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segunda-feira, 21 de setembro de 2015

[8474] - O MUNDO DO PÓS-COMUNISMO...

Cabo Verde 40 anos depois da Revolução e 25 anos após a queda do Muro de Berlim

O livro de Paul Hollander The End of Commitment (O Fim do Compromisso: Intelectuais, revolucionários e moralidade política) (8) é um livro de referência que descreve o fim das utopias e dos engajamentos políticos que resultaram nas maiores desilusões do século XX. O escopo da investigação de Hollander são as fontes e a natureza da desilusão com os regimes de inspiração marxista-leninista, “quando os crentes políticos desta ideologia que se aparentou a uma religião concluem que as suas crenças e compromissos já não merecem o seu apoio e dedicação, que os fins pretendidos são irrealizáveis e os meios usados na sua procura são inaceitáveis e moralmente imperfeitos” (9). O fim do compromisso, segundo Hollander, está relacionado com a “capacidade variável (do indivíduo) de tolerar ou recusar determinadas acções políticas ou transgressões morais”. O limiar moral de cada indivíduo é o que configura, ou a depender do caso, determina, o relacionamento entre as crenças políticas, as respectivas finalidades e os critérios morais pessoais. O livro é um alerta contra a ideia da perfeição do ser humano ou da possibilidade de aperfeiçoá-lo, assim como a completa inviabilidade de projectos políticos baseados nesse princípio e que contemplem transformações sociais radicais conduzidas por um poder concentrado (iluminado e ilimitado) e sem oposição. Eminentes intelectuais e políticos de esquerda de renome mundial (comunistas, socialistas, trotskistas, sociais-democratas etc) são objeto de investigação na obra de Hollander. Alguns revelam a capacidade ilimitada do ser humano de fantasiar e se enganar para preservar as crenças e ilusões tenebrosas, como aqueles que emulam a falácia da compaixão; outros demonstram que é possível romper com o compromisso e abandonar as utopias que alicerçam e legitimam a construção de um futuro suposta e delirantemente perfeito. Todos os crentes políticos apresentados no livro, segundo o padrão revelado pelo estudo de Hollander, sofreram, todavia, uma dolorosa, hesitante e gradual experiência de desilusão política porque suas ilusões eram profundamente pessoais e comparadas à fé religiosa. A obra de Hollander também aponta a mentalidade religiosa como uma semelhança entre os crentes das utopias e de engenharia social revolucionária e de outras formas de radicalismo. Hollander faz a ressalva de que a substância dessas crenças é muito diferente, mas há aí um equívoco se considerarmos que a mentalidade religiosa, a estrutura lógico-estructural dessa mentalidade, é a mesma substância do modo de pensar e agir dos revolucionários ou utópicos. “Apesar de ateia, a nossa época é o completo oposto da ausência de religião”, notou Eric Hoffer (9). Os notáveis estudos de Norman Cohn (The pursuit of the Millennium) e Thomas Molnar (Utopia: the Perennnial Heresy) (9) mostram as raízes religiosas dos movimentos revolucionários de que o comunismo, ou a esquerda radical (1), são os mais poderosos representantes. Crer de forma resoluta na política de perfeição, a capacidade da política em redimir ou aperfeiçoar o ser humano, não importa quais os meios e instrumentos políticos usados para tal empreendimento (mesmo os mais criminosos e repudiantes) é uma característica essencial dos utópicos e/ou revolucionários. Michael Oakeshott, em The Politics of Faith & the Politics of Scepticism (3), chamou de política de fé a acção do poder central que tenha por objectivo a perfeição da humanidade. Segundo Jacques Derrida “(…) todos os homens e mulheres, no planeta inteiro, são hoje, até um certo ponto, herdeiros de Marx e do marxismo, herdeiros da absoluta singularidade do projecto ¾ ou de uma promessa. (…) A forma desta promessa, ou deste projecto, continua a ser absolutamente única. (…) Uma promessa messiânica, mesmo que não tenha sido cumprida (…) terá imprimido uma marca inaugural e única na história. O famoso intelectual e historiador de esquerda Eric Hobsbawm (9) viu o fim do comunismo como uma tragédia, pois considerava que com ele deixavam de existir alternativas válidas, no sentido da criação de uma sociedade mais justa e igualitária. Não escondeu, também, que o comunismo tinha sido uma das principais trincheiras de combate aos totalitarismos fascistas e ao capitalismo em geral. Todavia, embora democrata, humanista e anti-estalinista, chegou a defender o indefensável: numa entrevista nos anos 90, que foi considerado uma “gafe monumental” ou uma provocação de intelectual, chocou leitores, críticos e colegas, ao alegar que o assassinato de dezenas de milhões de seres humanos, orquestrado por Estaline na União Soviética (7,8,9) teria valido a pena se dele tivesse resultado uma “genuína sociedade socialista/ comunista“. Imaginem o paradoxo a que se chega quando se identifica uma ideologia a uma crença religiosa, em que todos os fins justificam os meios. O raciocínio teórico de Hobsbawm peca, pois as pessoas não são números, e o assassinato de uma única pessoa para se atingir seja qual for objectivo ou ideal político, é já por si moralmente condenável. Giorgy Lukács (9), na mesma linha de amor incondicional pela humanidade, cunhou um lema exemplar: “mesmo o pior socialismo é melhor do que o melhor capitalismo”, a ponto de se questionar se a actual Coreia do Norte seria um paraíso comparado com a Suécia, a França ou a Suíça.

