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quarta-feira, 23 de julho de 2014

[7214] - CABO VERDE - RECORDANDO GENTE GRANDE...


Manuel António Sousa Lopes
 Manuel Lopes -- (1907 – 2005)

 Nasceu no Mindelo /S. Vicente
…” Fez estudos Liceais em Coimbra, regressando a S. Vicente para trabalhar numa empresa britânica de telecomunicações. Viveu no Faial onze anos, sendo transferido para Carcavelos em 1955. Desde então radicou-se em Portugal, regressando por duas vezes ao arquipélago. É um dos escritores mais conhecidos de Cabo Verde; utiliza nas suas obras expressões em crioulo, embora escreva seus textos em português.
A sua obra estende-se pela poesia, ensaio, romance e conto, dedicando-se também à pintura” (Diário Noticias)
...” Juntamente com o seu conterrâneo cabo-verdiano Baltazar Lopes da Silva, autor do aclamado romance Chiquinho, Manuela Lopes foi um dos fundadores da revista Claridade, em 1936. Revista de inspiração insular, mas também veículo de automatização cultural e singular afirmação literária, foi um marco essencial da literatura cabo-verdiana da primeira metade do século XX.
Manuel Lopes celebrizou-se, ainda, pela publicação da “novela” Chuva Braba (de acordo com a designação que ele próprio incluiu no volume) e pelos dois livros que se lhe seguiram – O Galo que Cantou na Baía (1959, contos) e Os Flagelados do Vento Leste (1960, romance), este último adaptado para cinema em 1988.
Uma certa semelhança com o discurso neo-realista, nomeadamente o de Manuel da Fonseca (1911 – 1993) sobre as paisagens do Alentejo, evolui para a descrição bem distinta e autónoma das paisagens e das gentes cabo-verdianas, no primeiro capítulo (II parte) de Chuva Braba, do qual se transcreve um breve excerto:
…” Porto Novo não tem montanhas. Ali há vento à solta, mar raso por aí fora franjado de carneirada. Há distância: um azul que navega e náufraga num mundo sem limite. Lá adiante fica S. Vicente, cinzento, depois é só horizonte. O mar, quando cai a calma sobre o canal, desliza ora para o sul ora para o norte, consoante a direcção da corrente, como as águas dum rio que ora descessem para a foz ora remontassem da foz para a nascente.
As árvores são torcidas e tenazes, têm a riqueza dramática das desgraças hereditárias ou das indomáveis perseveranças. Cheira a marisco que vem das praias de seixos rolados e areia negra. Cheira a poeira das ruas onde há bosta de mistura. Cheira a melaço e aguardente, a fazenda e a coiro dos armazéns. Cheira a maresia no vento que sopra sobre os telhados. Mas há água canalizada da Ribeira da Mesa, um chafariz público onde as alimárias bebem, uma horta exuberante no Peixinho e um jardim emaranhado e virgem à beira mar.
Porto Novo é vila de futuro, dizem. Uma estrada paralela à praia corta-a ao meio; é a rua principal. No portinho aberto de mar picado balançam, quase sempre, um ou dois faluchos vindos de S. Vicente. O comércio progride. As lojas são providas de toda a sorte de bugigangas. Têm fazendas medidas a jardas, lenços de cores berrantes, mercearia, quinquilharias, têm espelhinhos, joias artificiais, barros de Boa Vista para todos os usos, alfaias, panelas, caldeirões de ferro de três pés, têm tudo. A clientela é vasta, quase a terça parte da população dos campos da ilha cai ali. Trazem produtos agrícolas, trocam ou vendem, invadem as lojas. Deixam os nomes nos livros de conta – corrente; pagam prestações. Há empréstimos, dívidas, hipotecas, juros astronómicos. Fornecedores de frescos à navegação do Porto Grande, vendedores e vendedeiras do mercado de S. Vicente vão ali adquirir frutas, galinhas, ovos, hortaliças, por baixo preço. Contrabandistas de aguardente pululam. Até a hora da debandada das tropas de burricos, dos homens e mulheres de campo, ao meio – dia ou uma hora da tarde, a estrada enche-se de movimento e gritos num vaivém de feira ambulante, canastras, frutas, lenha, gado. Os faluchos zarpam ajoujados.
S. Vicente devora tudo, pede mais. Uma vela branca e oblíqua cruza com outra no meio do canal. À tarde Porto Novo é uma vila morta.”
In: Coleções Imbondeiro

Pesquisa A.Mendes



4 comentários:

  1. Bem representado na estante cabo-verdiana aqui de casa...

    Braça literária,
    Djack

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  2. É um dos nossos escritores mais credenciados, e um dos fundadores da literatura moderna cabo-verdiana. Não sei se já li tudo o que ele publicou, mas conheço a maior parte da sua obra. Também foi poeta, e dos melhores:

    POEMA DE QUEM FICOU
    Eu não te quero mal
    por esse orgulho que tu trazes;
    por esse teu ar de triunfo iluminado
    com que voltas…

    … O mundo não é maior
    que a pupila dos teus olhos:
    tem a grandeza
    da tua inquietação e das tuas revoltas.

    … Que teu irmão que ficou
    sonhou coisas maiores ainda,
    mais belas que aquelas que conheceste…
    Crispou as mãos à beira do mar
    e teve saudades estranhas, de terras estranhas,
    com bosques, com rios, com outras montanhas
    – bosques de névoa, rios de prata, montanhas de oiro–

    que nunca viram teus olhos
    no mundo que percorreste…
    Manuel Lopes

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Manuel Lopes é na minha opinião e ao lado de Baltazar Lopes da Silva, um dos mais "acabados" (aqui sinónimo de "completo") intelectuais do movimento "Claridade". Contista, romancista, poeta, crítico literário e grande estudioso da fenomenologia cultural cabo-verdiana. As suas obras continuam a surpreender e a deliciar quem delas se abeiram para teses e ensaios vários. É sempre bem-vindo este tipo de evocação!

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