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quinta-feira, 2 de abril de 2015

[7954] - D'RIBA D'ÁGA DE MAR...(3)

...O MAR E A AVENTURA NA MEMÓRIA  E NA IDENTIDADE DO POVO CABO-VERDIANO...

III CAPÍTULO


     Se poucas dúvidas existem de que o cabo-verdiano começou a fazer-se ao mar em eras bem remotas, certo é que no século XVIII se dá início aos primeiros recrutamentos de cabo-verdianos para os baleeiros americanos que escalavam as ilhas da Brava e do Fogo. Na verdade, por volta de 1750, navios baleeiros americanos aportavam regularmente a Cabo Verde e com frequência admitiam marinheiros, principalmente daquelas duas ilhas, por mais próximas das rotas dos cetáceos na altura, tanto que em 1840 mais de 40% dos caçadores de baleia de Nawtucket eram cabo-verdianos (António Carreira). Pode dizer-se que começou aí a primeira verdadeira emigração cabo-verdiana, a qual haveria de adquirir mais tarde uma dimensão diaspórica, ocasionando nódulos de emigração que com o tempo se tornariam importantes comunidades nas principais cidades da costa leste americana, designadamente Nantucket, Bóston, Brockton, New Bedford e Providence. É que o marinheiro se fixava em terra logo que a ocasião o proporcionava, empregando-se normalmente na indústria têxtil e outros misteres. Engajado inicialmente como marinheiro, por sinal de uma reputação tão positiva que encorajava o seu emprego pelos capitães e armadores, natural é que, com o tempo e a constituição de família, sobreviesse a apetência para lançar amarras em terra e iniciar uma vida mais calma.


Tripulantes cabo-verdianos do navio Madalan
reparando as velas em porto
norte-americano
 Com a restrição da emigração para a América do Norte a partir dos meados da do século XX, a alternativa virou-se então para os portos da Europa do Norte, nomeadamente da Holanda, e é efectivamente a partir da década de 1950 que se intensifica um considerável fluxo migratório com aquele destino. Inicialmente orientada para a marinha mercante de navios das mais variadas nacionalidades, a emigração errante acabaria por ocasionar o mesmo fenómeno que aconteceu na América, ou seja, o surgimento de importantes comunidades cabo-verdianas. Assim, os dois grandes e importantes cenários históricos da aventura atlântica cabo-verdiana no século XVIII, XIX e XX são a América do Norte e o Norte da Europa, a que correspondem épocas distintas de evolução tecnológica na navegação marítima.
     
        
                                                             Irmão

                                         Cruzaste Mares
                                         Na aventura da pesca da baleia,
                                         Nessas viagens para a América
                                         De onde às vezes os navios não voltam mais.

                                         Tens as mãos calosas de puxar
                                         As enxárcias dos barquinhos no mar alto;
                                         Viveste horas de expectativas cruéis 
                                         Na luta com as tempestades;
                                         Aborreceu-te esse tédio marítimo
                                         Das longas calmarias intermináveis.

                                         Sob o calor infernal das fornalhas
                                         Alimentaste de carvão as caldeiras dos vapores…
      
