significativa no século XIX. De acordo com os dados de António Carreira, foram deportados para o arquipélago 2.433 condenados, dos quais 81 mulheres”

COLABORAÇÃO: DJEU

domingo, 27 de maio de 2018

[10063] - AREIAS DE CABO VERDE - HISTÓRIA

EÇA DE QUEIROZ
AREIA DE CABO-VERDE

…” Tendo deixado de falar para resolver, o actual sr. Ministro da marinha nem fala nem resolve.
O parlamento fechou-se sem que sua ex.ª lhe apresentasse:
O orçamento do ultramar.
O relatório do seu ministério.
O mais simples e exíguo projecto de lei.

Da actividade com que sua ex.ª ocorre ao expediente dos negócios pendentes da sua secretaria, daremos ao leitor uma ideia contando uma história.
À exposição de Paris de 1867 mandou um habitante do arquipélago de Cabo Verde uma amostra das areias daquela costa. Examinou em Paris as referidas areias, a École des arts et des métiers, e em Lisboa a sociedade farmacêutica. Averiguou-se então que a areia das costas de Cabo Verde continha partículas de ferro.

Há tempos a casa A. Dubois & C.e, de Rouen, tendo catorze navios em navegação entre o nosso arquipélago e os portos europeus, lembrou-se de pedir ao governo português licença para exportar, como lastro, a areia de Cabo Verde, pagando ao governo a quantia que ele arbitrasse a cada tonelada de areia, e obrigando-se a casa Dubois a fixar o mínimo das toneladas exportadas, a fim de que o governo pudesse desde logo fixar no orçamento do estado esta nova receita.

Um amigo nosso, o sr. Regnauld, sócio da casa Dubois, negociantes milionários, cuja respeitabilidade foi afiançada em Lisboa pelo próprio sr. Thiers, o sr. Regnauld dizemos, veio pessoalmente a Portugal tratar do negócio, e expô-lo em toda a sua simplicidade ao sr ministro da marinha. S. ex.ª mandou ouvir a junta consultiva do ultramar. Esta deu o seguinte parecer sibilino:
Que, havendo aço na areia de Cabo Verde, e sendo o aço um metal, a exportação da sobredita areia se deveria regular pela legislação das minas!

Legislação das minas era muito menos lucrativo para o governo e muito menos dispendioso para a Casa Dubois, o nosso amigo Regnauld apressou-se a declarar que aceitava o contrato nas bases da legislação que se lhe inculcava. Considerada porém a areia de Cabo Verde como se fosse uma mina, era preciso: saber quem tinha descoberto a mina; registar a mina delimitar a mina; etc., etc. – o que tudo se tornava bastante difícil de se fazer – não havendo mina.

De sorte que, tendo-se primeiramente decidido, sobre a praia, que a praia se considerasse mina, resolveu-se depois sobre a mina, que a mina se considerasse praia.
O Sr. Regnauld apresenta-se, pede, suplica, exora: -- Meus senhores, considerem a areia como muito bem quiserem, considerem-na praia, considerem-na mina, considerem-na pano cru, considerem-na óleo de mamona, mas respondam-me uma coisa: digam-me sim ou digam-me não, como lhes aprouver, mas respondam-me por quem são, porque eu estou aqui a morrer de calor e de tédio, e quero ir-me embora para casa!

Tal tem sido em cada dia a linguagem do nosso amigo, o qual está em Lisboa há noventa dias: O seu requerimento foi apresentado há dez meses!
Não se lhe responde nada, senão que se está meditando o assunto.
IN- FARPAS- EÇA DE QUEIROZ – RAMALHO ORTIGÃO

COLABORAÇÃO - DJEU