José Fortes Lopes |
Cabo Verde, os 40 anos da independência:
As vicissitudes de uma condição arquipelágica e colonial
Este artigo enquadra-se na série de vários que publiquei no início de 2015 intitulados Cabo Verde, 40 anos após a Independência, publicados no blogue ArrozCatum e também no facebook. Embora ele estivesse quase terminado, em virtude das minhas diversas ocupações tive de suspender a sua publicação para ter mais recuo em relação a acontecimentos que sobreviessem, mas com intenção de não deixar de concluir a série antes da comemoração dos 40 anos da Independência de Cabo Verde.
Tenho procurado compreender as razões dos problemas por que atravessam a sociedade mindelense e cabo-verdiana contemporâneas, saber como foi possível o actual atoleiro a que assistimos. Quando nos encontramos numa ilha como S Vicente nos perguntamos como é que foi possível a uma sociedade tão activa e dinâmica, tão independente, chegar um tal nível descaracterização e de degradação sociocultural e mesmo indigência intelectual e humana, não obstante o crescimento económico e a melhoria dos indicadores económicos e dos indícios de desenvolvimento humano, como confirmam as estatísticas apresentadas e projectadas pelas autoridades? É claro que as raízes do mal são profundas, mas outros melhor do que eu conseguem ir beber na história do povoamento da colonização das ilhas, do passado da escravatura, do passado colonial, etc, para explicar a situação actual. Não sendo sociólogo nem historiador, circunscrevo a minha reflexão ao período da minha vida, à luz da minha própria experiência e sensibilidade.
Cabo Verde há 40 anos era uma colónia de Portugal que apresentava elevados índices de pobreza, ao mesmo tempo elevados índices de educação e escolaridade, contando com uma quantidade apreciável de quadros (numa proporção incomparavelmente elevada face aos ‘standards’ africanos), que desempenhavam um papel relevante na administração colonial portuguesa, tanto na metrópole como no seu vasto território ultramarino. Neste aspecto, não será correcto pretender que se partiu do zero em matéria educacional, como alguns niilistas do passado pretendem: foi o próprio regime do PAIGC que afirmava que a maior riqueza de Cabo Verde eram os seus recursos humanos.
Sendo o arquipélago um território saheliano, cujo clima é caracterizado por uma situação de seca permanente, e sem recursos, para além dos hipotéticos humanos, o investimento massivo e a fixação de populações em sectores produtivos nunca foi fácil, nem uma grande preocupação da potência administrante ou colonial, nem tão pouco, verdade seja dita, uma possibilidade facilmente exequível. Que o digam os sucessivos regimes que governaram nos 40 anos de independência e que ainda não encontraram uma via para uma verdadeira economia…!
É um facto hoje reconhecido até mesmo nos círculos portugueses mais conservadores, que Portugal negligenciou por demais esta colónia, quando ela sempre lhe fora ‘fiel’ (mesmo os sectores cabo-verdianos mais nacionalistas), tanto mais que ela sempre produziu braços e cabeças que ajudaram e apoiaram na construção e administração do seu vasto império colonial. A percepção crescente das elites locais de uma situação de abandono do território colonial por parte das autoridades de Lisboa, levou a insistentes reclamações e protestos oriundos dos quatro cantos do arquipélago e que se faziam chegar até à capital do império, culminando no pedido de abolição do indigno estatuto colonial para Cabo Verde e a passagem imediata para uma situação de autonomia/adjacência, similar ao estatuto dos arquipélagos dos Açores ou da Madeira. Graças ao influente e respeitado deputado Adriano Duarte Silva, este apelo, ao qual Lisboa fez inicialmente ouvidos moucos, acabaria por chegar ao parlamento português, e o estatuto da colónia começou a ser reconsiderado, e quando tudo apontava para a sua revisão, deu-se uma reviravolta nas vontades de Lisboa: a decisão terá sido protelada no seguimento dos acontecimentos que ocorriam nos territórios africanos sob administração portuguesa, e que espoletariam no início dos anos 60 as sublevações nacionalistas precursoras da chamada guerra colonial. Lisboa passava para a política de mão de ferro e atribuía a Cabo Verde um estatuto de província ultramarina. Entretanto, em 1961 morria Adriano Duarte Silva, e com ele silenciava-se uma importante voz de Cabo Verde.
