NOTA PRÉVIA...
Dado o indiscutível interesse deste trabalho, por um lado, e a sua extensão, por outro, a Gerência deste blogue decide suspender pelo prazo de 48 horas a edição de outras postagens, no sentido de dar aos nossos visitantes a oportunidade e o tempo necessários para expressarem os seus comentários.
Esta situação passará a ser regra do "Arrozcatum" sempre que o interesse dos trabalhos a aconselhem...
Boa leitura e bons comentários, são os nossos desejos!
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3- CABO VERDE 40 ANOS APÓS A INDEPENDÊNCIA: DA NORMALIZAÇÃO À RECONCILIAÇÃO NO QUADRO DA LEI DE RECONCILIAÇÃO NACIONAL
In ‘Cabo Verde 40 anos após a Independência; Da Independência à 1ª Via’
No artigo precedente (1, 2), na abordagem à notícia sobre a anunciada “Lei de Reconciliação Nacional” (3), suscitou dúvidas o emprego das palavras “indultar”, “amnistiar” e “reinserir” a que se refere aquela lei, no pressuposto de que poderia apenas tratar-se de uma questão de empregabilidade semântica. E isto porquê? Porque simplesmente aqueles termos se aplicavam a pessoas que entendem que não cometeram qualquer crime ao fazerem uso do direito de opinião e de reunião devolvido aos cidadãos com o 25 de Abril de 1974.
Em todo o caso, essa lei poderá ter o mérito de criar a possibilidade de abertura e revisão de todo do período revolucionário que começou em finais de 1974, assim como outros episódios menos dignificantes da 1ª República, implicando assim a necessidade de reescrever a história.
Por outro lado, a existência desta lei reconhece implicitamente que terão sido cometidos ‘erros’ e eventualmente delitos da parte das então autoridades, o que até agora tinha sido invariavelmente negado ou ignorado pelas diferentes versões da história até hoje contada. Mesmo tardiamente, ela não deixa de constituir uma censura a todos aqueles que, por motivações de ideal revolucionário ou impelidos pelo fulgor dos acontecimentos, conscientemente ou inconscientemente, praticaram ou deram cobertura a actos actualmente condenáveis no quadro nova ordem moral e política. Mas o mais importante é que a Lei pode abrir a possibilidade de um despertar de consciência de muitos cabo-verdianos entorpecidos pela desinformação e pela propaganda sobre um capítulo bastante controverso da história de Cabo Verde, e que engloba todo o processo revolucionário iniciado em 1974. Se a sociedade não estivesse anestesiada, poderia reabrir um debate interessante, descomplexado e maduro, que pudesse envolver, para além dos protagonistas ainda vivos, a sociedade em geral, incluindo jornais e redes sociais. Mas aparentemente estas coisas ainda não conseguem quebrar a placidez em que vivemos.
Como vimos no artigo precedente, o número de pessoas que possam considerar-se injustiçadas e em condições de litigar é potencialmente superior ao dos declarados expropriados, pelo que poderá não ser fácil passar uma esponja a este período, do jeito tomem lá uns tostões e calem-se, pois, como é óbvio, as pessoas que se consideram injustiçadas com as práticas do passado não se contentarão com indemnizações mas sim com uma completa ilibação e as devidas desculpas públicas. Tudo isto revela a enorme dificuldade moral e política em lidar com a questão, agora que está aberta a caixa de Pandora.
Como poderemos antecipar, uma eventual revisão do período revolucionário levará ao confronto duas posições antagónicas: uma baseada na Lei e no Direito formal e outra baseada na legalidade revolucionária, ou seja no direito do povo a uma forma de justiça, ou mesmo de violência, determinada pela lógica revolucionária. Tudo isto veremos mais à frente.
Como vimos precedentemente, o perfil dos protagonistas em confronto nesta saga revolucionária de 1974 pode resumir-se nestes termos:
- De um lado, os que ficaram ou estavam em Cabo Verde, a Tapadinha (esta denominação de S. Vicente quando se refere à terra-mãe na sua desolação). Referindo ao grupo que se opôs ao PAIGC, eram essencialmente homens nascidos nos finais do século XIX até ao início do século XX, que nunca ou quase nunca saíram da sua terra, para além dos estudos e das férias graciosas passadas na Metrópole. Eram em geral pessoas cultas, bem formadas ou que conseguiram singrar na vida, e formavam a elite colonial, administrava e económica do país. Do ponto de vista político, eram na sua maioria conservadoras, muito identificadas com a ideologia reinante, fossilizadas socio-politicamente no sistema colonial-salazarista e fechadas no Grémio elitista, entendido pelo povo como um clube de ‘aristocratas’. Todavia, era a elite influente que contava tanto em Cabo Verde como na ex-Metrópole em tudo o que determinava os destinos de Cabo Verde. Esta elite, segundo a lógica dos seus opositores, ao organizar-se politicamente no pós 25 de Abril na UDC e ao opor-se aos ‘libertadores’ do PAIGC, queria pura e simplesmente preservar os seus privilégios e o seu estatuto através de um regime alegadamente democrático e pluripartidarista, mas que na prática lhes permitiria manter as rédeas do poder e assegurar uma ligação à ex-Metrópole, perpetuando uma situação de neocolonialismo clássico. Se os principais protagonistas da UDC foram “decapitados” pelas vicissitudes da própria revolução, nem todos o seriam, pois, aparentemente, alguns reaparecem em 1977 na alegada intentona contra-revolucionária e outros não abandonaram a causa política, associando-se nos anos oitenta à Oposição na emigração, engrossando as fileiras da UCID. A UDC em tudo se opunha ao PAIGC, apresentando-se como atlantista, ocidentalista e radicalmente contrária à Unidade Guiné-Cabo Verde (4) e à africanização de Cabo Verde. Entendia o país como um caso à parte em África, e mesmo como uma espécie de anexo de Portugal nos trópicos. Defendia uma economia de mercado e um sistema político parlamentar, classificado na época de burguês pelos revolucionários.
- Do outro lado, os recém-chegados líderes do PAIGC, que eram, para a população residente no arquipélago, um punhado de ilustres desconhecidos da maioria da população (compreensível no ambiente falta de informação e de censura em que se vivia), são hoje (1974) aclamados heróis do povo, pela luta política levada a cabo no estrangeiro e pela luta armada nas matas da Guiné Bissau em nome de Cabo Verde, aos quais se juntam os resistentes antifascistas ou militantes nos partidos de esquerda em Portugal, assim como alguns funcionários cabo-verdianos nas ex-colónias portuguesas, alegadamente apoiantes do PAIGC na clandestinidade. É de realçar o papel dos emigrantes cabo-verdianos de Moselle (França) que terão em 1964 engrossado as fileiras da guerrilha na Guiné (5,6,7): Segundo informa o jornal online A Semana“…Era um grupo constituído por 26 originários de Santo Antão, São Vicente e Santiago, que tinha iniciado o seu trabalho nas minas de ferro e na indústria siderúrgica na região de Moselle, nordeste da França. Mas a parte mais expressiva era constituída por camponeses da Ribeira Grande de Santo Antão a mobilização política realizada na região de Moselle, nordeste da França, em 1964, ficou gravada no itinerário da luta pela independência e liberdade da Nação Cabo-verdiana. Por isso, ela simboliza a generosa contribuição das comunidades cabo-verdianas no exterior a esta causa patriótica, depois da mobilização em Bissau em finais de cinquenta, e Dakar, em princípios de sessenta”. Estes bravos que se juntaram ao grupo de Paris terão sido formados na arte da guerrilha e da revolução nas montanhas de Escambray (Cuba) no intento de um dia tentarem uma operação anfíbia e desencadearem uma guerra de guerrilha em solo cabo-verdiano (8). Convenhamos que esta seria uma operação em todos os pontos de vista suicida, dado a fraca ou inexistente implantação do PAIGC em Cabo Verde nesta altura e a inviabilidade de manter uma guerra de guerrilha num arquipélago com as características de Cabo Verde.
