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domingo, 6 de abril de 2014

[6767] - E V O C A Ç Ã O...

PRAÇA ESTRELA
Há muitos, muitos anos!
 
Uma estrela deu-lhe o nome, e, quem sabe, o signo de libertar os sonhos, as quimeras e até os desvarios tempestuosos da gente anónima. Não é bela mas tem a sedução da maresia, seu dilecto perfume que a brisa esparge sobre as acácias da sua vaidade.
 Cheguei à hora da luz poente, quando o reboliço da cidade aos poucos se ia esmorecendo, depois de desfilarem os Sokols, perfumando a cidade com a pompa dos seus ideais. Mas no ar sinto ainda a sonoridade dos clarins que espalharam vibrações de alma no deserto de fortuna onde fica sempre plantada uma flor. Os meninos da vizinhança já tinham também guardado as bolas de trapo dos seus jogos disputados em campos marginados de sonhos e irreverências.
 A noite cai agora de mansinho e nela mergulha a minha alma cativa, pronta a seguir os seus passos e a soletrar seus segredos. A partir de agora, a roda do tempo gira como quer e sou escravo do seu feitiço. O reboliço da cidade é um eco remoto que doravante só se ouve no interior dos búzios inertes e sem dono espalhados na ourela do mar. Manda, enfim, o coração da noite, que fecha todas as janelas do tempo para ser una e ciosa dos seus pergaminhos.
 Ah, chegam-me sons de rabeca que sulcam o ar como gemidos, que o vento sacode em perdulária diversão, como que despeitado pelo virtuosismo alheio. Janelas iluminadas engalanam além um baile do Amarante, para onde caminham raparigas de língua de prata e saia plissada agitando-se ao sabor do vento.
 Mulheres sem rosto parecem libélulas à luz oblíqua de esquinas envergonhadas. Perderam as asas de um sonho lindo, mas resta-lhes o feitiço da luz que se esconde no casulo das suas privadas virtudes, onde desfiam o rosário de segredos incontáveis.   
 Cruzo com um bêbado irrequieto em dialogo barulhento com sua sombra, talvez em vão esforço para abjurar uma solidão, pouca atenção merecendo de dois namorados colados à penumbra de um banco de jardim, sob o olhar cúmplice da lua feiticeira, testemunha solitária das suas almas apaixonadas.
 Marinheiros de todas as fainas esperam pelas marés em botequins forrados de recolhimento, e o grogue e o peixe frito estimulam seu fôlego. À luz mortiça, suas vozes se diluem em burburinho, mas seus pensamentos vogam na crista das ondas em demanda de um porto feliz na terralonge.
 Trabalhadores de carvão, irmanados com a madrugada, passam em movimento furtivo como se fossem fantasmas, arvorando o estandarte negro de um grito recalcado. Em suas marmitas é avaro o alimento que levam para o dia, mas nelas sobra o alento para trespassar todas as madrugadas.
 Aaah! O galo acabou de cantar. As pontas de cigarro começam a empalidecer e já não são minúsculos faróis de rotas vadias. Os gongons da minha meninice esfumam-se e vão com a brisa do mar, deixando-me o hálito da sua lembrança. A sirene dum vapor quebrou bruscamente o meu pasmo e a aurora exorcizou o sortilégio da Praça. As sombras desvanecem-se e os seres começam a recuperar o contorno diurno, os movimentos perderam a flutuação vaporosa e retomam agora os ritmos adormecidos no interior dos búzios. Rumores da Baía, da Praia de Bote, da rua da Canecadinha e do Pelourinho repercutem-se agora no coração quente da Praça e engrossam a corrente viva do quotidiano.
 Despeço-me porque fui hóspede solitário só para uma noite. A Praça Estrela acordou lúcida e conformada com a sua perene realidade. É seu destino ser palco das comédias e paixões do povo, nem que seja pelo breve instante de um sonho. Parto rendido à sua magia, a alma saciada guardando a intimidade da noite voluptuosa.
 
Adriano Miranda Lima
Tomar, 2001,,,
 
 

 

2 comentários:


  1. Praça Estrela, Praça Estrela !!!
    Ah se me fosse possível trazer aqui estórias! Ê que as há contàvis e incontáveis. O melhor, para se poder vibrar, seria numa tertulia especial, com gente conhecedora ou que aprecia os contos e a riolas da Salina para baixo. Pois, como sabem, antes de ser Praça Estrela foi Salina, um grande largo com o campo de cricket no meio, o que não impedia de ser também campo para outros jogos. E as sedes dos clubes de então bem pertinhos. Das do Castilho, o Derby e do Mindelense se podia ver e ouvir.
    Sim, ouvir. E de uma delas, famosa, o Damatinha foi o protagonista. - Contam que o Mindelense jogava com o Castilho em cuja sede havia um baile (o Mindelense não era para isso). Uma vez mais os vermelhos ganharam a partida e o nosso Damata, postou-se no largo para chamar a filha no baile: - Isaaauuura!! Que recusava aparecer à janela. Instada com os "Cdi bô pai", continuava a ignorar, dizendo: "m' sabê cma ele ti ta bà fazê um cosa". Momentos depois o mais ferrenho adepto dos vermelhos acabou por dizer: - Bocês dzê-l cma li bocês ca ta metê".
    Isso não é anedota mas uma das muitas.
    Nunca mais vamos esquecer a Salina virada Praça e agora mercado de muita coisa.



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  2. Lindo.

    A propósito da Praça de Estrela: - Que aconteceu ao malogrado prédio da sede do Mindelense?

    Terá dado lugar a mais um "azulado" arranha céus Nova- Iorquino?

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