Páginas

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

[7585] - TERRA STIMADA...

Rosário da Luz
A minha geração cresceu numa época profundamente romântica para o país e foi alimentada pelas narrativas mais poéticas da sua história. Aprendemos que a pátria era flagelada pelo Vento Leste; que mesmo assim, o seu povo – trabalhador, corajoso e solidário – amava-a acima de tudo.  Aprendemos que quem partia, morria de saudade; que não se vivia enquanto se estava em terra longe, a não ser na esperança de voltar. Aprendemos que o Cabo-verdiano era humilde, que a sua pobreza era envergonhada, que amdjer d’nos terra era sacrificada e que o saber era venerado.
Foi-nos ensinado que o valoroso povo.cv asfixiava sob o jugo estrangeiro; precisava de progresso e teve garra para responder. Mininus mansustomaram consciência e substituíram a negra bandeira da fome pela bandeira da luta; e, contra todos os obstáculos,  os melhores de entre o povo – os seus heróis – elevaram a terra dos nossos avós ao sagrado estatuto de nação independente. Nessa altura, a Independência reluzia como uma amante recente, cuja absoluta sedução ainda não tinha sido sequer aflorada pela realidade. Sob a sua luz, a paz e o progresso da pátria amada eram mais do que certos.
Na ética Confuciana, o conceito de piedade filial – xiáo – constitui um elemento basilar da responsabilidade moral e social. Estados autoritários em todos os estágios de desenvolvimento – China antiga, Japão Imperial, Alemanha Nazi, União Soviética, China Maoísta e tantos na África pós-colonial – utilizaram o culto familiar do páter e o arquétipo dos antepassados como ferramenta poderosa na estruturação da lealdade do indivíduo ao Estado e ao Príncipe. O princípio de devoção filial foi transferido do patriarca para o Imperador, Ditador, ou Revolucionário-mor; e as honras devidas aos antepassados tribais passaram para a Pátria personificada.
Pátria – terra do meu páter – é uma palavra que sempre me desagradou pelo seu cunho machista. “Eu não tenho pátria, tenho mátria
e quero frátria!” canta Caetano Veloso em Língua, no álbum Velô. O estado é paiporque é aquele que nos mobiliza com a sua vontade implacável e que nos reduz a meros peões da sua glória; aquele que talvez nos permita participar dessa glória (e das suas benesses) mas sob cuja autoridade nos devemos vergar. Contudo, durante a maior parte da história da humanidade, o território que compartilhamos com quem fala a mesma língua foi concebido no feminino: mátria. A nossa terra é mãeporque é aquela que nos pariu e cujos ciclos nos dão sustento.
Em Cabo Verde, a nossa ribeira é a nossa mátria. A relação que temos com a autoridade da mátria é muito mais soft do que a que mantemos com o poder do Estado; mas não deixamos de ser remetidos para o estatuto de produto, e não o de produtor. Somos tão-somente filhos da mátria-ribeira; encontramos conforto no seu peito acolhedor, mas não ocorre ao rebento tentar transformar a natureza da genitora que o sustenta com o seu solo e os seus hábitos. À exceção da ocorrência de uma singularidade, o indivíduo que tenta modificar de moto próprio a sua mátria normalmente acaba rejeitado por ela.
Quanto á pátria, esta edificou-se em tempo recorde no imaginário.cv, e foi fortemente impulsionada pela retórica da Primeira República. Cabo Verde foi um dos tais estados revolucionários pós-coloniais acima referidos, que adaptou o culto do patriarca e dos antepassados ao culto dos Heróis Nacionais e da Pátria Amada. Tão seduzido quanto coagido, o Cabo-verdiano aprendeu rapidamente a conceber o Estado como austera autoridade patriarcal, ainda mais inatingível que a mátria pelos ímpetos de transformação dos seus filiados.
Motherland ou fatherland, é evidente que a concepção de nos tera estritamente como progenitora apresenta uma problemática mais premente do que o simbolismo de género; uma problemática que está na base do nosso entendimento e exercício da cidadania. Assim como a idealização do progenitor tem um efeito castrador sobre a psique do indivíduo, a conceptualização do Estado exclusivamente enquantoprodutor, e não produto, tem um efeito castrador sobre a qualidade do cidadão.
Cabo Verde saiu da ribeira, e há 25 anos que eliminou a obrigação constitucional de render culto á Pátria Imortal. Agora vivemos em democracia; e para que este sistema funcione, o cidadão tem que assumir a terra também como sua filha. Não estamos aqui para venerá-la, nem como mátria nem como pátria,  quando a nossa obrigação é educá-la; a missão moldadora da nação é inerente á cidadania. Infelizmente, como bem sabe qualquer encarregado de um menor, o processo de educação requer visão, coragem, disciplina e sacrifício por parte do educador.
E foi assim que um belo dia acordamos e realizamos que está tudo ao contrário do Kauberdi que nos ensinaram a idealizar. Naturalmente; não podemos ser cidadãos egoístas e negligentes e esperar que a nação se desenvolva com um carácter exemplar. Os educadores omissos criam o tipo de pátria que vai fazer quarenta anos e ainda depende de esmolas para alimentar os filhos; os pedagogos irresponsáveis produzem pátrias sujas, sub-educadas, violentas e antissociais. O projeto original de Pátria Gloriosa solveu-se num quadro deprimente de Pátria Indigente. A pátria é nossa filha e não a soubemos criar.
E a frátria? Liberté, Egalité, Fraternité – frátria é o papo central da democracia. Já não se trata de produzir um universo onde o indivíduo é submetido arbitrariamente à glória do Estado. Na frátria, o culto do patriarca é substituído pela celebração da igualdade entre irmãos; o que se quer agora é um sistema onde o Estadoserve o indivíduo. Mas, mais uma vez, é ao poder parental que cabe criar um lar onde os irmãos vivem em igualdade; enquanto educador da nação, é ao cidadão que cabe produzir a frátria. Contudo, está bem claro que apesar de toda a conversa abnegada de serviço á nação, nenhuma figura ou organização.cv parece interessada em colocar-se genuinamente ao serviço do seu irmão – nem mesmo quando este serviço é muito bem remunerado.
Para quem – como eu – cresceu e amadureceu num turbilhão romântico de mátria, pátria e frátria, é violento testemunhar o descalabro sequencial de todos estes ideais: da segurança da mátria, da grandeza da pátria e das oportunidades da frátria. É triste realizar que desses três sistemas, o presente guardou apenas o pior: o paroquialismo da mátria, o autoritarismo da pátria e a rivalidade da frátria. A frátria.cv foi quem nos brindou com o atual quadro de desolação: o espetáculo circense das facções locais em concorrência aberta pelos recursos do Estado e pelos agrados das empresas; e a promoção de privilégios privados, individuais e corporativos, com base em apelos á igualdade e democracia, e com o pleno suporte dos despojados.
Tera Stimada, fala a sério. Mas não me é possível deixar de a estimar. Mãe é mãe – ela a minha e eu a dela. E assim como as mães continuam a amar filhos que se transformaram em toxicodependentes, bandidos, ou simplesmente boçais, eu, como tantos dos seus progenitores, continuo a amar profundamente a minha pátria indigente. A nossa dedicação pode não lhe servir de grande coisa; o establishment da sua administração está hermeticamente organizado contra a paz e o progresso. Imagino que, neste momento, a tarefa das boas mães consista em descobrir os métodos passíveis de desmantelar os vícios de comportamento que impedem o florescimento da nossa pupila. Mas entretanto – enquanto o djunta monnão acontece e a Pátria permanece neste Estado – o meu único conforto é carpir o meu descontentamento, tal como qualquer educadora frustrada.
domingo, 07 dezembro 2014 00:00