Como vimos nos dias de hoje, a lista dos combatentes não pára de crescer, aparecendo, para surpresa de todos, novos que se declaram autores de alegadas acções antes do 25 de Abril em solo cabo-verdiano ou no estrangeiro, contra a presença colonial portuguesa, para além dos que se evidenciaram depois dessa data, durante o período revolucionário cabo-verdiano, ou que adquiriram este estatuto por outros motivos.
Os cabo-verdianos do PAIGC tinham pura e simplesmente rompido na altura certa com o sistema colonial em vigor no arquipélago e no império, quando novos ventos de liberdade sopravam em todo o mundo e em África, onde o sistema colonial europeu claudicava. Os mais instruídos eram em geral pequeno-burgueses nascidos entre os anos 20 e 50 do século XX, estudaram no Liceu Gil Eanes e muitos foram alunos ou discípulos de alguns dos homens que agora afrontavam. Alguns fizeram uma formação universitária em Portugal, conviveram com os círculos de esquerda portugueses e internacionais, assim como os círculos anticoloniais africanos, alinhando com o espírito da época na luta anticolonialista ou de Maio de 1968 (Paris). Eram, pois, jovens cabo-verdianos que contactaram com outras realidades, outros regimes sociopolíticos (socialistas e sociais-democracias), e familiarizaram-se com as mais modernas correntes de pensamento do seu tempo, a saber, o socialismo, o terceiro-mundismo, o pan-africanismo e o anti-neocolonialismo. Podiam ser, portanto, considerados, para o contexto da época, progressistas, revolucionários e de esquerda, sem terem todavia experienciado os valores da democracia parlamentar, social-democrata ou democrata-cristã. O PAIGC, como todos sabemos, defendia a Unidade Guiné-Cabo Verde, a africanização de Cabo Verde, a aproximação ao países africanos e/ou Não Alinhados de tendência progressista, assim como aos países do Bloco Socialista, que concederam uma ajuda determinante durante a sua luta armada. Segundo este partido o arquipélago era um caso tipicamente africano, ou mesmo uma espécie de anexo da Guiné-Bissau, país irmão no qual se desenrolava o essencial da luta de libertação de Cabo Verde. Defendia para depois da independência um regime centralizado, baseado uma economia planificada do estilo ‘socialista’ e um sistema político de partido único, sendo o Partido, o único e legítimo representante do povo, o porta-voz das suas aspirações.
É, pois, em torno destes personagens em oposição ideológica que se desenrola a saga do pós-25 de Abril, da descolonização e da Independência, deflagrando o confronto político em Cabo Verde, pelo menos na primeira e curta fase do processo revolucionário, uma vez que os potenciais opositores ao regime que estava a ser instituído foram prontamente postos fora de jogo ou expulsos do país manu militari em finais de 1974.
É claro que não me propus descrever na sua globalidade todos os protagonistas dos dois campos em toda a diversidade ideológica, moral e política que a complexidade da situação proporcionou, mas sim as características mais marcantes dos dois campos. Sobretudo, não pretendo neste artigo fazer um julgamento moral dos mesmos. Em ambos campos, havia boa gente, bem formada e bem-intencionada, mas que simplesmente se posicionava em posições diametralmente opostas e que nunca se dialogaram.
Se a análise desta problemática utilizar hoje o crivo sociológico adequado a uma realidade livre e plural, desde logo ter-se-á de concluir que a sociedade cabo-verdiana contemporânea está dividida em várias correntes políticas, ideológicas, morais e jurídicas, a saber:
- Uma corrente, subitamente tornada maioritária por injunção de impulsos ideológicos em ambiente político privilegiado, que se revê nos ideais de Amílcar Cabral e do PAIGC/CV ou da esquerda revolucionária, e que analisa a problemática de um ponto de vista estritamente revolucionário e no viés do processo de descolonização. Ela defende que uma acção revolucionária em nome da justiça e do povo acarreta forçosamente excessos que não podem ser julgados a posteriori;
-Uma outra corrente que incorpora uma fracção não menos representativa da opinião pública e que analisa a problemática estritamente de um ponto de vista de novos valores modernos, democráticos e jurídicos, trazidos pelo 25 de Abril e pela posterior instauração da democracia em 1992, demolindo assim os pressupostos da outra;
- Entre estas duas correntes fundamentais e representativas de campos ideológicos em confronto, jaz o largo sector dos indecisos, constituído de gente pouco esclarecida ou timorata, simples espectadores dos acontecimentos mas que são os que determinam as maiorias sociológicas. Incluem-se também os vira-casacas e a legião de oportunistas mais papistas que o papa que caracterizam os períodos pós-revolucionários.
Assim, na lógica dos primeiros, os que defendem a legitimidade revolucionária (apoiada então pela força militar colonial ainda estacionada na colónia, que antes combatia o campo dos vencedores mas que agora protegia o dos vencidos, e que até ao último momento poderia determinar o lado para o qual penderia a balança), Indultar e Indemnizar aqueles que foram justamente punidos de 1974-1981 pela nova ordem popular revolucionária, é um contrassenso político, uma traição aos ideais revolucionários dessa época e uma injustiça a todos os que lutaram por um Cabo Verde livre, justo e sem exploração do homem pelo homem, e que inclusivamente pegaram em armas. Os eventos ocorridos nesta época e os subsequentes aconteceram no quadro de um processo revolucionário, tomado no seu sentido mais lato, este era o espírito predominante entre os seus protagonistas. Não sendo possível fazer omeletes sem partir ovos, os eventuais actos delituosos cometidos nesse período não foram senão uma consequência natural do mesmo processo, para além de serem um ajuste de contas com o colonialismo e os seus lacaios, em suma, com um passado de 5 séculos de exploração colonial. Para os revolucionários, o Grémio era um refúgio dos representantes do regime deposto e a tomada da Rádio Barlavento, sua propriedade, foi um acto que se reveste de um marcante simbolismo na história de Cabo Verde: representa o fim do colonialismo e o início da revolução cabo-verdiana. ‘Après tout’, esses cabo-verdianos constituíam a autêntica elite colonial ‘aristocrática’ (já que não havia assim tantos colonos portugueses), soberba, fechada sobre si mesma, discriminadora, ou mesmo racista-social, que desprezava o povo e estava alheia à sua condição. Para além disso, arrostavam o pecado capital de serem representantes ou apoiantes do odioso regime de Salazar, os zelosos serviçais do colonialismo português em Cabo Verde, e que, inclusivamente, apoiaram incondicionalmente a guerra colonial em África, onde o PAIGC se batia gloriosamente. Portanto, o que restava do sistema colonial em Cabo Verde devia ser desmantelado e os seus principais actores não podiam jogar nenhum papel no novo país ou mesmo corridos do país. De resto muitos foram parar a Caxias. Para os revolucionários não podia haver outra justiça senão esta baseada na moral revolucionária.
De resto, numa interpelação irrecusavelmente pertinente, impregnada de materialismo histórico, os protagonistas da corrente revolucionária perguntarão mesmo se essa elite não foi vítima do seu próprio imobilismo e acomodação acrítica e oportunista a um sistema colonial caduco e sem intenção de se regenerar, ela incapaz de amadurecer e ser a voz representativa e reivindicativa da comunidade em que se inseria. Mas convenhamos que nem toda a elite cabo-verdiana estava no refúgio de ‘aristocratas’ que era o Grémio, nem tão pouco partilhava o conjunto dos seus valores. A elite cabo-verdiana era, na realidade, complexa, multifacetada e estava estratificada socialmente, culturalmente, embora fracamente preparada ideologicamente, visto depender totalmente da Metrópole.
