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terça-feira, 28 de maio de 2013

A LENDA DAS GARRAFAS VAZIAS...

PREFÁCIO

Desde os meus tempos de menino, em S.Vicente de Cabo Verde, (1943-1977) que ouço contar esta história, com percurso e localizações diversas mas sempre com a mesma moral no fecho...Alguns nomes foram adaptados, outros não, para dar mais realismo à história. Os dois protagonistas eram pessoas de bem que, no entanto, não conseguiam esconder o antagonismo mútuo, progenitor de muitos casos entre ambos. A história das garrafas vazias, todavia, é paradigmática. Desejo que a apreciem, devidamente...

***
Nhô Ezequiel, era magro, vestia, preferentemente, de negro, e era raro vê-lo sem chapéu...Tinha uma lojinha ali perto da bica da água do Madeiral, do chamado comércio-geral, que era uma designação que, como se adivinha, não quer dizer, literalmente, nada, a não ser que vendia de tudo um pouco menos aquilo para que fosse necessária uma licença especial...Já Nhô Franquelim, que em tempos tinha estado nos States, era um tanto barrigudo, bigode abundante e, em vez de chapéu, usava um boné de pano de cor indefinida, gasta pelo tempo e o sol inclemente...A sua lojinha, nas imediações - trás de Igreja - era semelhante à do Sr. Ezequiel...
Quando calhava passarem um pelo outro, o que não era raro numa cidade tão pequena, conseguiam cumprimentar-se respeitosamente, mas sem sequer se olharem e quando era necessário e os superiores interesses da vida comercial o aconselhavam, não deixavam de dialogar. Como se costuma dizer, os dois odiavam-se civilizadamente...
Foi numa dessas raras conversas que Franquelim deu uma noticia que ainda era segredo mas cuja veracidade lhe havia sido confirmada pelo Jack Alfama: os produtores de grogue, de Santo Antão, preocupados com a quantidade de garrafões e de garrafas do precioso néctar que se partiam nas viagens entre as ilhas, estavam decididos a mandar o grogue em barris para, depois, ser engarrafado em S.Vicente...Claro que iam ser necessárias milhares de garrafas vazias para o efeito e ele, Franquelim, até já tinha começado a comprar tudo quanto era garrafa vazia - o que, por acaso, até era verdade - mas não podia comprar muitas mais pois não tinha onde as armazenar...
Nhô Ezequiel não pareceu grandemente interessado mas, por dentro, todo ele tremia na expectativa do "negócio da China" que antecipava, ele que tinha, por detrás da loja, um belo dum armazém, praticamente vazio...Quase que correu para a sua lojinha e minutos depois, colava nas portadas de madeira dois avisos em papel pardo que anunciavam a compra, a bom preço, de garrafas vazias, lavadas e em bom estado...
Como por milagre, não eram passados cinco minutos e já dois miúdos se apresentavam, cada um com meia-dúzia de garrafas para venda...Sôfregamente, Nhô Ezequiel quase que arrancou as garrafas das mãos dos seus primeiros fornecedores e declarou-se disposto a pagar dois tostões por cada uma...Ao fim de um minuto de barganha fixou-se um valor de quinze tostões para cada lote de seis garrafas...Nhô Ezequiel ainda esfregava as mãos de satisfação quando entrou outro moço com quatro garrafas e a enxurrada foi tal que, ao fim do dia, o comerciante, com o chapéu a pingar suor, já tinha conseguido empilhar na parede do fundo do seu armazém cerca de 500 garrafas, sem desconfiar que, muitas delas, tinham origem na loja de Nhô Franquelim...Da gaveta, entretanto, já tinham "saltado" 127$00 - cento e vinte se sete escudos - uma pequena fortuna, para a época...
Nos dois dias que se seguiram Nhô Ezequiel teve que pedir ajuda a dois sobrinhos para a azáfama de comprar garrafas quando, tinha ele cerca de 5000 compradas, o afluxo de vendedores parou...subitamente!
Passaram-se algumas horas com a cabeça de Nhô Ezequiel numa roda-viva, tentando entender aquela vozinha interior que lhe segredava que ele tinha caído numa esparrela...
Havia, mesmo lá fora, uma calma abafada, como aquelas que antecedem as grandes tempestades, enquanto o dono da loja olhava, através da porta interior, os mais de 1.200 escudos de garrafas vazias que cintilavam à luz filtrada pelas duas janelas como diamantes de imitação!
De repente, tudo se esclareceu, tudo ficou claro como água, tudo ficou arrumado na mente fervilhante de Ezequiel, quando um miúdo entrou, aproximou-se do balcão e disse:
- Nhô Franquelim mandou-me comprar três garrafas vazias...
O berro de Nhô Ezequiel deu três voltas à ilha antes de se extinguir na garganta seca do homem a quem ainda hoje pertence o recorde de maior comprador mundial de garrafas vazias!