Embora pobre, um facto é que, contrariamente à propaganda negativa que sempre pintou de maneira miserabilística, o arquipélago de Cabo Verde, a colónia, em geral, pagava a sua cabeça, ou seja autofinanciava-se, pelo menos em termos contabilísticos: os proveitos da presença britânica revertiam-se em lucros para os cofres de Lisboa. Por outro lado, embora o território fosse essencialmente administrado por cabo-verdianos, as vicissitudes do sistema colonial português, associadas às debilidades e carências existentes no arquipélago, impediram o progresso e a fixação consistente de populações, nomeadamente uma parte activa das elites do arquipélago, levando a uma permanente emigração de recursos humanos. Esta situação prejudicou economicamente e politicamente o arquipélago com repercussões futuras. Do arquipélago seguiam muitas vezes a contragosto para partes do império português, nomeadamente Guiné, Angola e Moçambique, levas de quadros da administração local, ao mesmo tempo que trabalhadores braçais procuravam no estrangeiro o seu ganha-pão. Por outro lado, muitos dos que se formavam em Lisboa ou para ali se deslocavam acabavam por residir permanentemente. Com o anúncio do fim da presença britânica, a partir dos anos 50 do século passado, a inquietação cresceu em S. Vicente e dava origem a um novo surto de emigração para a Europa rica e para as colónias, que correspondia a uma importante e lenta hemorragia humana, mas sem o que muitos estariam condenados à fome ou a malnutrição. A tragédia da emigração sempre perseguiu Cabo Verde em função dos ciclos económicos e das vicissitudes do clima. E mesmo assim, e apesar de tudo, é de realçar a resiliência de uma elite pujante em S Vicente, o único centro urbano minimamente estruturado, graças à presença britânica e ao cosmopolitismo por ela induzido. A ilha convertera-se num ponto nevrálgico para comunicações marítimas do vasto império britânico, assim como para o abastecimento da frota britânica no atlântico. Os novos desígnios da ilha, mercê da sua localização geográfica e do seu porto, permitiram que paulatinamente em todo o arquipélago se apercebesse dos ventos da modernidade e dos novos tempos de liberdade que permitiriam a saída da ‘longa noite colonial’. É assim que a sua economia transitava da exploração do tráfego transatlântico de escravos para uma economia liberal, atraindo insulares e populações oriundos de diversas parte do mundo. Mindelo atraía estrangeiros e cabo-verdianos de todas as ilhas e condições sociais.
Com o caos instalado em Portugal nos finais da monarquia, a colónia recomeçou a estagnar-se e a enfraquecer-se do ponto de vista social e económico: após um período de franca expansão económica e de progresso provocados pela presença britânica, o advento nos anos 20 do século passado do Estado Novo, um regime conservador e nacionalista, chegou na pior altura, quando o arquipélago começava um novo rumo, mais liberal e mais independente de Lisboa. Para além disso, o facto de Lisboa ter endurecido a ideologia e a política colonial de Portugal, num claro retrocesso em relação à monarquia, constituiu um golpe que foi fatal para o renascimento de Cabo Verde que se operava em S. Vicente. Um dos aspectos mais gritantes desta nova política foi a tentativa, em vão, de encerramento, em 1937, do Liceu instalado em S. Vicente, que surgira duas décadas antes graças à iniciativa do digníssimo e respeitado deputado e Senador Vera Cruz. Recorde-se que anteriormente o Seminário de S. Nicolau jogava este papel de escola secundária e liceu: os padres administravam um ensino de qualidade para os filhos da elite cabo-verdiana. Para uma cidade como Mindelo, que, embora pacata, já se julgava com pergaminhos de uma urbe importante, esta situação era indigna e inaceitável. Lisboa cedeu graças às pressões da elite mindelense. Outro acto indigno foi a instauração do estatuto de indigenato, que entretanto nunca foi implementado em Cabo Verde, mas que pôs a elite cabo-verdiana em polvorosa e mesmo em dissidência com Lisboa. Cabo Verde, pelas suas características de um território povoado com populações vindas de fora, não tinha, por definição, indígenas, pelo menos, na acepção colonial do termo. A miscigenação social e étnica, produzida ao longo de séculos e com o fim da escravatura, estilhaçaram as amarras do velho mundo colonial existente no arquipélago. Os preconceitos de Lisboa e a sua visão colonial uniforme do império chocavam e desajustavam-se à realidade sociológica no arquipélago. É na rebelde Mindelo, que a maior parte da população cosmopolita e instruída se sentia completamente livre. Neste aspecto, a consciência de um estatuto social da parte de cidadãos que em nada se consideravam inferiores aos metropolitanos, e muitos deles até súbditos da sua Majestade Britânica (jogavam golfe, bebiam o chá das 16 horas, jogavam golfe na peladinha e brindavam com a elite britânica), e a proposta indigna de estatuto do indigenato para os naturais das colónias ou pessoas não consideradas assimiladas a metropolitanas, que incluía implicitamente os cabo-verdianos, era algo inconcebível e tido mesmo como uma provocação inaceitável. Para além disso, como poderiam num arquipélago como Cabo Verde que atingira níveis incomparáveis de ‘civilização’, discriminar indígenas e civilizados, se todos os cabo-verdianos, até os que viviam nos funcos, se consideravam civilizados, e católicos. Amílcar Cabral não podia encontrar melhor sítio para completar a sua formação e educação (ver Nota).