Embora não se questione que por essa altura a elite social local já não dava sinais da mesma vitalidade cívica e interventiva de outrora, mais preocupada com as rotinas do seu estatuto de casta do que com o activismo que lhe competia em proveito da comunidade, reconheça-se, todavia, que sem esse sector social Cabo Verde teria sido no passado uma colónia banal, no imobilismo clássico da administração colonial, como o era por exemplo o caso da Guiné, que, sem elites locais, tinha de recorrer a quadros cabo-verdianos excedentários para a sua administração. O que na verdade distinguiu Cabo Verde do resto dos territórios africanos sob administração portuguesa, foi precisamente a sua capacidade de gerar pessoal qualificado nos mais diferentes sectores de actividade, não obstante a sua pequenez e as suas parcas condições naturais. Dir-se-á que numa relação desproporcional com o seu território, Cabo Verde produziu homens da ciência como o célebre químico Roberto Duarte Silva (10) e o engenheiro Humberto Duarte Fonseca (11), um militar de alta patente Viriato Gomes da Fonseca (12) (o General de Coculi), zeladores do bem comum como o senador Vera Cruz, o deputado Adriano Duarte Silva e os cidadãos Júlio Oliveira e Leça Ribeiro de Almeida, figuras da cultura como Eugénio Tavares, José Lopes, Baltasar Lopes, Aurélio Gonçalves, Jorge Barbosa e Teixeira de Sousa, o distinto professor e Reitor do Liceu Gil Eanes Antero Barros, e da arte musical como B. Leza, Bana e Cesária. Isto só para citar nomes sonantes e alguns de notoriedade internacional, pois o que se pretende relevar é a circunstância extraordinária de um território pequeno e desprovido de recursos ter sempre gerado ao longo da sua história gente qualificada mais do que suficiente para assegurar a sua própria administração e orientar as suas pulsões cívicas, sem o que talvez ele tivesse sido votado a um maior abandono pela potência administrante.
Esta é uma verdade que não poderia ter sido ignorada no momento da exaltação revolucionária, uma verdade que deveria ter obrigado a um mais rigoroso critério na hora do julgamento, com o cuidado de separar o trigo do joio. Mais prudente tivesse sido a atitude do novo poder político, talvez a ilha de S. Vicente não se visse subitamente privada de parte importante da sua massa crítica, ela que foi sem dúvida a principal, se não a única, vítima da fuga maciça de importantes quadros do território. E talvez este pecado original é a mãe de todos os problemas que assombram hoje Cabo Verde, e em particular a ilha de S. Vicente.
Seguindo, pois, o pensamento da corrente revolucionária, foi a própria caducidade do sistema colonial que ditou a sentença de morte da elite colonial cabo-verdiana, afogada na sua própria ‘água’. Deste ponto de vista, tudo o que lhes aconteceu foi merecido, e mais: o regime de partido único instaurado em 1975 pelo povo e para o povo, era uma resposta, uma retaliação natural ao “Mal” que se vivia em Cabo Verde, para além de ser uma vacina contra um eventual retorno encapotado da elite de “má memória” ao poder através de eleições livres. Para além disso, a revolução se propunha, do alto da sua presunção ideológica, salvar a alma dessa elite através de uma longa reeducação revolucionária que incluiria o seu Suicídio de Classe, a criação do Homem Novo e a Reafricanização do seu espírito, conforme o pensamento de Amílcar Cabral. Assim sendo, exações, atropelos à ainda lei colonial vigente em 1974, dirigidos contra a elite e a burguesia colonial, não podem ser julgados hoje como delitos, são consequências naturais de um processo revolucionário de descolonização, e nesta conformidade devem ser vistas à luz da legalidade revolucionária e, portanto, perfeitamente justificadas e até bondosas!
No entanto, na óptica dos direitos elementares da pessoa humana, a verdade é que muitos cabo-verdianos se viram privados dos seus direitos de propriedade e muitos deles presos, vilipendiados e feridos na sua dignidade moral, por mor de um processo de descolonização feito à pressa e promovido por via revolucionária na onda dos acontecimentos propiciados pela súbita queda do regime político anterior. Só que o ímpeto revolucionário acabou por ser daninho nos seus efeitos, pouco precavido no julgamento das intenções e das culpabilidades.
No sopeso dos factos históricos e na análise da sua relação com as teorias sociais e políticas, diz o Luiz Silva (1,2), um sociólogo e nacionalista convicto que não ascendeu ao poder, nem teve o privilégio das suas benesses e que por isso está bem situado para fazer uma análise ponderada e equidistante do processo: “Em todos os países colonizados os partidos políticos foram emanações do movimento sindical e associativo. No entanto, houve países como a Inglaterra em que independência das colónias foi objecto de diálogo e concertação. A França, que concedeu direitos sindicais, aboliu o indigenato desde 1946 e procurou integrar os representantes das colónias no parlamento, no entanto tentou pelas armas dominar os movimentos independentistas. Mas a maioria dos presidentes das repúblicas dos países francófonos passou pelo parlamento francês onde teve o treino da democracia, e alguns como Senghor e Houphouet Boigny chegaram a ser ministros na Terceira Republica. Quanto a Portugal, em caso algum quis saber do exemplo dado pelas potências colonizadoras, tão renitente era o ditador Salazar em seguir contra os ventos da História. Pelo contrário, a partir de 1933 foi estabelecida a censura, criada a PIDE e proibido o movimento associativo e entre ele a Maçonaria, que teve um papel importante em Cabo Verde. Amílcar Cabral, que conhecia os movimentos pacifistas, tanto mais que deu o nome de Indira a uma das suas filhas, procurou sempre dialogar com o governo colonial e foi quase forçado a entrar na luta de libertação, inspirando-se no seguinte lema (apoiado na cultura com a bela frase): a luta de libertação é um acto cultura.
O Governo colonial, com a conivência da Igreja Católica e mercê do seu aparelho repressor, conseguiu sustentar o seu regime autocrático com quadros dóceis, temerosos de que uma simples atitude crítica pusesse em causa os seus postos de trabalho e os seus privilégios. O curioso, mas não de todo surpreendente, é que alguma dessa gente, numa atitude servil, aderiu imediatamente ao PAIGC, trocando as voltas às suas convicções, se é que na verdade houvesse alguma, o que é perfeitamente natural depois da clausura dos espíritos ao longo de décadas. Assim, não havendo sindicatos e nem associativos, que podiam ser geradores de partidos políticos ou de lideranças cívicas suficientemente estribadas, o PAIGC, ao chegar a Cabo Verde com um treino politico importante, encontrou a adesão imediata das massas populares sedentas de justiça social, de salários justos e da liberdade de que o regime colonial lhes tinha coarctado. E por mais aceitáveis que fossem as intenções dos neófitos partidos UDC ou a UPIC, alguns dos seus membros também vítimas do regime colonial, mas com o ónus do seu silêncio comprometedor durante a vigência do regime deposto, a sua mensagem não encontrou eco na sociedade, até porque o ambiente se tornou pouco favorável ao confronto livre das ideias. O 25 de Abril caiu de surpresa e os revolucionários dirão que se erros cometidos houve foi devido a um percurso diferente do dos outros regimes coloniais. Mas quem não erra é aquele que nunca fez nada..” …“A descolonização é uma questão violenta, dizia Frantz Fanon, um dos teóricos da descolonização e da negritude e que mais influenciou o Amílcar Cabral e muitos patrícios da minha geração…..Embora a formação teórica marxista de Amílcar Cabral, ninguém pode afirmar qual o modelo económico e social que seria aplicado nos dois países. Do que estou certo é que ele nunca iria excluir do debate sobre o destino da Nação qualquer cabo-verdiano, como aconteceu aqui em França com De Gaulle, que aliás foi buscar o André Malraux, antigo companheiro de Trotsky na guerra da Espanha, para o Ministério da Cultura.”