3 comentários:

  1. Brilhante exercício analítico sobre a encruzilhada em que estamos, e em que nos sentimos confusos e embasbacados, pela incapacidade de atinar com o verdadeiro fio orgânico e sentimental que nos liga à "terra que nos pariu". Vê-se que a autora não está sob qualquer espécie de clausura ou servilismo, e só assim alcança ir corajosa e lucidamente ao fundo das questões cruciais que não conseguimos esclarecer e resolver, protelando-as para um tempo indefinido, como se a abstenção e o conformismo nos livrassem da sentença do destino. Outros mais houvesse como ela, teríamos alguma possibilidade de ao menos enfrentar com destemor e inteligência os ciclos naturais e artificiais que nos aprisionam, impostos pela fatalidade da "mátria" e pelo oportunismo vicioso da "pátria". Sobra, no seu dizer, a "frátria", mas ela desalinhada com os compromissos da irmandade, sem se curar do seu dever, indeclinável, de acarinhar responsavelmente o colo da "mátria" e moldar judiciosamente o instinto dominador da "pátria". Repito, brilhante exercício. Nota máxima.

    ResponderEliminar
  2. Tens razão Adriano. Tiro também o meu chapéu a esta senhora. Julgo que está num país errado, pois, infelizmente, isto parece-me mais com pérolas para porcos: bom demais

    ResponderEliminar
  3. Precisamos de gente como esta jornalista que não esconde e não se importa com ameaças veladas.
    Muitos não sabem que ela tem no seu ADN genes do avô materno que era danado nos anos 40 do século passado.
    Ele e o irmão não poupavam os abusos e, por serem useiros e vezeiros, aposentaram um e mandaram outro à vida.
    Como é frequente dizer aqui, tiro-lhe o meu chapéu alto e baixo.
    Falar da Rosario da Luz não é favor. Ê justiça.

    ResponderEliminar