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terça-feira, 1 de abril de 2014

[6749] - OS NEVEIROS DA SERRA DA LOUSÃ...

 
A História de um país não se faz só com conquistas, descobrimentos e grandes feitos militares, mas também com a coragem e espírito de sacrifício de todo um povo na luta do dia-a-dia, pela sobrevivência, em condições de extrema dureza.

Os Neveiros da Serra da Lousã são um exemplo dessa coragem e abnegação. Hoje, basta abrir a porta do frigorífico, para termos à nossa disposição, bebidas frescas a qualquer hora e em qualquer estação do ano. Mas nem sempre foi assim... antes da descoberta desse importante electrodoméstico para que alguns pudessem usufruir de uma bebida fresca no verão ou um gelado nas grandes cidades, como Lisboa, havia todo um imenso trabalho realizado pelos neveiros que faziam a recolha da neve no inverno e a armazenavam em poços para impedir que derretesse até ao verão.

Na Serra da Lousã, em Coentral – Castanheira de Pêra, no sítio denominado Cabeço do Pereiro existiu uma grande Fábrica de Neve, composta por sete poços onde era armazenada a neve recolhida na serra a cerca de 1200 metros de altitude. Desses sete poços restam, intactos, apenas três.
Fronteiros a esta capela estão os três poços que ainda restam. Eles exibem ainda o tosco das suas construções. Dois deles são octogonais e o terceiro é circular. Mas, no seu interior, são todos bem redondos.

Estão cobertos por abóbadas de pedra em forma de sino achatado e todo o conjunto foi edificado com a pedra negra da região.

Cada poço tem uma só porta, estreita, virada para Nascente, como que para evitar que, quando o sol é mais forte, possa entrar pela estreita porta e derreter a neve ali guardada.
Imagine-se a azáfama que por aqui se desenvolvia desde o Inverno até ao tempo quente...

Utilizando escadas de mão, feitas em tosca madeira, os homens desciam ao fundo destes poços — que então tinham uma profundidade superior a uma dezena de metros — e, à medida que neles iam sendo despejadas as cestas com neve, iam calcando esta com pesados maços de madeira que empunhavam vigorosamente, à maneira dos calceteiros de hoje.

Empedernida, isolada entre os paredões alisados pelo estuque, coberta depois com palha e fetos, a neve conservava-se nesses amplos reservatórios até ao Verão — sem que uma réstia de sol lhe pudesse chegar. À jorna, eram contratadas mulheres e rapazio do Coentral e de outras aldeias vizinhas.

Entretanto, para reforço da produção, as enxadas iam rasgando as Alagoas que eram, afinal, uns largos tabuleiros artificiais onde a água das chuvas ficava empoçada para depois vir a transformar-se em gelo.

Ainda hoje se podem localizar algumas dessas Alagoas por entre lousas quebradiças e urzes rasteiras. Mas a maior parte delas desapareceu quando, em 1971, foi ali construída uma pista de aviões para se acudir aos incêndios da floresta.
Quando chegava o tempo quente, a neve era cortada e seguia em grandes blocos, para Lisboa.

O transporte era feito, numa primeira etapa, em ronceiros carros de bois. Apenas três ou quatro desses grandes blocos podiam ser carregados nessas robustas carroças e eram cuidadosamente envolvidos em palha, em fetos, mesmo em serapilheiras ou, ainda, metidos em caixotes.

Mas, mesmo assim, diz o testemunho oral que muita neve se perdia pelo caminho percorrido através dos tortuosos carreiros da serra, quase penosamente.

Em Miranda do Corvo fazia-se a primeira muda dos animais e depois os carros partiam para Constância onde, da via terrestre, se passava para a via fluvial.

Este transporte da neve era assistido por protecções legais, como as que obrigavam os povos dos múltiplos lugarejos encontrados pelo caminho a repararem ou substituírem, com rapidez, as carroças danificados. E, do mesmo modo, eram facilitadas as passagens da neve pelas portagens ao tempo existentes.

Para isso, atestam os documentos que el-rei mandava "passar ordens a todas as autoridades civis e militares para facultarem ao arrematante, para a condução do gelo, carros, pessoal e barcos, bem como mantimentos, tudo pelos preços comuns ou correntes que fossem justos
(...) e todos, nesse particular, deviam prestar coadjuvação ao arrematante; podendo qualquer oficial de Justiça ou autoridade militar, mesmo fora do distrito da sua jurisdição, embargar quaisquer transportes que se tornassem indispensáveis para a referida condução da neve".

Por volta de 1782, a neve era vendida, em Lisboa, no botequim onde hoje se situa o café "Martinho da Arcada".

Este foi sucessivamente conhecido por Casa da Neve, Casa do Café Italiana, Café do Comércio e Café Martinho, sendo esta última designação proveniente do facto de ter sido seu proprietário um tal Martinho Rodrigues, que, em 1810, foi contratador da Neve do Coentral.
Esta casa tinha então um depósito de neve na Travessa da Parreirinha (próximo do Teatro de S. Carlos).
Aliás, há notícia da existência em Lisboa, de outros poços destinados a armazenar a neve. Houve poços no bairro da Graça e até a torre Norte do Castelo de S. Jorge, do lado da Calçada de Santo André, sofreu obras para ser transformada em depósito de neve.

Entretanto, segundo o jornal "A Gazeta de Lisboa" que se publicava no século XVIII, também se vendia neve, em 1792, no botequim da Casa Da Opera da Rua dos Condes e, em 1793, na loja de José Rodrigues Ferreira, no Largo do Rato.

Já no século XIX, há várias alusões às lojas que vendiam neve, sorvetes e demais doces gelados... Em S. Roque, vendeu neve o Botequim Do Tavares... no Rossio, eram servidos gelados na loja de bebidas da Madre de Deus... E outros cafés e botequins, como o Marrara, o Minerva Das Sete Portas, o Toscano, o Nicola e o Grego venderam neve — uns desde o 1.º de Maio, outros desde o dia do Corpo de Deus, como se pode ver pelos anúncios que já publicavam na Imprensa.

Afinal, todo este consumo da neve desde o das ucharias reais até ao dos cafés e botequins de Lisboa ajudava ao sustento da pobre gente do Coentral que tal como acontecia com o neveiro Julião Pereira de Castro, se tornou devota de Santo António.

Rezava-se para que nevasse, pois a recolha da neve, no Cabeço do Pereiro, se tornara um complemento valioso do ganha-pão dos povos serranos do Coentral.

Colaboração de Adriano Lima
 


 


3 comentários:

  1. Naquele tempo o gelo teria o valor de ouro.

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  2. Não é bem "Marrara", é mais "Marrare"..., do famoso "António Marrare", estrangeiro de Nápoles ou da Galiza, com três cafés em Lisboa, no Chiado, no Cais do Sodré e na Rua dos Sapateiros. Ficou para a história do famoso chef o seu bife... "à Marrare"... feito a partir de bicho de cornos que antes marrava e sempre "marrara"...

    Braça com Múúúúúúú´, múúúúúúú,
    Djack

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  3. Bom dia Zito amigo!
    (que hoje por aqui está sol...)

    Gostei muito deste post sobre os Neveiros. Eu já conhecia (privilégio de quem já somou muitas primaveras) mas gostei de rever tudo. E penso que haverá muita gente (nova) que desconhece.
    Obrigada por não deixar cair no esquecimento bocadinhos do nosso Património.
    Abraço, e bom dia para o Zito, e para a sua
    Espôsa. (As mulheres ficarem esquecidas, não me agrada...)
    Dilita

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