Recentemente, ressurgiu uma corrente fundamentalista/irredentista, que revisita e reactualiza o discurso do período revolucionário reinvocando agora a problemática da escravatura (que há muito tinha desaparecido do imaginário cabo-verdiano, embora revisitado depois desde a Independência). Ela, para além de evocar a clássica recriminação anticolonial, acusando a elite colonial de ser aliada do colonialismo e do regime salazarista, vai mais longe e acusa-a de ser o principal mentor de um sistema que vigorava em Cabo Verde e que é caracterizada de racista por subjugar e reprimir as raízes africanas do arquipélago. A herança da escravatura em Cabo Verde, que consistia no seu papel como placa giratória do tráfico internacional e mesmo na sua prática no território, envolveria não somente a potência colonial mas também esclavagistas cabo-verdianos (a dita elite) cujo papel era importante se não determinante. Ao levantar esta questão das compensações pelo regime de escravatura em Cabo Verde, que foi abolido em meados do século XIX, está-se a associar, implicitamente, a potência administrante colonial a um possível processo de ressarcimento que não deixará de amplificar e complexificar o âmbito da aplicação dessa Lei da Reconciliação Nacional. Um comentário à notícia (5) exprime esta corrente de opinião: “ … foi, de facto, um grande erro não termos nacionalizado, depois da Independência, todas as terras e empresas dos colonizadores e estrangeiros, em Cabo Verde, como fizeram os nossos manos palopianos… Conceder, de mãos beijadas, grande parte do território nacional ou pagar milhões de dólares ou euros aos herdeiros dos antigos colonizadores e dos estrangeiros, isto é um assunto muito sério, isto é hipotecar ou perder, de vez, a própria INDEPENDÊNCIA NACIONAL, o que nos custou muito caro, o nosso orgulho maior como POVO INDEPENDENTE. Se for possível lutar outra vez, vamos lutar. Vamos lutar pela nossa SEGUNDA INDEPENDÊNCIA. Que as lições de CABRAL nos sirvam de exemplos; que as acções dos nossos bravos e verdadeiros combatentes da Pátria nos sirvam de inspiração“ ou “Os deputados aprovam leis que prejudicam, Cabo Verde e favorecem o colonialismo…” ou “De acordo. Primeiro paguem a Escravatura de Negros vendidos como alimárias, depois de nativos humilhados, sem escolas e sem hospitais, o País herdado sem sentinas, nem latrinas, nem estradas, nem coisas mais elementares de saúde publica…”
Mas convenhamos que esta questão da Escravatura poderá extravasar o horizonte geográfico e temporal da sua incidência (Portugal e Cabo Verde), tornando-se numa questão global e permanente. Todavia, embora se perceba esta argumentação, este assunto não pode ser debatido de ânimo leve e no quadro da Lei em questão, pois não lícito Cabo Verde ter de assumir o protagonismo de uma tal cruzada, sobretudo quando os países africanos deixaram há muito tempo cair o pan-africanismo revolucionário e reivindicativo e existem ainda alguns países que praticam escravatura. Ou não fosse precisamente através do Tráfico de Escravos que se deu à luz nas nossas ilhas o actual povo cabo-verdiano em toda a sua riqueza e diversidade.
Do outro quadrante, os que analisam a problemática de um ponto de vista técnico-político estrito, destacando os novos valores democráticos ao abrigo da actual ordem jurídica e constitucional democrática e de direitos do Homem, interrogam-se se é lícito falar de ‘amnistia’ quando as vítimas não cometeram crime político algum comprovado e demonstrado, para além de simplesmente terem sido os perfeitos anti-heróis da situação revolucionária e de estarem na oposição. Nesta perspectiva, Armindo Ferreira, num artigo publicado há anos (9) em que defende “RECONCILIAÇÃO, SIM! INDULTO OU AMNISTIA, NÃO!”, escreve: “Ao tentar escamotear a realidade, com a palavra escrita, o Governo fez um mau registo histórico e, por via disto, prestou um péssimo serviço à História. O Governo não pode pensar que no processo é apenas mediador, como pretende. É parte. Como o foi nas condecorações. Não pode por isso haver reconciliação se ele insiste em condecorar, e tratar como heróis, os responsáveis directos pelos acontecimentos de 1974/75, que diz condenar, e fazer das suas vítimas criminosos que ora pretende artificiosa e sub-repticiamente “indultar ou amnistiar”….”Fazer a reconciliação apenas reparando materialmente os prejuízos causados é negar a sua essência. A vítima não está à procura de dádivas ou esmolas do Governo em troca da sua honra ferida. Ela quer justiça! A reparação implica também a restituição da dignidade ultrajada. E isto só se consegue com humildade e nunca com arrogância e sobranceria como a manifestada no título do artigo 3º da proposta de lei: “Reabilitação e reinserção na comunidade política”. Talvez, por descuido, não se tenha feito a análise sociológica dos vocábulos “reabilitação” e “reinserção”. Não é abonatória para vítimas… possivelmente se aplica bem a criminosos, a marginais!” Efectivamente, pergunto, como é possível ter o descaso de pretender indultar/amnistiar inocentes e vítimas? “…. “É assim que, p.e., no ponto 2 dessa “Exposição de motivos”, escreve: Em 1974/75, alguns cidadãos, e de entre eles, funcionários públicos, foram internados no Campo de Chão, e depois expatriados para Portugal, com o fundamento de que constituíam perigo para o processo de descolonização.” (O sublinhado é meu)….. Chamar internamento ao encarceramento de um punhado de compatriotas, durante meses, sem culpa formada, e rebaptizar o Campo de Concentração do Tarrafal como Campo de (internamento) de Chão não é retórica ou figura de estilo, mas sim uma total desconsideração e desrespeito pela nossa História e por todos aqueles, sem excepção, que por lá passaram e sofreram na alma e no corpo os efeitos da prepotência, da intolerância e da perseguição. É uma tentativa pouco séria e pouco elegante de reescrever a História.” …” Ainda no mesmo artigo – o 3º – há um exercício do absurdo que é o de nivelar as monstruosidades, os desmandos e as tropelias de 1974/75 com as acções praticadas, “na instalação e consolidação da democracia pluralista”, isto é, de acordo com as próprias palavras do Governo, no exercício da democracia. Não é apenas o que popularmente se diz juntar alhos com bugalhos mas sobretudo procurar a quadratura do círculo. Mas para haver reconciliação, insisto, tem que haver um pedido formal de desculpa. O arrependimento. O mea culpa! O Governo que em nome do Estado faz condecorações para acontecimentos de há trinta anos, em nome desse mesmo Estado tem legitimidade e o dever de pedir formalmente desculpas por excessos cometidos nessa mesma altura. É uma questão de coerência. E o PAICV que se diz herdeiro dos activos do PAIGC deve igualmente assumir a herança dos seus passivos. Noblesse oblige!”
Assim, segundo esta linha de pensamento, não bastam eventuais indemnizações a expropriados da Independência, impõe-se um pedido de desculpas por parte do Estado, mas poderá ser o precedente para que todos os que se consideram vítimas e lesados materialmente e moralmente do processo de descolonização em Cabo Verde e do processo revolucionário subsequente, exijam, para além das devidas desculpas políticas, compensações e indemnizações.
Sobre este assunto Arsénio de Pina afirma (1,2): “Só muito mais tarde é que me fui apercebendo da realidade, mas sem acreditar que os governantes principais estivessem ao corrente das anomalias. Foi a partir daí que botei a mão na pena, embora mansamente e sem meter a boca no trombone para não ferir eventuais inocentes. O artigo mais revulsivo foi produzido em 1988 e levou seis meses a ser publicado no Voz Di Povo, e só o foi por ter ameaçado publicá-lo noTerra Nova, onde falava da nossa socialização da Medicina e da necessidade de se entrar no multipartidarismo. Constou-me que esse número do jornal se esgotou na Praia e houve gente a fazer fotocópias do mesmo”. Embora condenando os actos delituosos do período revolucionário, Arsénio de Pina não acredita nas boas intenções da UDC “por os seus dirigentes terem estado conluiados com o governo colonial e haver risco neocolonial pelas posições defendidas por Spínola, e a UPIC não dispor de força para levar avante a sua política. Somente o PAIGC, no contexto revolucionário que se vivia no mundo lusófono, poderia, como fez, levar à independência, e teria tido melhores resultados, causando menos sofrimento a muito boa gente (que classifiquei num artigo às direitas que foi considerada da direita) que foi ofendida, caluniada, forçada a abandonar o país, ou presa por simplesmente discordar da sua política, se os seus dirigentes não se tivessem empolado de arrogância e tornado intratáveis, impedindo-os de ouvir a opinião de pessoas competentes, experientes e idóneas que não militavam no Partido. A infalibilidade, somente papal, e mesmo esta, embora limitada a assuntos de fé, contestável.”
