EDITORIAL |
Os últimos dias não foram bons para a democracia cabo-verdiana. Passou-se a ideia de que se pode governar a partir da rua. Uma lei do Parlamento aprovado por unanimidade dos deputados não mereceu do presidente da república nem 24 de horas de avaliação, ponderação e maturação. Na fundamentação do veto político o PR usou argumentos apresentados nas manifestações populares e nas redes sociais e concluiu que era necessária uma reavaliação do diploma pelos deputados. A pronta reacção das forças políticas representadas no Parlamento foi de abandonar o diploma aprovado e de se declararem indisponíveis para o reapreciar.
Em vários sectores da sociedade, muitos se regozijaram com esse inédito capitular dos órgãos representativos da república perante protestos de alguns milhares de pessoas e perante expressões de desacordo no Facebook, em comentários online e em opiniões nos órgãos de comunicação social. Realmente a rapidez e a facilidade com que todos se libertaram do diploma até podia fazer esquecer que para o aprovar foram precisos anos de negociações com participação activa da direcção dos grupos parlamentares e da chefia do governo. O próprio PR, dias antes da discussão e aprovação da lei, aceitou receber os líderes parlamentares para lhe serem apresentados os consensos conseguidos.
A crise que aflige o sistema político aparentemente tem origem na oposição da nova líder do PAICV a algumas normas do estatuto dos titulares de cargos políticos (ETCP). Uma oposição que estaria a colocá-la em rota de colisão com o grupo parlamentar do seu partido e com o próprio governo de que faz parte. Há, porém, um problema com essa ideia. Se há crise no Paicv não se vêem as consequências onde elas deviam se manifestar.
O líder parlamentar, apesar de discordar das orientações da líder do partido em matérias essenciais, não deixa o lugar como é prática generalizada nos regimes parlamentares. Nem a líder que também é ministra não deixa o governo mesmo quando o PM esteve claramente envolvido nas negociações do ETCP que merece publicamente a sua discordância. Durante toda a discussão e aprovação do diploma, o governo manteve-se em silêncio numa atitude de “quem cala, consente” e ela não compareceu aos trabalhos na AN para mostrar o seu desacordo e motivar eventuais apoiantes entre os deputados do Paicv. Apesar das diferenças serem públicas, nem há demissão da ministra nem o PM se disponibiliza a deixar o governo por falta de sintonia com a líder do partido que suporta o governo.
Por outro lado, com a maioria parlamentar e o governo aparentemente inamovíveis perante as demandas da líder do partido, estranha que não ocorra a ninguém ultrapassar o impasse na liderança e na bicefalia no exercício do poder com um congresso extraordinário que fizesse o partido outra vez uno à volta de um líder efectivo. Desconcertante também que ninguém se preocupe com isso mesmo quando forças populistas já se fazem sentir e se mostram passíveis de manipulação. Não são normais conflitos no centro de organizações sem que haja consequências ou um desfecho final. Quando apesar de tudo persistem é porque resultam de encenação ou de actos de ilusionismo com vista a atingir objectivos políticos muito concretos.
Um deles de há muito procurado por certos sectores políticos é o do descrédito do Parlamento e por arrastamento do sistema de partidos e do pluralismo. É relativamente fácil despertar sentimentos anti partidos e anti pluralismo numa sociedade que viveu mais de quarenta anos do Estado Novo de Salazar e depois quinze anos de partido único. Neste momento esse sentimento está ao rubro e certamente que acaba por afectar todas as instituições democráticas, ou pela via de hostilidade directa, ou pela forma como é aproveitado por quem se julga capaz de colher as paixões mobilizadas e torná-las em ganho político permanente.
O presidente da república é um alvo preferido. A natureza suprapartidária do cargo aparentemente fá-lo ideal para ser lançado contra os partidos. Esquece-se que ele não só não pertence aos partidos como também não deve ligar-se a qualquer outra organização. O grupo de cidadãos que o propôs não tem existência para além da eleição. O seu exercício de árbitro e moderador do sistema políticos é um exercício atento mas solitário e não pode dar a ideia de que se submete a pressões exteriores, muito menos a pressões vindas da rua.
Noutras democracias, o governo é o primeiro chamado à liça perante qualquer coisa, seja ela positiva ou negativa. Se em Cabo Verde acontecesse o mesmo, as anomalias no sistema de poder actual, entre o Paicv e as suas e expressões institucionais o governo e a maioria parlamentar seriam facilmente notadas. Mas aqui a tendência geral é não responsabilizar o governo mas sim os “políticos” e canalizar as exigências aos deputados como se tivessem poder executivo. Com tais interlocutores é relativamente fácil protestar mas os problemas do país que em geral dependem de políticas compreensivas do governo correm o risco de ficar por resolver. É a frustração que daí resulta é que depois dá lugar a populismos facilmente aproveitáveis por certos políticos.
Resistir à onda populista é fundamental. Também é essencial exigir que titulares de órgãos de soberania cumpram a sua função assim como projectado na Constituição e não caiam na tentação de elogiar a “rua” para ter ganhos políticos, sacrificando a função e as instituições existentes. Afinal, não há democracia fora da Constituição e muito menos contra ela”.
Percebe-se a intenção deste editorial e é louvável que tudo se faça para preservar o figurino legitimador do funcionamento da república e suas instituições. Só que os seus responsáveis e servidores têm estado a portar-se com um autismo e distanciamento do povo tais que este teve de acordar para dizer: - Alto e pára o baile!
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