Por outro lado, S. Vicente liberalizava-se em contacto com os britânicos, por demais aos olhos conservadores de Lisboa, tendo sido transportado para a ilha algumas estruturas sociais tipicamente anglo-saxónicas: clubes, grémios, associações, diversas modalidades e práticas desportivas, sindicatos, práticas laborais liberais, a religião protestante e um maior liberalismo na mentalidade e na conduta. O arquipélago afrouxava as suas referências católicas e liberalizava-se demais aos olhos de Lisboa (ver a história do Coronel Mota Carmo no Mindelo dos anos 40, um militar que entrou em rota de colisão com a elite mindelense, contada por Adriano Lima em Bibliografia), e era preciso aumentar a vigilância. Lisboa despachou a PIDE para atarraxar o arquipélago. Foi a pior asneira.
Assim, para além da situação política anticolonial e no meio das recriminações em relação a Lisboa, criava-se um ambiente propício ao aparecimento de germes antagónicos à presença portuguesa e o nativismo reforçava-se. Para que lado penderia o arquipélago logo se verá!
Nota: É neste caldo de ‘educação’, cultura, intelectualidade, irreverência e liberdade que vem beber o jovem Amílcar Cabral, oriundo da Guiné, que é trazido para Mindelo nos anos 30 a fim de completar a sua formação secundária no Liceu Gil Eanes, em S. Vicente. Não é especular demais afirmar que a sua passagem por este Mindelo cosmopolita, foi determinante para a sua formação e a constituição de uma visão futura de homem livre, que era comungada por todos os cidadãos desta urbe. Com efeito, em S. Vicente encontrou um ambiente nos antípodas de Bissau ou Bafatá.
Bibliografia:
1-http://arrozcatum.blogspot.pt/2015/04/8049-poeira-dos-tempos.html
2-http://arrozcatum.blogspot.pt/2015/04/8053-poeira-dos-tempos.html
3-http://arrozcatum.blogspot.pt/2015/04/8057-poeira-dos-tempos.html
4-http://arrozcatum.blogspot.pt/2015/04/8069-poeira-dos-tempos.html
5-http://arrozcatum.blogspot.pt/2015/04/8063-poeira-dos-tempos.html
6-http://arrozcatum.blogspot.pt/2015/04/8073-poeira-dos-tempos.html
7-http://arrozcatum.blogspot.pt/2015/04/8078-poeira-dos-tempos.html
8-http://arrozcatum.blogspot.pt/2015/04/8083-poeira-dos-tempos.html
9-http://arrozcatum.blogspot.pt/2015/05/8115-poeira-do-tempo.html
Excelente! Haja ouvidos que oiçam e olhos que leiam!
ResponderEliminarBraça satisfeita,
Djack
Muito elucidativo. É um facto que Mindelo foi sempre o cadinho onde são "cozinhadas" as mudanças em CV.
ResponderEliminarMatrixx
A Independência não se oferece: conquista-se. A sua evoluçao como dizia Frantz Fanon é sempre violênta e homem casos já aqui citados. E' justo aqui citar a decisão do povo de Cabo Verde e em especial do Mindelo nas campanhs para a Independecia tendo em conta a rejeiçao dos apelos sucessivos de varias geraçoes de Eugénio Tavares a Adriano Duarte e mesmo do Amilcar Cabral para a autonomia ou adjacência. Eu imigrei em 1968 por já não estar convecndio da evoluçao do modelo colonial português. Aliàs como dizia a Balta era a Pide com as suas praticas abusivas que politizava os cabo-verdianos.Foi por isso que o povo não esperou pela chegada dos combatentes cabo-verdianos da Guiné para assumir a sua decisão de independência O passado é o passado e agora interessa fazer o balanço dos quarenta de Cabo Verde independente sob a gestão dos seus proprios filhos. Houve coisas boas como no ensino mas estrangula-nos ainda saber que os cabo-verdianos condenados às roças de São Tomé, embora a propaganda lá continuam a sofrer como no tempo colonial. Devemos continuar para uma gestão mais justa e mais solidaria do Arquipélago sem a qual carregaremos sempre uma fardo de frustraçao pela nossa adeão à luta pela Independencia sagrada.
ResponderEliminarLuiz Silva
corrijo: "Aliàs como dizia Nhô Balta ( um dos mais ilustres filhos de Cabo Verde).
ResponderEliminarLuiz Silva
A História aconteceu como aconteceu, e disso nos promete dar conta o José Lopes com sentido analítico e necessariamente crítico. A História não se apaga, mas pode ser objecto de reinterpretação com vista a colher ensinamentos e lições que nos habilitem a olhar para o futuro. Estaremos mais maduros e mais providos de ciência se olharmos para o futuro com a noção de que aprendemos algo com os erros cometidos.
ResponderEliminar