Ou seja, perante os traumas do período de transformação ainda em curso, existem na população cabo-verdiana vários ressentimentos antagónicos e problemas do foro psico-político que só podem ser resolvidos com uma serena reflexão e a aceitação da irreversibilidade das consequências de um processo histórico revolucionário que ultrapassou tudo e todos, e por fim o Reconhecimento, o Perdão e a Reconciliação, ou seja, a Normalização.
É, pois, minha opinião que a problemática aqui em discussão não está minimamente clarificada, sobram ainda muitas pontas soltas para uma cabal compreensão do processo e do papel exercido pelos principais protagonistas. Por outro lado, a questão da Reconciliação merece uma melhor atenção e aprofundamento. Nesse sentido, devia-se constituir uma Comissão Nacional séria e independente, com um mandato claro e objectivo, para se investigar toda a época em causa, analisar arquivos, recolher depoimentos, ouvir os protagonistas ainda vivos, em ordem a apurar os factos e a esclarecer as responsabilidades, porque só assim se contribui para que a História se escreva com verdade e não se confunda com a propaganda política ou com as versões desencontradas dos diferentes protagonistas. As conclusões do trabalho dessa Comissão deverão ser do conhecimento público, para que nenhuma dúvida paire sobre a linearidade da intenção de abrir caminho para uma verdadeira Reconciliação Nacional. É hora de virar definitivamente esta página dolorosa, repensar Cabo Verde e unir toda a nação cabo-verdiana em torno dos difíceis desafios do futuro: rumo às necessárias e inadiáveis reformas de que carece o país.
Janeiro de 2015
José Fortes Lopes
Bibliografia:
1-Da Independência à 1ª Via: 1974, a tomada do Poder pelo PAIGC e a fuga da Elite Cabo-verdiana
2-http://arrozcatum.blogspot.pt/2015/02/7754-o-lugar-da-historia-2.html#comment-form
3- http://www.asemana.publ.cv/spip.php?article106666&ak=1
4-GUINÉ – BISSAU E CABO VERDE: DA UNIDADE À SEPARAÇÃO Por Antero da Conceição Monteiro Fernandes PORTO 2007;http://pt.slideshare.net/barrosjonatas/guine-bissau-e-cabo-verde-da-unidade-a-separacao
5- Santo Antão: Ribeira Grande celebra 20 de Janeiro com homenagem aos combatentes do Grupo de Moselle
http://www.asemana.publ.cv/spip.php?article106592&ak=1#ancre_comm
6-http://www.familcarcabral.org.cv/index.php?option=com_content&view=article&id=293:historia-de-jaime-mota&catid=131&Itemid=567
7-http://rtc.cv/index.php?paginas=45&id_cod=38148
8-Tricontinentale, Quand Che Guevara, Ben Barka, Cabral, Castro et Hô Chi Minh préparaient la révolution mondiale (1964-1968). Roger Faligot; Edition La Découverte
http://www.editionsladecouverte.fr/catalogue/index-Tricontinentale-9782707174079.html
9-http://www.coral-vermelho.blogspot.pt/2015/01/reconciliacao-sim-indulto-ou-amnistia.html
10-http://madeincaboverde.blogspot.pt/2012/03/roberto-duarte-silva-quimico-natural-de.html
11-http://brito-semedo.blogs.sapo.cv/371892.html
12- http://arrozcatum.blogspot.pt/2014/05/6878-crioulos-ilustres.html
Alguns poderão dizer, não sem razão, sobretudo os menos pacientes para a leitura pausada e bem deglutida, que este texto é longo, mais ao género de um pequeno ensaio. Isso é verdade, mas têm sempre possibilidade de fazer um “cofee breack”, para logo de seguida retomarem a leitura. Tendo trocado opiniões com o autor, Professor José Fortes Lopes, percebi bem que a intenção é condensar e sintetizar numa única peça a narrativa sobre os acontecimentos do passado tumultuoso de 1974 e períodos subsequentes, para que, numa análise pautada por rigor, isenção e objectividade possíveis, seja possível encontrar as pontes necessárias para uma verdadeira “Reconciliação Nacional”.
ResponderEliminarComo eu disse num comentário anterior, o José participou nos acontecimentos de 1974 com o fulgor do seu coração adolescente, deixando-se levar na onda revolucionária. Hoje, com o amadurecimento da sua condição de quinquagenário e com a sua mente esclarecida e profundamente cultivada, é o perfeito medianeiro entre o passado e o presente, tanto quanto lho permitem o seu coração genuinamente cabo-verdiano, a sua clarividência e o empenho cívico que demonstradamente dedica aos problemas da sua terra.
A análise está muito bem conseguida e tenho-a como um bom contributo para a feitura da História do Cabo Verde pós-independência. Não há aqui intenção de execrar os que lutaram pela independência do território, nem seria justo ou aconselhável ir por aí, assim como o autor não passa um atestado de inocência pura aos que se posicionaram no campo oposto. No entanto, reconheça-se, isso sim, que o derrube do regime anterior caiu de rompante, sem dar um tempo mínimo para que os cidadãos cabo-verdianos pudessem reflectir convenientemente sobre o futuro da sua terra, talvez incorrendo na ingénua presunção de que as liberdades cívicas subitamente devolvidas pelo 25 de Abril iriam ser partilhadas por igual em todo o espaço do “império”. Na verdade, assim não foi em lado algum, com excepção do território metropolitano, porque aqui o atropelo não podia ir demasiado longe sem produzir repercussões no espaço geopolítico. Assim, enquanto eu, luso-cabo-verdiano, tive possibilidade de escolher o que queria pela simples circunstância de viver em Portugal, aos meus conterrâneos foi negado esse privilégio cívico, tendo sido todos metidos no mesmo caldeirão efervescente em que de repente se tornou a ilha de S. Vicente.
Sim, a ilha de S. Vicente, reparem bem, não Cabo Verde. Curioso, não é? Não é por acaso que o José, na sua abordagem, ao falar de Cabo Verde, fá-lo com o epicentro unicamente colocado em S. Vicente. E ao falar do Grémio, o espaço de acolhimento da dita “elite social”, refere-se obviamente ao Grémio do Mindelo, sem o cuidado de o especificar. O que é que isto significa? Significa que todas as pulsões cívicas cabo-verdianas estavam unicamente centradas em S. Vicente. O resto, designadamente, a ilha capital, não contou para nada. Mas essa mesma pulsão cívica que, centrada em S. Vicente, virou o rumo da história no arquipélago, poderia a todo o transe vir a apontar a bússola para outra direcção. É assim quando se decide em liberdade.
Por o ter percebido é que o partido da independência decidiu logo, e sem hesitar, a sua linha estratégica para o futuro. Marginalizar S. Vicente, esvaziar ardilosamente as suas potencialidades anímicas, e apostar todo o futuro do país na ilha de Santiago, que, ao contrário da outra, era bem mais fácil de domar, mais ainda se passasse a ter o quase exclusivo dos privilégios nacionais. Um verdadeiro paradoxo, não haja dúvida.
Desviei-me um pouco, mas é natural que este texto nos dê pano para muita manga. Oxalá apareçam mais alfaiates, tanto mais que o Zito deu um prazo mais que suficiente para se montarem as oficinas.
Ainda por cima, tendo como música de fundo o violão do nosso Humbertona, por certo que não faltará nem inspiração nem vontade para uma conversa animada.
Um abraço ao José e ao Zito.
Estava ausente de CV nesta altura conturbada...
ResponderEliminarContudo, pegando na frase do Amigo Adriano: - ... " marginalizar S. Vicente"... lembro-me que, na altura, os amigos "revolucionários" mindelenses diziam-se "cooperantes na Praia"... Portanto, acho que, duma forma ou d'outra, todos fomos vitimas e cooperantes da mesma guerra!
Como lamento não ter capacidade de escrita para poder exprimir o que me vai na alma!
