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domingo, 21 de junho de 2015

[8236] - CABO VERDE - ENTRE DOIS MUNDOS...

José Almada Dias
Migrações, parcerias especiais e um país entre dois continentes!

Que significado prático tem o Acordo Especial com a União Europeia para o cidadão comum cabo-verdiano?
No passado dia 27 de Maio, dia de África, fui convidado pela Presidência da República para ser mediador numa conferência alusiva ao tema “A problemática da migração ilegal e suas implicações no contexto das relações África-União Europeia“. Como conferencistas aqui no Mindelo, Francisco Assis, deputado do Parlamento Europeu, e Onésimo Silveira, cientista político.
Aceitei o honroso convite e, perante uma plateia cheia, lá fui desempenhando o meu papel o melhor que pude. As duas intervenções estiveram à altura dos dois conferencistas. Onésimo Silveira fez um percurso pela sua atribulada vida, começando como fugitivo aqui desta baía do Porto Grande; descreveu as vivências como refugiado político e terminou contando a sua longa experiência de Comissário das Nações Unidas para os Refugiados em Angola, Moçambique e na Somália. Um relato que impressiona pela extraordinária memória do relator, que citou nomes e datas como se tudo aquilo tivesse acontecido na véspera. A mesma precisão levou-o a referir a condecoração dos atletas portugueses de origem africana, Francis Obikwelu e Nelson Évora, pelo Estado português, citando os nomes dos familiares de Nelson Évora que conheceu, e descrevendo a partida deles daqui da cidade do Mindelo onde residiam a caminho de Abidjan, onde nasceu o hoje campeão do mundo de triplo salto.
Impressionou-me igualmente o discurso extremamente humanista de Francisco Assis, um português da cidade do Porto, que se sentiu em casa aqui no Mindelo, e que referiu a sua ligação ao Mindelo, que fica perto do Porto, onde as tropas liberais desembarcaram em 1832 para libertar Portugal dos absolutistas. Por essa razão, e em homenagem a esse decisivo desembarque, a cidade do Mindelo de Cabo Verde viria a ser baptizada com esse nome sinónimo de liberdade. E talvez por isso este Mindelo seja uma cidade de liberdade, como referi na minha intervenção.
Francisco Assis assumiu na sua alocução que a Europa tem a obrigação de ter um papel mais activo na crise humanitária que se vive no Mediterrâneo, e que essa mesma Europa deve abrir mais as suas fronteiras ao mundo. Foi uma intervenção eloquente, de quem está habituado a estas lides e que sabe do que está a falar.
Seguiu-se um vivo debate, com uma assistência participativa, como é apanágio das gentes desta cidade. Eu próprio tive a ocasião de interpelar o eurodeputado convidado.
Comecei por lhe dizer que Cabo Verde é, na minha opinião, o somatório atlântico da Europa e de África e que, por isso mesmo, somos um país que vai muito para além da noção de um país africano (no fim, o nosso convidado concordaria, dizendo que Cabo Verde tem claramente uma dimensão europeia).
Cabo Verde é um país africano, opção que deriva da Independência a 5 de Julho de 1975. As ilhas Canárias também poderiam ser, caso tivessem tomado essa mesma opção, o que as faria mudar de continente. Até porque as Canárias possuem uma história que lhes dá uma ligação mais antiga com o continente africano e, para além disso, ficam a apenas 100 km de África, enquanto Cabo Verde dista cerca de 620 km do continente.
Sendo assim, Cabo Verde é um país em dois continentes. Seremos os únicos? As ilhas de Martinica ou de Guadalupe são geograficamente americanas, mas os seus cidadãos são franceses. São mestiços com origem europeia e africana, mas a grande distância a que se encontram do continente africano não os leva a dizer que são culturalmente africanos.
Mas voltemos ao debate e à questão central que coloquei a Francisco Assis. Ele tinha referido que Cabo Verde é visto na Europa como um exemplo de boa governação, de democracia, entre outras referências elogiosas, e terminou dizendo que o nosso país é o único em África que possui uma parceria especial com a União Europeia.Pegando nesse ponto, contei que precisamente há um ano integrei uma delegação cabo-verdiana chefiada pelo nosso Presidente da República que foi às Seychelles estudar a experiência desse pequeno país arquipelágico, africano e crioulo como nós – mas muito mais bem-sucedido a todos os níveis.
Como o meu visto Schengen estava expirado, tive que ir às pressas renová-lo, tendo que passar pela desagradável (leia-se humilhante) experiência de ter que esperar numa sala cheia de gente no novo Centro de Vistos da cidade da Praia, onde se emitem a granel vistos Schengen para todos os países da UE. Já nem ao conforto de ir à embaixada do país que se pretende visitar, temos direito. Será este um dos frutos da parceria especial?!