10 comentários:

  1. Stóra típica de um Mindelo antigo mas que ainda hoje nos diverte. E ainda por cima, bem contada!...

    Braça engarrafada,
    Djack

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  2. Deu-me um gozo imenso ler esta anedota (verídica), muito bem desenvolvida e romanceada. Isto trouxe-me à memória as noitadas vividas no banco grande da Praça Nova, entre o Grémio e o Pic-Nic,
    a ouvir istórias destas na companhia do Manel Marques, Djosa Marques, Julim de Siminhas, Jule de Ximxim e muitos outros. Um vez Soncente era sabe!!!!
    Um abração
    Brotas

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  3. Djack, a crónica social do Mindelo é um manancial de deliciosas anedotas vividas...É pena não se poder contar muitas delas, em ortuguês. já que o mais interessante das histórias tira partido, precisamente, do crioulo...Voltarei ao manancial semre que possivel...
    Brotas, essas sao daquelas saudades saudáveis, dum temo em que éramos felizes e nem nos dávamos conta...Obrigado pelos elogios que tentarei continar a mmerecer...
    Braçona p'ra ambos!

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  4. Querido Amigo,
    deliciosa a narrativa, que quase nos permite ver em cores, quadro a quadro, o ocorrido.
    Espero que brote muitas outras deste veio.
    Feliz com o rumo que está tomando a prosa, lhe abraço com carinho.

    shanti

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  5. Mea culpa...sou a autora da confusão. Dona Bete nada disse, sei que até diria pelo que eu a conheço, mas eu estava montando o blog dela quando lembrei de passar no Arrozcatum para minha visitinha diária e aí postei sem mudar o perfil.
    Desculpe-me Bete, desculpe amigo.

    Querido Amigo,
    deliciosa a narrativa, que quase nos permite ver em cores, quadro a quadro, o ocorrido.
    Espero que brote muitas outras deste veio.
    Feliz com o rumo que está tomando a prosa, lhe abraço com carinho.

    shanti

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  6. Bete é minha irmã e estará lançando o bonecasetcetal.blogspot.com em breve.

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  7. Confesso-me um tanto confuso mas creio ter entendido o essencial...
    Fico grato pelos encómios que desejo, para bem do meu ego, continuar a merecer, "malgré" Paulinho...

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  8. Se bem entendi o "malgré', digo-lhe que a rescindiva amorosa em nada muda o ciclo de amizades e afetos.
    Te tenho em grande querer e gostar, caro amigo. Sinta-se contemplado comm farta fatia do meu coração.
    Quanto a confusão, o post em nome de Ana Elisabete foi feito por mim, mas como eu estava usando a senha dela, acabou saindo em nome dela, que nem lhe conhece.
    Estou montando um blog para Bete, que se chamará bonecas, etc e tal.
    Desfeita confusão, refaço e renovo meu carinho e meu abraço.

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  9. Meu abraço para a risonha Dona Ana Elizabete...Tudo entendido, na perfeição...
    O meu "malgré" é meramente coloquial e não tem que ver com uma hipotetica mistura de "alhos com bogalhos"...Cada macaco no seu galho, creio que espelha bem a minha posição nesta viagem em paquete de luxo que é o seu coração, com cada coisa no seu convés sensorial...Gosto muito no espaço que me calhou e lhe reservo no meu idêntica mordomia...Fique bem com quem bem lhe quer!

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  10. Esta é realmente uma história tipicamente mindelense e assaz saborosa, e com uma qualidade literária de se lhe tirar o chapéu.

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