Mantenha
Ao professor José F. Lopes foi concedido um privilégio raro: o de viver a História e ter o talento de a contar com a independência moral de quem "aprendeu" a sobreviver a fantasmas de libertinagem pseudo-ideológica de que é coevo.Eu chamo a isto coragem intelectual e sinto-me muito honrado por poder ser veículo desta História da Verdade e não da historinha das conveniências políticas com que se enganam gerações, atraiçoadas na sua boa fé por idealismos de duvidosa, quando não criminosa, inspiração!
ResponderEliminarObrigado, professor: eu sei do que falo pois eu também estava lá!
Braça MINDELENSE,
Zito
Já é tempo do país, ou melhor o PAIGC/CV (pois era este partido que estava a disputar o poder naquela altura e quis eliminar tudo quanto fosse obstáculo às suas pretensões como se de direito seu se tratasse) reconhecer os actos praticados e pedir desculpas, publicamente, aos lesados para que possamos encerrar este capítulo sombrio da nossa história e seguirmos em frente. Infelizmente a nossa jovem república iniciou os seus primeiros passos com uma ditadura, censura e polícia política quando bem podia ter sido diferente....
ResponderEliminarMatrixx
Nem com o som deste violão eles aparecem, os comentadores, os habituais e os outros. Mas as cigarras ouvem a melodia e entram em dueto com ela, enquanto os homens se curvam, em plena faina, sobre o milheiral, o sol inclemente a não dar tréguas aos corpos. Graves, calados e ajoujados sob o peso de incontáveis dramas, mesmo assim procuram restos de garbo para acertarem o coração com o ritmo da música. Sabem que esta lhes é especialmente dedicada.
ResponderEliminarHaja quem apareça e fale em nome deles.
O Dr Lopes fala o número de pessoas que possam estar em questão. É muita gente. A prova:
ResponderEliminarEu sei que S. Vicente a cidade virou com a debandada num deserto de um dia para outro .
Rua de Lisboa era frequentada carros para cima para baixo morreu. O Natal morreu. O Carnaval quase que proibiram
Foi uma grande tristeza no coração apertado ver tanta gente a largar a terra e a chegar barbudos e os guineense.
Neste ano uma parte de cabo Verde morreu
Alguém pode dizer saber o que foi feito das gentes da UDC. Só o Dr Fonseca ficou .
Alguém já ouviu falar do Tenente Ajuda o homem do PAIGC no MFA que ajudou este partido.
Gugu Lima
Em primeiro lugar, acho que se deve apontar o dedo acusatório ao Conselho da Revolução / MFA Português e seus acólitos.---
ResponderEliminarAssentei praça no Mindelo...guerreei em Angola... e depois testemunhei em Moçambique os "crimes" perpetrados em nome da dita descolonização -.
O manual, com mais ou menos nuances, foi igual em todas as colónias!
Por isso, acho que são eles que nos devem o primeiro pedido de perdão!
Mais um artigo de reflexão da lavra do Professor José Fortes Lopes, insigne cabo-verdiano que não desdenha os seus deveres de Cidadão para defender a sua terra natal e combater os males que afectam as mesmas vitimas desde os primeiros dias em que ele tomou parte activa para uma melhor vida pelo seu Povo.
ResponderEliminarAfinal se houve mudança, como apregoam, é sabido que não foi para todos visto que desde o primeiro discurso oficial ficou claro que uns haviam de ter "vinte anos de purgatório (uma sentença sem processo de instrução) e sanha do activismo bairrista da camada no poder aparece com a sua politica antiga cada dia mais travestida. A vida nacional necessita urgentemente uma reflexão e uma acção global sem qualquer outra prioridade porque não existe fatalidade impossível de ser combatida. Ê absurdo e irresponsável não denunciar o mal que deve ser combatido com determinação por todos e por cada um na medida das possibilidades para um desafio generalizado de justiça, de progresso e de paz.
E na situação presente não se deve visar tal ou tal categoria em relação à outra. O programa deve visar um sistema politico que se diz democrático mas que é incapaz de defender igualmente os cidadãos.
Respondendo aos senhores Gugu Lima e a AMendes. Depois de ler o comentário do primeiro, fiquei com uma imagem sucinta mas bem caracterizada sobre o deserto de vida em que de repente se tornou S. Vicente.
ResponderEliminarQuanto às responsabilidades imediatas, é claro que em primeiro lugar têm de ser imputadas ao MFA, o que implicitamente significa o Estado, dado que este passou a ser conduzido pelas rédeas políticas daquele movimento. Mas será melhor não entrarmos muito por este terreno porque teríamos de ir muito atrás para reconhecer que os verdadeiros culpados se situam a montante. O regime anterior, na pessoa de Salazar, poderia ter sido mais realista e acautelado em devido tempo uma solução política para os territórios em África. Mesmo o seu sucessor, Marcelo Caetano, em quem se depositou alguma esperança, meteu a cabeça na areia, incapaz de enfrentar os próceres do regime. Preferiram deixar a coisa andar até cair de podre, como de facto aconteceu, para no fim atribuírem as culpas exclusivamente aos militares. Nenhuma guerra subversiva se ganha com o poder das armas. Não há memória histórica disso.
Só que o MFA não previu todas as consequências do seu acto. Pensava que tinha condições reais para manter a autoridade do Estado e evitar que o poder caísse na rua, como vaticinou o Marcelo Caetano, no dia em que foi derrubado. Ele ficou mais aliviado quando soube que o prestigiado general Spínola é que iria estar à frente dos destinos do país. Só que se esqueceu de que se soltou a tampa de uma panela de pressão e não se teve em conta que os partidos políticos, nomeadamente o Partido Comunista e a esquerda radical, iriam tentar apropriar-se ideologicamente da componente política do Movimento. Através dos oficiais milicianos, que já estavam nas fileiras, e de outros que foram preparados para se “infiltrarem” nos efectivos militares, esses partidos da esquerda radical criaram um autêntico Cavalo de Tróia dentro das Forças Armadas. E a bandalheira passou a reinar na instituição militar, a autoridade do Estado caiu por terra.
E tudo ficou complicado quando o povo manipulado por aqueles partidos veio para a rua gritar “Nem mais um soldado para as colónias!”. Ora, para que a descolonização não se tornasse no descalabro que foi, teria sido necessário manter intacto em África o dispositivo militar que lá estava e certamente continuar a combater se os movimentos não aceitassem tréguas condizentes com um processo de descolonização devidamente gizado e faseado no tempo. Não aconteceu nada disso, pois os soldados deixaram de facto de marchar para as colónias.
Reafirmo, a culpa foi do regime anterior, que não teve uma visão correcta da História, com consequências bem trágicas (guerra civil) em quase todos os territórios. Em Cabo Verde, a nossa pequenez, a nossa pobreza e também o nosso grau de instrução e cultura relativamente superior aos povos das outras colónias, evitaram que o rebuliço descambasse para coisas mais graves. Se bem que não se considera pouca coisa o êxodo de muitos cabo-verdianos que poderiam ter contribuído para o progresso do país.
Este artigo é uma autêntica Bomba Atónica na Tapadinha. E agora que este senhor doutor veio para aqui revelar a verdades que doi que toda gente sabe e que se murmurava. Ninguém se engana PAIGC deu um golpe de Estado. E só agora estamos a acordar , pois Cabo verde não está nada, está tudo a impludir o povo a viver na miséria cercado nas ilhas por mar sem tem onde ir escapar a fome e os governos da praia mais corruptos que os coloniais que não roubavam . Para servir de criado na Praia nos ricos do partido é preciso pagar uma passagem cara. S. Vicente está acabado, Praia faz o que quizer manda capataz e S. Vicente manda reparar tudo na Praia. A câmaras não, são corruptas sem pessoas para governar. Onde vai para Cabo Verde.