Mas tive que ir renovar o visto porque o trajecto até às Seychelles fazia com que parássemos 1 hora em Lisboa e 3-4 horas em Frankfurt! Ou seja, até para fazermos escalas em aeroportos da UE, nós, os cabo-verdianos, um povo que resulta da expansão europeia para os trópicos, temos que nos submeter à renovação de vistos, às filas nos aeroportos, etc., etc.
Então para que serve esta tão falada parceria especial com a UE, tantas vezes repetida pelos nossos governantes e mencionada pelo eurodeputado como se fosse uma recompensa ao nosso bem comportado país?
Fiz ver ao nosso interlocutor que, quando chegámos às Seychelles, já sabíamos que os cidadãos desse país estão isentos de vistos para qualquer país da UE, onde podem permanecer até 3 meses. Apetece perguntar:
O que é que os crioulos africanos seychellois têm que nós não temos?
Vejamos:
Cabo Verde foi o primeiro país fundado pelos europeus nos trópicos – para todos os efeitos somos o primeiro país crioulo e do Novo Mundo, se nos abstrairmos de precisões geográficas.
As Seychelles só foram povoadas cerca de 200 anos depois de nós. Significa que temos mais 200 anos de ligação histórica com a Europa, visto que ascendemos à independência de Portugal em 1975 e eles, da Grã-Bretanha, em 1976.
As Seychelles nunca tiveram uma cidade com a importância da Ribeira Grande de Santiago e não tiveram igualmente um porto com a importância do Porto Grande, isso falando do ponto de vista dos interesses europeus. Tudo o que foi migração para a África Austral e para a América Latina passou pelos portos de Cabo Verde. Aqui nesta cidade onde escrevo passavam todas as comunicações telefónicas entre a Europa e o Hemisfério Sul, através dos cabos submarinos.
Estamos a apenas 3h de voo da Europa (2h das Canárias), enquanto as Seychelles estão a 12h de voo das principais capitais europeias.
As Seychelles praticamente não possuem diáspora. Nós temos milhares de parentes verdianos em quase tudo o que é país europeu. E apesar de esta nossa diáspora ter trabalhado duramente para ajudar a construir essa mesma Europa, eles não podem ser visitados pelos seus parentes aqui das ilhas.
Nós ficamos com a fama de termos uma parceria especial e os nossos primos crioulos do lado de lá de África ficam com o proveito.
Por que razão esta descriminação aparentemente tão injusta? Será porque não falamos inglês ou francês, mas sim português?
Mas os brasileiros são independentes de Portugal desde 1822, e também estão isentos de vistos para a UE!
Ou será pelo facto de termos esta relativa liberdade de circulação de pessoas com os países da CEDEAO, que podem usar Cabo Verde como trampolim para migrar ilegalmente para a Europa?
Aqui há realmente uma diferença, visto que os nossos pragmáticos primos das Seychelles e das Maurícias nunca permitiram a entrada nem circulação, mesmo que temporária, aos habitantes dos países africanos seus vizinhos.
Vamos admitir que seja esse o problema. Nesse particular, uma vez que ligação à CEDEAO nos foi imposta num período ditatorial, agora que somos um país tão democrático, porque não perguntamos aos cidadãos nacionais o que preferem? Circular livremente na CEDEAO ou na UE?
Seria um bom tema para nos estrearmos na utilização desse dispositivo constitucional chamado referendo.
O eurodeputado Francisco Assis disse que desconhecia essa questão da isenção de vistos para os crioulos das Seychelles e das Maurícias e prometeu ir investigar o assunto.
Ficamos à espera, amigo Francisco, e sobretudo gostaríamos que nos visitasse novamente para termos a oportunidade de debater esse e outros assuntos.
Entretanto, reforço o recado que lhe incumbi de enviar aos seus colegas do Parlamento Europeu: este pequeno país fundado pelos europeus tem todas as condições para ser o resort atlântico da Europa, particularmente para os reformados europeus que aqui podem vir passar os seus anos dourados num “paraíso” onde se sentem culturalmente em casa e que foi abençoado com um dos melhores climas do mundo.
Quanto aos vistos, a Europa está a ficar velha e precisa da nossa juventude. É só uma questão de tempo para perceberem isso. (in E.I.)

1 comentário:

  1. Este rapaz traz uma carga de dignidade nos seus escritos. Filho do nosso Manuel Dias, vizinho e menino da Rua de Côco, sinto um enorme prazer em ler os seus artigos. Ele me permite facilmente viajar na historia da minha ilha e das familias modestas e dignas da rua de Côco. Estudioso, universitario aplicado, pertence a uma nova geraçao de pensadores caboverdianos engajados na reescrita duma nova historia de Cabo Verde. As suas propostas são excelentes e espero que outros venhamc a enriquecer ocebate historico e politico sobre o futuro de Cabo Verde.
    Luiz Silva

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