A entrada de Cabo Verde na segunda zona monetária da CEDEAO é mesmo inevitável? (II)
No artigo anterior, realcei algumas implicações que decorrem dos dois tipos de experiências de integração monetária analisados. Essas implicações ajudam-nos a reflectir sobre a eventualidade de uma adesão de Cabo Verde à segunda Zona Monetária da África Ocidental (ZMAO), nomeadamente, no que respeita ao problema das convergências.
Nas últimas décadas, sobretudo a partir do início dos anos de 1990, os desempenhos económicos de Cabo Verde e dos outros 14 países da região (CEDEAO-14) revelaram-se profundamente divergentes. Se medirmos o nível de desempenho através do Produto Interno Bruto (PIB) real per capita, em dólares EUA e a preços constantes de 2005 (dados do Banco Mundial), verificamos que em 1982 o desempenho cabo-verdiano (605 dólares) era ligeiramente superior ao de CEDEAO-14 (538 dólares) e inferior ao de países como a Costa do Marfim (1.398 dólares), Nigéria (763 dólares) e Senegal (685 dólares). Dez anos depois, o PIB realper capita de Cabo Verde duplicava o da média de CEDEAO-14 e era superado apenas pela Costa do Marfim. A partir de então, o hiato entre os dois níveis de desempenho começou a alargar rapidamente, com o nível de Cabo Verde a triplicar em 1996, pouco mais do quádruplo em 2000, cinco vezes maior em 2006 e 6 vezes maior em 2010. Os dados mais recentes disponíveis (2012) mostram que o desempenho cabo-verdiano (3.321) é 6,1 vezes maior do que o de CEDEAO-14 (547 dólares), sendo os seus acompanhantes mais próximos a Nigéria (1.072 dólares), Costa do Marfim (958 dólares), Senegal (797 dólares) e Gana (724 dólares).
Este percurso divergente do arquipélago deve ser compreendido à luz das opções de política económica e de desenvolvimento construídas a partir do início da década de 1990 e seguidas desde então. Sem entrarmos na avaliação dessas políticas (que não é possível aqui), não podemos deixar de observar o importante resultado de aprofundamento da integração económica internacional de Cabo Verde. Um dos aspectos desse aprofundamento é a modificação qualitativa na relação entre os fluxos de financiamento da economia cabo-verdiana, como aconteceu a partir de 2000. Até então, o conjunto constituído pela ajuda pública ao desenvolvimento e pelas remessas de emigrantes (APD+Rem) correspondia a uma percentagem do PIB superior ao do conjunto formado pelas exportações e pelo investimento directo estrangeiro (Exp+IDE). Em 2000, os valores igualaram-se em cerca de 30% do PIB e, a partir de então, voltou a aumentar o hiato entre os dois pares de valores, mas agora em favor do par Exp+IDE: em 2006, este par representava 51,1% do PIB, enquanto o par APD+Rem ficava em 22,2%; o fosso diminuiu na sequência da crise de 2008, mas em 2011 voltou a aumentar, com 37% para o par Exp+IDE e 22,9% para APD+Rem. Ainda que esta situação esteja longe de ser sustentável, ela traduz uma modificação qualitativamente importante, na medida em que a economia cabo-verdiana passou a ser financiada predominantemente através de fluxos de mercado (comércio e investimento) e com uma perda progressiva da importância dos fluxos de redistribuição.
O percurso divergente entre Cabo Verde e CEDEAO-14 não se restringe apenas à dimensão económica. O aprofundamento da integração internacional do arquipélago não é dissociável da construção do Estado de Direito, nem do conjunto de instituições que suportam o crescimento da economia de mercado interna e da sua internacionalização. E estas modificações institucionais estão muito mais avançadas do que na maior parte dos países da região oeste-africana. De facto, trata-se de um percurso de divergência económica, mas também de divergências institucionais e políticas, que não são separáveis das diferenças sociais, culturais e religiosas entre o arquipélago e a generalidade dos países da região continental vizinha.