    Estes versos de Jorge Barbosa (excerto do poema Irmão), sem recorrerem a grande hiperbolismo poético, compõem uma síntese bem expressiva da longa e árdua sina marinheira do seu povo. Lembre-se que a menção às calmarias não é gratuita no poema. Diz quem sabe que as calmarias representavam um perigo tão letal e tão aterrorizante como os temporais. O prussiano Theodor Leithold, aludindo a uma viagem que o transportou ao Rio de Janeiro em 1819, afirmou que durante o fenómeno das calmarias “reinava um silêncio surdo no navio, que mais parecia um claustro de trapistas; ninguém falava, mesmo os marinheiros olhavam fixo para diante, por não haver esperança de passar a linha (do Equador)” (1).
    Mas as calmarias oceânicas, os violentos temporais ou outras causas naturais susceptíveis de alterar a fácies dos elementos, pondo a vida humana em perigo, fazem parte de uma equação, a do risco, que o homem cabo-verdiano nem sequer colocou quando se defrontou com o dilema: “querer ficar e ter que partir”. Querer ficar na sua terra, no aconchego do lar, junto dos entes queridos, é um desejo natural de todo o ser humano que concebe e preza a sua felicidade em harmonia com o ambiente físico e humano que o viu nascer. Só uma imperiosa necessidade de angariar meios de sobrevivência o obriga a viver a tensão psicológica do terrível dilema, a ponto de não considerar sequer o risco do desconhecido que é inerente ao contacto com outras geografias e outras culturas. 
    Assim se conclui que o cenário líquido de lonjura e infinitude influenciou o espírito do homem das ilhas e incutiu-lhe sentimentos e vocações peculiares que o tornaram um ser dilematicamente preso e desligado do seu lugar, um ser sonhadoramente errante e de uma aptidão para o mar que é das mais inequívocas entre os povos de expressão lusíada. Por isso se pode considerar o mar é para o cabo-verdiano um espaço modelador da sua identidade e gerador de história, portanto, um espaço antropológico, por via da relação biunívoca entre o meio físico e as múltiplas vivências humanas. 
    Disse atrás gerador de história. Sobre o momento em que a história começou não restam dúvidas, mas quando e como ela vai terminar é arriscado o prognóstico. Em todo o caso, essa história suscita uma contabilidade sobre a qual as reflexões são diuturnas em vários domínios de avaliação, com um saldo sobrante que estimulará toda a sorte de leituras, ilações e prospecções. Esse saldo diz-nos que o destino foi mais ou menos afortunado e risonho para muitos emigrantes marinheiros que souberam amealhar pensando no bem-estar das suas famílias e investindo na economia da sua terra. Mas o destino foi também muitas vezes bem penalizante para aqueles que não conseguiram lobrigar o melhor sentido para as suas vidas. Porém, o mais cruel destino, o mais trágico porque irremissível, foi o daqueles que perderam em cima das águas do mar o bem supremo – a vida. 
    O espírito de aventura do cabo-verdiano tem de ser olhado enquanto reflexo da busca incessante de uma vida melhor e como epifenómeno de uma idiossincrasia em larga medida influenciada pela cultura da emigração. Pode ser este o momento de olhar para o passado sem complexos ou constrangimentos. Momento de fazer balanço, de encontrar novas saídas olhando atentamente para este mundo que permanece confuso mas que a ciência torna cada vez mais pequeno e aglutinador de soluções globais, ainda que estas nem sempre priorizem as necessidades mais gritantes dos povos desfavorecidos pela natureza ou por outras causas civilizacionais.
    Antes de mim certamente alguém já o observou. É estranho que não haja nas ilhas de Cabo Verde ruas com nomes de homens do mar cabo-verdianos que se notabilizaram por esse mundo fora. E obeliscos com os nomes dos que pereceram em cima das águas do mar. E estátuas em homenagem ao “Marinheiro Anónimo Cabo-Verdiano”, que imortalizem na pedra a solidariedade poética expressa neste lamento angustiado de Jorge Barbosa no seu citado poema: “Ó cabo-verdiano humilde/ anónimo – meu irmão!”

FIM
  
(1) LEITHOLD, Theodor von. "Minha excursão ao Brasil ou viagem de Berlim até o Rio de Janeiro e volta". (Berlim, 1820). In O Rio de Janeiro visto por dois prussianos em 1819. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1966, pp. 98-99.         
                             

      

2 comentários:

  1. Algures num comentário a uma das crónicas oceano-adriânicas (já não sei em qual), escrevi "desamparim" com gralha e saiu "desampaim" e como não emendei logo, depois lá ficou. Trata-se da hora de lusco-fusco que nas ilhas se chama "hora d'desamparim".

    Braça desamparada,
    Djack

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  2. A literatura do Adriano tem que ser compilada. É um prazer ler o Adriano quando não temos o privilégio de discutir com ele pormenores de forma e de fundo na escrita. Adriano é meu Mestre, aprendi a escrever o bocadinho que transmito com ele. Incentivo o Adriano a investir mais nesta área pois tem muito para nos legar num momento em que temos um sentimento muito triste de orfandade em que estamos a perder as ligações com o passado do cabo Verde profundo que está a desaparecer nesta onda de selvajaria que o atravesse. Adriano devia tê-lo feito desde há pelo menos 20 anos.

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