ResponderEliminarNuno Barbosa Amado
Já li este texto e reli várias vezes. Cheguei aqui a partir da informação de um amigo. Isto deveria chegar em Cabo Verde. Não sei se o autor vai publicá-lo aí. Olhe que eles não vão gostar do que você escreveu e o muito que tem esclarecido. De qualquer maneira desejo ao autor muitos sucessos na vida e que escreva mais e traga tudo aquilo que sabe.
ResponderEliminarAugusto Lopes santos
Quando pessoas idóneas tentavam demonstrar que o Paigc era uma grande farsa eram consideradas contra-revolucionàrios e logo isolados quando não eram denunciados, ameaçados ou...
ResponderEliminarQuando se citavam os "vendidos" que se instalavam na capital entregando-se de corpo e alma ao partido e bufando para a ilha natal a secreta do tal partido único perseguia. Pessoalmente vi amigos me fugirem porque sabiam-me hostil ao totalitarismo que entranhava no corpo da nação como um vírus letal.
Quando o omnipotente ditadorzinho Aristides Pereira decidiu ostracizar S.Vicente, ilha que o acolheu, por vinte anos ninguém reagiu porque determinação do camarada presidente.
A semvergonhice foi continuando enquando os idiotas batiam palmas.
Agora JMN anuncia a oficialização de uma língua que nem é a materna e não vejo nenhuma reacção. Nem sequer da parte dos Deputados das ilhas cujos falares serão sacrificados.
Não vale chorar. Ninguém se lembra que só nós - JUNTOS - podemos defender a nossa vida e ao mesmo tempo o nosso pais. Ê o dever do Cidadão
João de Deus Soares
NUNCA OS PERDOAREMOS~
ResponderEliminar..." AS FORÇAS MILITARES PORTUGUESAS E OS SERVIÇOS DE SEGURANÇA ESTAVAM AUSENTES; OU MELHOR DIZENDO; ESTAVAM PRESENTES MAS COMO MEROS ESPECTADORES.
A IMPOTÊNCIA OU A PASSIVIDADE CÚMPLICE SÃO UM COISA. A ACÇÃO DELIBERADA; OUTRA.
O QUE FIZERAM AS AUTORIDADES DURANTE A TRANSIÇÃO E PRINCIPALMENTE DURANTE OS DERRADEIROS MESES DE 1975, FOI UM CRIME DE TRAIÇÃO.... ORGULHEM-SE SENHORES OS OFICIAIS POR TEREM SABIDO HONRAR O CÓDIGO DE CONDUTA MILITAR" ...
....
Q UE FAZEMOS AOS PORTUGUESES?
--- "DEITEM-NOS AOS TUBARÕES"
Mário Soares (dixet )
Perante estes vómitos da História... que mais se pode dizer?
Diga quem souber...
No estado de coma artificial em que vive a nação Cabo Verde (em geral) e S.Vicente (particularmente), intervenções deste teor são sempre necessárias sobretudo agora que o PM está de malas aviadas depois de ter completamente demolido o pais politicamente, economicamente, socialmente e, agora, culturalmente.
ResponderEliminarNão é exagero nenhum se se disser que, com a sua máquina infernal, José Maria Neves destruiu Cabo Verde civilisacionamente
Ema Rodrigues.
Penso que a principal motivação do Professor José Lopes foi deixar aqui o seu contributo para o virar de uma página na nossa vida colectiva. Para isso, teve de ir à fonte original dos acontecimentos para os virar do avesso, analisar e situar num quadro de expectativa que pode abrir-se ou que irrecusavelmente tem de abrir-se. E a expectativa é exactamente por uma efectiva reconciliação nacional, saradas as feridas antigas após um pedido de perdão a todos os que foram vilipendiados nas suas consciências ou prejudicados nos seus legítimos interesses. Que os houve ninguém tenha dúvidas disso. Que tivesse sido necessário é a dúvida que se coloca quando se interroga se é legítimo impor uma verdade única sacrificando largos sectores dos filhos da nação.
ResponderEliminarA História é fértil na demonstração do insucesso de regimes autocráticos e na recorrente prova de que o homem está acima das ideologias.
Portanto, é tempo de alguns renitentes e empedernidos aprenderem que o destino da nação não pode ser decidido senão com a voz e a vontade de todos.
A Gerência aproveita esta oportunidade para saudar a colaboração de novos visitantes do Arrozcatum que, assim, enriquecem os seus conteúdos...Daqui enviamos abraços fraternos a EMA RODRIGUES, GUGU LIMA, NUNO BARBOSA AMADO, AUGUSTO LOPES SANTOS e JOÃO DE DEUS SOARES...Esperamos continuar a "vê-los" por aqui...
ResponderEliminarZito Azevedo
Venho também agradecer a todos os que vieram enriquecer este debate. Foi o meu único objectivo trazer ao público aquilo que sei (e é pouco) e ajudar a uma reflexão sobre a nossa história comum partilhada com Portugal e tantos luso-cabo-verdianos que aqui debateram. Era uma oportunidade para que muito mais gente que sabe mais do qu nós viesse cá apresentar depoimentos até visões diferentes pois este é daqueles assuntos que vale a pena. mesmo assim o nº de comentários foi satisfatório. Mais uma vez um muito obrigado a todos os amigos que durante estes dois dias partilharam comigo esta aventura/missão. Um muito obrigado ao amigo Zito por permitir que este artigo ficassem online durante 2 dias.
ResponderEliminarArtigo muito informativo e historicamente bem descrito. Acontece, ilustre Professor Fortes, que entre nós, aqui nas ilhas, passa-se algo de estranhamente bizarro é que não possuímos na hora presente, qualquer Historiador isento, ou analiticamente objectivo. Pelo contrário, são todos ou quase todos partidariamente marcados (leiam-se: Paigc/Paicv) com Jornalistas escribas reinóis incluídos.
ResponderEliminarEste é o panorama! Imagine-se a História louvaminhas que os mais novos lêem! Em tratando-se de «Vacas sagradas» são excepções, aqueles que não sendo historiadores tentam trazer o registo histórico sem medo e sem ideologias. Isto é mais próximo do real vivido. Daí o seu texto que demanda e bem, debate sério e alargado sobre estas matérias de modo a fazer-se a "catársis" e assim lograr a reconciliação. Como responder a um texto tão pungente como foi o pedido de explicação pelo mal sem justificação que fizeram ao nosso Zito e à família? São respostas de que estamos a precisar.
Obrigada pelo texto.
Abraços
Ondina
Com todo o respeito:
ResponderEliminarDeixemos para "trazmente" os "perdoa-me"... Só há uma G3 eficaz e certeira: O VOTO! É dele que depende o sentido da "guerra"
Que me perdoem a nova intromissão mas é, apenas, para segredar ao Artur que a arma do voto apenas funciona em democracia!
ResponderEliminarQue me perdoem a insistência:
ResponderEliminarEsta "guerra" só se vence com a "basucavoto". Isto claro, para quem queira alterar a (im) posição do "inimigo".
Se já houve alternância presidencial porque não governamental?
Normalmente, talvez por preguiça, não intervenho nos blogues. Por incitação da minha excelente Amiga Ondina cá estou a fazer, muito brevemente, algumas observações sobre o bem conseguido e oportuno artigo de José Fortes Lopes que ela teve o trabalho de imprimir e de mo recomendar. Daqui a minha intervenção tardia.
