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quarta-feira, 17 de setembro de 2014

[7421] - ERA UMA VEZ, ANGOLA...(44)



Afinal, o cardápio do jantar esteve longe dos meus sonhos...Comemos "bagre" frito com o simpático arroz de berbigão de lata , uma salada de beterraba avinagrada e uma canja...de miúdos, o que significava que iríamos ter frango de caril ao almoço do dia seguinte...Para comemorar o meu regresso, o Mário abriu uma garrafa de Casal Garcia, geladinha...Ao tempo, era uma bela "pomada", como era costume dizer-se...
À conversa de hora-e-meia, seguiu-se  debandada para a cama. O corpo estava moído e a mente toldada por dois copos de vinho e outras tantas doses, generosas, de "Black & White" com o café...
Às oito da manhã, depois dos efusivos cumprimentos da malta da Administração, incluindo o Administrador e o Secretário, apanhei o primeiro "soco no estômago" do dia: passados os 23 dias de licença por doença que me eram concedidos, devia apresentar-me, com armas e bagagens, no Posto Administrativo de Cangandala, do Distrito de Malange...Era o fim da picada e a pior notícia que podia receber, quando ainda estavam bem vivas as saudades acumuladas pela prolongada ausência.
Mas, estas coisas eram assim mesmo...Aliás, esta mobilidade dos funcionários administrativos tinha como finalidade evitar o estabelecimento de relações de alguma promiscuidade entre a administração e o capital, nomeadamente, nas zonas de mão de obra intensiva, como as do café, do algodão, da cana do açúcar, etc...No Alto Zambeze, no entanto, a produção de volumes apreciáveis de amendoim e arroz, não corria esses riscos pois era a própria Administração que distribuía as semente aos produtores autóctones que, depois da colheita devolviam essa quantidade mais 10% e vendiam o remanescente aos comerciantes locais. Estes, por sua vez, tratavam de remeter o produto aos Grémios respectivos, em Benguela. Não havia as grandes explorações cujas necessidades de mão-de-obra sazonal levassem à criação de situações de beneficiacões ilegais , em consequência das quais enriqueceram muitos Chefes-de-Posto, Administradores e, até, Intendentes e Governadores de Distrito...Conheci alguns mas, isso, são contas de outro rosário...
Ali estava eu, portanto, de Guia-de-Marcha para Malange onde, por acaso, era Governador o insigne cabo-verdiano Dr. Luis Terry, para ajudar o Chefe do Posto na tarefa hercúlea de fazer um recenseamento indígena, praticamente, de raiz!

Continua...

11 comentários:

  1. No post anterior sobre África falou-se de bife de nunce e lembrei-me de que a carne desta espécie era tida como a mais tenra e saborosa, e a mais adequada para rosbife. Mas por onde andei não era uma espécie tão numerosa como a palanca ou a gazela.
    Apesar dos transtornos ocasionados com a transferência, julgo que a região de Malange oferecia as vantagens de um espaço geográfico bem mais desenvolvido e mais próspero que a do Cazombo, pese embora tratar-se da colocação num posto administrativo (Cangandala), que não tem a dimensão nem o conforto de uma sede de circunscrição administrativa, como era o caso de Cazombo. E além disso penso que foi uma promoção.

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    1. Amigo, a carne do Nunce é - pelo menos era - uma dádiva divina...Nunca comi nada semelhante! No Alto Zambeze era, na altura, proibido caçar Palancas, nomeadamente, as negras, que estavam em vias de extinção...
      Quanto ao resto se verá, em futuras crónicas, nesta recta final da minha aventura angolana...

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  2. O insigne Dr. Luiz Terry, casado com uma cabo-verdiana (Aurinha, da Familia Morazzo) era um "cabo-verdiano" de Goa.
    Como Reitor do Liceu Presidente da Câmara, Presidente da Federação de Futebol, etc., muito fez para a nossa terra.
    Quer queiramos quer não deixou marcas indeléveis.

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    1. É verdade, meu caro, o Dr, Terry era um cabo-verdiano de Goa e até tinha um nome extenso, como é comum nos oriundos daquela ex-colónia de Portugal - Jorge Diogo Luis Terry de Souza Pinto...Obrigado pela precisão!

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  3. Voltou " Era Uma Vez Angola" !
    Desejo sinceramente que estes posts sejam publicados com mais assiduidade, para que nós, consumidores dos mesmos, não nos venhamos a convencer que a "saga" caiu no esquecimento... Claro que mais tarde ou mais cedo a coisa terá o seu fim, mas acredito que o autor tem arte e engenho para, com a sua admirável e fluente prosa, a prolongue o mais possível ! Será um prazer.
    Um abraço, Brotas

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  4. CRÓNICA linda de quando Angola era portuguesa, claro colónia para os puristas

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  5. Concordo inteiramente com o comentador Brotas. Estas crónicas têm a dupla virtude de nos transportar para a “África nossa” e de nos deliciar com uma prosa bela, escorreita e suculenta, donde se poderá dizer que assim fazemos uma viagem de grátis e com os sentidos repletos das mais gratas emoções.
    Já agora, esse peixe a que o Zito chama “bagre” suscitou-me dúvidas e fui à net verificar. Concluí que é o mesmo peixe de água doce que os nativos capturavam com os seus processos artesanais e que costumavam secar para o conservar. Comi-o também, agora me lembro bem.

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  6. Obrigado, Brotas, José e Adriano, pelas reconfortantes palavras...
    É verdade, Adriano, o Bagre era - e continuará, decerto, a se-lo - um peixe de rio (Zambeze), suculento e sem sabor a lodo que é característico de uma grande parte dos peixes fluviais, se calhar por o rio ser de grande caudal... É sujeito a inundar as anharas adjacentes, dando vida aos ovos hibernados de milhões de Tuqeias e Missoges que se pescam...com balaios!

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  7. Zito, Tuqueias e Missoges são nomes de que não me lembro. Mas recordo-me de ver pescadores nativos com balaios à pesca nas margens. O mesmo presenciei nos rios Lugenda e Rovuma de Moçambique.
    Ai, que saudades de África, apesar das minas e das emboscadas que de vez em quando apoquentavam quem por lá, como eu, andou de "canhota" às costas, quando, no fundo, o desejo secreto era estar em paz plena e total com todos os seres que habitavam aquelas fantásticas paragens.

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  8. Adriano, em sua honra vou um dia destes fazer um post sobre Tuqueias e Missoges, dois autenticos milagres da Mãe Natureza...

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  9. Cá ficamos à espera. Quanto ao bagre, só conseguíamos disfarçar o gosto a lodo com um molho de escabeche.

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