Do ponto de vista monetário, e num momento em que os modelos de gestão monetária nacional estavam a ser reequacionados, Cabo Verde optou pelo estabelecimento de um Acordo de Cooperação Cambial (ACC) com Portugal, seu principal parceiro, procurando responder aos problemas de instabilidade cambial e de inconvertibilidade do Escudo cabo-verdiano. A criação do Euro deu lugar à comunitarização do ACC, na medida em que quaisquer alterações de natureza, ou de âmbito, têm de ser aprovadas pelo Conselho da União Europeia, ainda que o acordo seja de natureza essencialmente orçamental, isto é, que a convertibilidade da moeda cabo-verdiana seja garantida por compromissos orçamentais de Portugal e que este deva assegurar que não existem implicações financeiras significativas para a União. As consequências do ACC para a economia cabo-verdiana são, hoje, perfeitamente visíveis e da maior importância para a sua integração económica internacional: o acordo permitiu estabilidade cambial com o espaço europeu, donde provém a maior parte dos fluxos de comércio, investimento e remessas de emigrantes; e essa estabilidade supera perfeitamente qualquer instabilidade de flutuação cambial em relação a outras moedas internacionais. O acordo cambial constitui, por isso, uma pedra basilar no processo de integração internacional da economia cabo-verdiana.
A ideia da adesão de Cabo Verde à ZMAO levanta um mundo de questões, cada uma delas de resposta igualmente difícil. Mas as duas questões colocadas acima são, na verdade, fundamentais. Em primeiro lugar, o percurso divergente de Cabo Verde, consequência do aprofundamento da sua integração internacional, tal como acontece com a generalidade das pequenas economias insulares. Além disso, as sociedades têm percursos históricos que funcionam como tendências de fundo na sua evolução e cujo grau de objectividade é bem maior do que pensam (ou pensaram?) aqueles que têm defendido opções voluntaristas de transformação social e económica do país. E essas tendências de fundo impelem os cabo-verdianos para um modelo de relacionamento internacional centrado pelo Atlântico que, quando mais intenso for, mais contribui para o bom desempenho do país. Por isso mesmo, é uma ilusão pensar que a sociedade e a economia cabo-verdianas se vão reorientar claramente para o espaço continental africano, um espaço que os cabo-verdianos mal conhecem, de que estão cultural e religiosamente afastados e com o qual os seus agentes económicos praticamente não se relacionam. Se esse redireccionamento parece pouco provável, qual, então, o sentido do país integrar o projecto da segunda zona monetária?
A segunda questão relaciona-se com o ACC. Como vimos, este acordo constitui um mecanismo institucional que se mostrou adequado ao modelo de relacionamento internacional de Cabo Verde e que contribuiu para o próprio aprofundamento desse relacionamento. A adesão ao novo espaço monetário, com moeda própria, implica o desaparecimento do Escudo cabo-verdiano e, com ele, o acordo de cooperação cambial suportado pelo Tesouro português. E não é crível que as mesmas condições de estabilidade, confiança e convertibilidade possam ser asseguradas pela nova moeda. Assim, a adesão de Cabo Verde ao putativo Eco será uma aventura que, além de não estar suportada por nenhum estudo credível, irá substituir a sua moeda ligada ao Euro por uma outra que não tem muito significado para o desenvolvimento da sua economia e da sua integração internacional. Uma aventura que poderá ter consequências desastrosas para o país.
JOÃO ESTEVÃO |
domingo, 9 de fevereiro de 2014
(6502) - MOEDA UNICA, OU TALVEZ NÃO...
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Este economista corrobora com competente fundamentação técnica as opiniões de quantos se insurgiram contra um artigo publicado no A Semana que defendia a adesão plena de Cabo Verde à CEDEAO por ver nisso um grande passo para o futuro.
ResponderEliminarO que me irrita, solenemente, é que continuem a medrar os iluminados que se dão ao luxo de ignorar - quando não denegrir - a palavra dos verdadeiros especialistas nas matérias...Culto da personalidade?
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