ResponderEliminarComeço por apreciar a elegância e a subtileza com que José Lopes aborda uma época turbulenta, tentando justificá-la como “revolucionária” o que arrasta uma certa ideia de destruição da liberdade e das garantias individuais. Não me parece que justifica, mas apenas que permite a compreensão das ocorrências. A Revolução gera arbitrariedade e violência gratuita - haverá outra? O autor deixa entender a existência de uma elite com pretensões neocolonialistas, como meio de manter a situação de privilégio de classe. Antipatriótica, por ser neocolonialista? Será? Talvez esteja a ser injusto na minha análise. Qual o poder instituído em África de então que pôde fugir à fatalidade neocolonialista? Como disse Kwame N’Krumah é um estágio do imperialismo. O último, para ele. A substituição dessa elite por uma outra (política) terá sido legítima sem uma luta política que permitisse ao povo fazer a escolha? Trouxe liberdade? Trouxe democracia? Terá trazido algum valor acrescentado que não estivesse ao alcance da outra elite? Partilhar o “nacionalismo” com outrem como queria o PAIGC será mesmo nacionalismo no sentido político do termo? Tudo isto, constitui um tema polémico que requererá um debate bem alargado como muito bem propõe José Fortes Lopes. A legitimidade (revolucionária) do PAIGC como se poderá entender do texto no seu todo, não é linear. O PAIGC, em Cabo Verde, não emergiu de nenhum levantamento popular e não foi mandatado pelo povo cabo-verdiano para lutar na Guiné em seu nome, como entende o punhado de rapazes e raparigas que o fizeram. Daí que o que houve na verdade foi um “assalto” ao poder. Não tendo havido guerra em Cabo Verde, o Governo Colonial Português devia – é uma opinião, obviamente – deixar que a luta política se fizesse em Cabo Verde e não entregar, como o fez, de bandeja o poder ao PAIGC permitindo e apoiando os desmandos que então se verificaram. Circunstâncias, confusões contextualizadas numa época conturbada? De todo o modo, como me parece defender José F. Lopes, já é tempo de serem devidamente ultrapassadas. O que não se pode promover é, ao desbarato, a cultura do esquecimento.
Admirar Cabral não é estar de acordo com ele. Cabral não era apenas marxista. Era marxista-leninista. O seu ‘centralismo democrático’ e a sua ‘democracia revolucionária’ eram ipsis verbis leninistas com laivos bem estalinistas. Era um político muito hábil, mas descortinar nele “democracia” é um exercício intelectual que requer muito talento e arte. Cabral nunca viveu em democracia. De Portugal passou para Guiné-Conacry com escassos três meses na Europa. Por outro lado, não me parece minimamente razoável vislumbrar neste ou naquele país “virtudes” de colonialismo. E é bom que aqui se realce que em Cabo Verde nunca houve “indigenato” como muito bem se diz no texto.
Apenas uma curiosidade: O nome da filha de Cabral parece-me ser ‘Ndira e não Indira. Expressão balanta que significa “verdade”. Nome e vocábulo bem guineenses…
De forma um pouco atabalhoada aqui ficam umas breves observações, uma espécie de “deixas”, para uma discussão alargada sobre o excelente texto de Fortes Lopes bem como para a sua generosa proposta.
A. Ferreira
Obrigado A.Ferreira pelo valioso comentário ao artigo. Se notar relativamente à elite só limitei-me a apresentar a argumentação dos revolucionários e dos associados que defendem a dita legitimidade revolucionária , ou seja que uma acção revolucionária em nome da justiça e do povo acarreta forçosamente excessos que não podem ser julgados a posteriori. Apresentei uma outra tese em oposição à revolucionária uma corrente representada por si, e defendida no seu artigo publicado em Coral Vermelho, que analisa a problemática estritamente de um ponto de vista de novos valores modernos, democráticos e jurídicos, trazidos pelo 25 de Abril e pela posterior instauração da democracia em 1992, demolindo assim os pressupostos da corrente revolucionária. Em muitos casos insinuei algumas considerações críticas em relação às pretensões da corrente revolucionário que caracterizei de presunçosa. Mas não quis neste artigo apresentar o meu posicionamento em relação à duas correntes para não introduzir um ruído de fundo maléfico à compreensão da problemática que venho debruçando há 3 artigo, reservando o meu posicionamento para um próximo artigo que sairá oportunamente publicado.
ResponderEliminarSaúdo a intervenção do A. Ferreira.
ResponderEliminarÉ encorajante ver aqui pessoas que entram fundo na substância do tema, dissecando-a, para uma melhor clarificação dos factos. Mas, no meu entender, o José Lopes procurou não tomar agora qualquer posição pessoal, depois de o ter feito na verdura dos seus 16 anos, engrossando a multidão que subitamente surfou a onda da liberdade sem atinar com as consequências do seu acto impulsivo. Admite-se que o José tenha hoje uma posição bem assumida e esclarecida sobre os acontecimentos e as consequências que tiveram no futuro do país. De facto, tem, e provam-no as várias intervenções que vem produzindo sobre matérias críticas da governação da nossa terra, designadamente o centralismo político e a questão da língua.
Porém, neste texto, percebi que ele procura, acima de tudo, pôr-se na pele de “historiador” e intuir o ponto de vista de cada uma das posições que se confrontaram. Não defendeu ou justificou esta ou aquela tese. Resistiu a isso, deixando que outros o façam com isenção e rigor: “…investigar toda a época em causa, analisar arquivos, recolher depoimentos, ouvir os protagonistas ainda vivos, em ordem a apurar os factos e a esclarecer as responsabilidades, porque só assim se contribui para que a História se escreva com verdade e não se confunda com a propaganda política ou com as versões desencontradas dos diferentes protagonistas.”
Noutro passo, se fala na “… aceitação da irreversibilidade das consequências de um processo histórico…” é no sentido explícito da afirmação, sem qualquer subentendido. Não está a caucioná-lo nem a passar-lhe um atestado de virtudes, já que não se pode inverter a marcha do tempo.
Penso que até é a atitude mais prudente quando se perspectiva uma tentativa de reconciliação nacional, o que poderá ser possível se for bem conduzida, banindo desde já a ideia de “indulto” ou “amnistia” aos que foram banidos da sua terra.
Quanto à responsabilidade primária, é impossível não imputá-la à potência administrante, que repentinamente deixara de ter um Estado na verdadeira acepção da palavra. Mesmo quem estava na Metrópole sentiu-o na pele e no ânimo, e se o descalabro não foi mais longe foi por aquilo que eu disse num comentário anterior e toda a gente sabe.
Trabalho meritório do amigo José Fortes da Silva que equacionou quase cientificamente (como professor universitário de Física) os acontecimentos do conturbado período que antecedeu a independência nacional e das intenções do Estado com a Lei da Reconciliação. As achegas do Luiz Silva e Armindo Ferreira (ex-ministro do MpD, que lançou a toalha para não ter de engolir todos os sapos) são pertinentes e convincentes.
ResponderEliminarPara haver reconciliação, o Estado terá, antes de tudo e forçosamente, de pedir, humildemente, abandonando a sua arrogância e intractabilidade habituais, desculpas pelos erros cometidos. A partir daí, aplicado o bálsamo das desculpas, com a criação de ambiente civilizado, nomear-se-ia uma comissão para fazer luz sobre todas as irregularidades, injustiças e barbaridades cometidas na época e sua divulgação pública. Os elementos apurados pela comissão poderiam servir de base para as reclamações das vítimas. Outrossim, esse reconhecimento por parte do Estado e seu pedido de desculpas, serviriam de caução para a sua bem-intencionalidade relativamente às reformas prometidas, bastas vezes adiadas, e a decisão de aproveitar todas as inteligências nacionais, independentemente das suas filiações políticas, na resolução dos nossos problemas.
Amigo Arsénio, é isso mesmo! Dos outros não poderei, claro, falar mas, no que pessoalmente me diz respeito, há 38 anos que aguardo por uma palavra de contrição que me reconcilie com o passado...Convenhamos que é tempo de mais para decidir o que é mais do justo - é moralmente obrigatório!
EliminarBraça
Zito
Eu acho que antes de indemnizar seja quem for Cabo Verde deve-se abrir estes processo esclarecer devidamente o público e limpar o nome de todos os injustiçados. Toda a gente acabou hoje, passados os ressentimentos as amarguras e raivas, por compreender que Cabo Verde não podia ficar imune ao tsunami do 25 de Abril e o que aconteceu inscrevia-se nesta história. Felizmente, graças a Deus, que não somos angolanos ou guineenses e na nossa terra cristã, pacífica não correram rios de sangue. Mas bolas porque é que andamos com rodeios a negociar com advogados chorudas indemnizações aos poderosos quando seria tão fácil reabrir o livro todo e dizer sory.
ResponderEliminarerrata deve-se ler
ResponderEliminarCabo Verde deve
ao público