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sexta-feira, 10 de abril de 2015

[7987] - BEIJANDO O DITADOR...

José Eduardo Agualusa
Passei o carnaval na ilha de São Vicente, no arquipélago de Cabo Verde. Mindelo, a pequena capital da ilha, é famosa pelo seu Entrudo. No continente africano a Cidade do Cabo, na África do Sul, organiza um carnaval antecipado, o Coon Carnival, no início de Janeiro, que mobiliza toda a numerosa comunidade mestiça da cidade. Luanda e Benguela, em Angola, e Quelimane, emMoçambique, também já foram famosas pelos carnavais exuberantes, na época colonial, e estão, pouco a pouco, a recuperá-los.

É possível mapear-se os territórios de mestiçagem euro-africana e a sua importância, em função da dimensão do carnaval. Mindelo, Luanda, Benguela, Cidade do Cabo e Quelimane são cidades mulatas. A diferença entre a primeira e as restantes é que a cidade do Mindelo está inserida num contexto de absoluta hegemonia crioula. Todo o país é mestiço. As outras quatro cidades africanas que referi atrás constituem ilhas de mestiçagem num vasto oceano ocupado por culturas de matriz banto. A convivência entre esta e aquelas não tem sido sempre pacífica ao longo da história. Os núcleos urbanos crioulizados, alguns deles desde há vários séculos (Luanda, por exemplo, foi fundada em 1576) tendem a ignorar, senão mesmo a desprezar, o universo rural. Este responde na mesma moeda.

No carnaval do Mindelo assisti a um curioso exemplo do estranhamento de África em relação a si mesma. Um dos grupos carnavalescos mais populares, mais dinâmicos e expressivos, é constituído por homens e crianças que se pintam de preto e saem para as ruas vestindo tangas, ornamentados com pulseiras e colares, e armados de falsas lanças e machados. São os “mandingas”, referência a uma das mais poderosas etnias da África Ocidental.

Em 1940, o regime de António de Oliveira Salazar organizou em Lisboa a grande Exposição do Mundo Português. Para o efeito trouxeram-se de África representantes de algumas das etnias mais representativas das colónias africanas. Essas pessoas foram exibidas em “aldeias africanas tradicionais”, como animais num enorme jardim zoológico. No regresso à Guiné-Bissau um grupo de mandingas terá passado pelo Mindelo, provocando certo alvoroço, e dando origem ao grupo carnavalesco com o mesmo nome. Temos então este bloco de negros e mulatos que se pintam de preto, de africanos que se mascaram de africanos, representando uma África arcaica e mítica destinada, no projecto original, a assombrar europeus.

Na presente releitura, aliás, continuam a espantar estrangeiros. Para o vulgar turista ocidental, incluindo os brasileiros, os “mandingas” são o grupo mais original de todos os que se apresentam no carnaval do Mindelo. Suponho que os achem mais genuínos (mais africanos), sendo os restantes vistos como “abrasileirados”. Ironicamente, o carnaval terá sido trazido para o Brasil, no início do século XVIII, por portugueses e escravos das ilhas da Madeira e de Cabo Verde.

O turista busca a diferença, e, nessa procura, legitima o que lhe parece autêntico. Tanto pior se aquilo que parece autêntico é uma representação mais ou menos falsificada ou imaginosa da realidade – que se dane a realidade!

Vemos o que queremos ver. Há alguns anos, quando o meu filho era pequeno, deu comigo a olhar para a fotografia de uma mulher belíssima, num comercial de perfume. A mulher estava estendida, nua, numa praia tropical: “Uau!” – Exclamou o menino. Estranhei o entusiasmo. Afinal, ele tinha apenas quatro anos. “Uau, filho?! Como uau?!” – “Uau!”, continuou ele: “Que cinto tão bonito! É um cinto de caubói.” Ele só vira o cinto. Eu só vira a mulher.

O recente triunfo da Beija-Flor ilustra bem esta visão selectiva, e a selectiva falsificação da realidade. Assistindo ao desfile da Beija-Flor, há quem só tenha visto a riqueza dos trajes, as cores das plumas, a profusão de máscaras africanas, a ala dos ancestrais celebrando as tradições de um pequeno país africano. Porém, olhando melhor, não há como não ver o cinto do caubói. No caso, o rosto crispado de um dos mais terríveis e corruptos ditadores do nosso tempo: Teodoro Obiang.

“O dinheiro não tem cor” – argumentam alguns: “o importante é que a festa foi bonita.” Errado. Uma coisa é aceitar apoio financeiro de Cabo Verde, Botswana ou Namíbia, para citar apenas três países africanos com democracias sólidas, outra é vender a alma ao diabo. Obiang está comprando consciências. O ditador da Guiné Equatorial já conseguiu que o seu regime fosse aceite na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, CPLP, generosa ideia do embaixador José Aparecido de Oliveira, entretanto muito aviltada. Agora quer mais. Hoje paga a festa, amanhã irá cobrar.
“Posso convidá-lo para jantá-lo?” – pergunta o lobo ao cordeiro. E o cordeiro vai.

O Globo [2015]

(Sugerido por Valdemar Pereira)

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