O historiador Marc Mazower (10) considera que “o impacto do comunismo nas democracias ocidentais — por muito importante que tenha sido – foi em geral mais indirecto e menos ameaçador do que o desafio representado por Hitler”. De resto, as mais delirantes teorias conspirativas actuais, oriundas de círculos anti-semitas ou esquerdistas (11), defendem que o comunismo e o nacional-socialismo (o nazismo alemão) foram criados e financiados pelos mesmos mestres do capitalismo de Wall Street e da City de Londres, com um único objectivo: manipulação e controle do mundo.

O filósofo francês de extrema-esquerda moderna, Alain Badiou (12), que se considera um post-marxista ou “marxiano”, ou seja um marxista puro e post-estalinista, limpo das utopias do século XX, defende hoje que o “socialismo” autêntico, moderno, não tem nada a ver com a história do “ socialismo “ século XX, este reduzido às derivas autocráticas estalinistas. Defende que o “socialismo” autêntico pode hoje ser re-calibrado à medida do século XXI em toda a sua profundeza e grandeza histórica. São esses alguns exemplos de intelectuais que resistiram à desilusão, embora a actual crise do capitalismo, ou crise financeira mundial (nomeadamente europeia) veio a revelar uma nova vaga de esquerda. Perspectiva-se, assim, o ressurgimento de tendências à esquerda dos partidos socialistas e social-democrata europeus, o que poderá definir uma 3ª ou 4ª via para socialismo do Séc. XXI, compatíveis com os valores da democracia-social e da economia do mercado. Esta via está sendo encarnada pelo Siriza de Tsipras, o Podemos na Espanha, o Bloco de Esquerda em Portugal, o  Parti de Gauche de Jean-Luc Mélenchon en França, assim como por uma miríade de partidos ecologistas mundiais, denominados Verdes, etc. A dúvida que se coloca é se esses partidos, muito afastados dos círculos do poder, se são partidos utópicos ultrapassados ou se são novos partidos de esquerda, representando uma esquerda moderna e alternativa com projectos concretos e viáveis. A crítica ao actual sistema capitalista mundial, nomeadamente às derivas do capitalismo post-moderno, à mundialização e ao ‘libre-échangisme’, ao ‘liberalismo de casino’, à especulação bolsista, etc, por si só não constituem políticas alternativas. O livro “O Livro Politicamente Incorreto da Esquerda e do Socialismo” do democrata e neo-liberal norte-americano Kevin D. Williamson, próximo do Presidente Obama (13, 14, 15), é uma pedrada no charco da esquerda pos-moderna e maniqueísta, ao levantar muitas dúvidas sobre as questões de natureza económica e social no socialismo moderno e as soluções alternativas ao capitalismo que estes partidos de esquerda propõem. O brasileiro Carlos Pompe (16) considera o livro um autêntico “brulot” anti-socialista: “Não contente com a produção nacional – aliás, volumosa, mas medíocre – anticomunista, a classe dominante brasileira lança, este mês, mais um panfleto para atacar os que lutam por uma sociedade fraterna e justa. O título é modernoso, ao estilo de certo tipo de humor de tendência fascista que tem dominado a mídia oligopolista, mas o conteúdo é velho de quase dois séculos (considerando que o termo “socialismo”, designando a luta por uma sociedade socialmente justa, foi usado por Pierre Lerous na década de 1830): o combate às propostas socialistas, desvirtuando seus conteúdos. O autor, que é periodiqueiro da National Review, um semanário que se opõe ao presidente Barak Obama pela direita, escreve no livro: “O calcanhar de Aquiles do socialismo é que a organização política de determinada atividade não elimina de fato os riscos nem os reduz de modo confiável e previsível”. Ora, quando os socialistas afirmaram que construção do socialismo elimina riscos, pelo contrário, o planejamento econômico socialista objetiva enfrentar desafios e garantir desenvolvimento com justiça social, preparando o terreno para a sociedade sem classes, e é constantemente revisto justamente por causa dos riscos que possam ocorrer e dos novos desafios que sempre surgem. Para Williamson, o fervor revolucionário seria um mero disfarce ao apego à comodidade. Um contrassenso, pois fervor revolucionário é ação, exatamente o oposto da comodidade. Ele repete a ladainha de que o socialismo é militarista e só beneficia os detentores do poder e desinforma: “O defeituoso sistema de escolas públicas não garante que os estudantes pobres e pertencentes às minorias escaparão de um fardo que os deixará em desvantagem por toda a vida: ter recebido uma educação de baixa qualidade a um custo exorbitante”. Isso é desconhecer totalmente a inclusão social e educacional que a China, por exemplo, realiza. É ignorar, para citar um exemplo que nos é caro no momento, a excelência de qualidade da formação dos médicos cubanos. Ignorar, não; esconder, fraudar, pois é no capitalismo que as escolas públicas perdem em qualidade diante de algumas escolas particulares. É no capitalismo que a educação – aliás, como todas as atividades humanas – é tratada como mera mercadoria. Mas essa ladainha é velha, e sequer consegue ter sabor pós-moderno, como tenta o escriba ianque. A indigência teórica desse tipo de anticomunismo é antiga. Leandro Konder, no livro “Em torno de Marx”, apresenta um levantamento dessa literatura, no Brasil, na primeira metade do século passado, em especial depois de vitoriosa a Revolução Russa de 1917. Conta ele que, em 1936, Ramos de Oliveira, em “Aspectos sociais sob dois prismas”, comparou o marxismo ao catolicismo e concluiu pela óbvia superioridade do segundo, uma vez que o primeiro foi elaborado por um homem (Karl Marx) “absolutamente inapto para ganhar a vida” e levado à prática por outro (Lenin) que “não era muito dedicado ao trabalho”.”

Com a queda do Muro de Berlim acabou-se a divisão artificial do Mundo em dois blocos, herdada da Guerra Fria. O 3º Mundo tirou partido desta divisão através de um Não-Alinhamento oportuno e por vezes oportunista, que jogava com os dois blocos no sentido de estes investirem a fundo perdido, tanto politicamente como financeiramente, nos países (logo nos regime), independentemente das suas naturezas (criminosas ou não). Neste jogo político, com mais cinismo do que ingenuidade, o único objectivo era enviesar o suposto não-alinhamento, para que ambas as partes tirassem benefícios políticos no xadrez mundial. Muitos destes países seguiram a via estalinista e implantaram ditaduras de partido único, em tudo similares à União Soviética de Estaline ou à China de Mao. A Cambodja de Pol Pot foi o exemplo paradigmático de uma mais radical e trágica aventura política do Séc. XX, consubstanciada na utopia da regeneração do Homem Novo nos campos de reeducação ou campos extermínio. Com o fim da divisão do Mundo, muitos destes países tiveram que se abrir à pressa, pois as pressões internas e externas tornavam-se insuportáveis, o que engendrou democracias improvisadas e imaturas, ao passo que outros ficaram à deriva e entregues a máfias nacionais e internacionais. Os 60 anos de regime de partido único no 3º Mundo pós-independências desembocaram em Democracias Formais e incipientes, e situações complexas de marasmo económico, político e social. Os sistemas políticos actuais nestes países são, hoje, em geral, dirigidos por formações partidárias heterodoxas, em tudo similares aos partidos únicos, ainda imbuídos de sistemas de pensamento único, onde gravitam elites novo-ricas de baixa qualidade política, moral e intelectual. O balanço humano e económico dos sacrifícios consentidos pelas revoluções e a aplicação dogmática/sectária das diferentes utopias do Séc. XX está ainda por fazer. (continua)

[In Cabo Verde 40 anos após a Independência: Reflexões e Balanço Final]

José Fortes Lopes | jose.flopes@netcabo.pt

(in O Liberal)

 Referências bibliográficas

8 – Paul Hollander, O Fim do Compromisso. Intelectuais, revolucionários e moralidade política. Tradução de Virgílio Viseu. Pedra da Lua, 480 págs. [Publicado originalmente na revista LER de Maio]
9 – http://www.brunogarschagen.com/2011/09/desilusao-utopia-e-o-fim-do-compromisso.h
10 – http://thoth3126.com.br/nazismo-e-comunismo-ambos-manipulados-pela-elite-capitalista/
11 – http://clioensinobasico.blogspot.pt/2015/04/o-continente-das-trevas-o-seculo-xx-na.html
12 – https://fr.wikipedia.org/wiki/Alain_Badiou
13 – http://www.amazon.com/politicamente-incorreto-esquerda-socialismo-Portuguese-ebook/dp/B00J5ITZZ4
14 – https://books.google.pt/books?
15 – http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/historia/o-livro-politicamente-incorreto-da-esquerda-e-do-socialismo/
16 – http://vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=5565&id_coluna=   

1 comentário:

  1. Esta reflexão do Professor José Lopes vai ao fundo dos acontecimentos da história contemporânea e da fenomenologia social do século XX. Embora pequenino e insignificante como Estado, Cabo Verde sente no tempo imediato, e com particular agudeza, os impulsos e as tendências deste mundo efervescente. As marés formadas no epicentro dos acontecimentos podem chegar-lhe já na fase derradeira do seu movimento, mas chegam e por vezes os seus efeitos são até mais destrutivos do que poderia supor-se, exactamente por causa da sua grande fragilidade. Por isso, quem governa este micro Estado tem de ter a vista bem apurada e os ouvidos bem afinados, para poder obedecer às orientações de quem viabiliza a nossa ilusão de independência nacional. Ou seja, tem de ter juízo e ser bem comportadinho

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