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terça-feira, 6 de outubro de 2015

[8522] - ERA UMA VEZ, ANGOLA...(54)


Este episódio do belíssimo exemplar leonino ainda hoje me deixa um tanto perplexo,  pois uma pessoa não está preparada para, em plena selva africana, longe de tudo e de todos, escutar um comentário de tal delicadeza estética de onde menos se poderia esperar...Subiu na escala da minha consideração o robusto beirão que, a meu lado voltara a assobiar algo que o ruído do motor do potente camião não permitia identificar...
Começava a escurecer e, subitamente, fomos surpreendidos pelo aparecimento, no fim de uma curva de que nos aproximávamos, dos faróis de uma carrinha de caixa fechada...Abrandámos até parar e, quando o outro veículo parou ao nosso lado, ouvimos o condutor - que por acaso era uma condutora - bradar, por sobre o rugido dos  motores, que a ponte tinha ruído de novo e que só estavam a passar algumas pessoas,  numa jangada improvisada pelos homens da engenharia militar...Ela estava a regressar pois transportava mercadoria perecível que necessitava ser devolvida aos frigoríficos...Informou que, dos 18 camiões que compunham a nossa coluna, ainda tinham conseguido passar 12, estando os restantes 6 parados na berma, juntamente com mais 5 veículos, desde "jeeps" até uma ambulância que, felizmente, não transportava nenhum  doente...Ao friozinho da noite que se aproximava juntou-se o gelo da minha desilusão, pois já estava a adivinhar uma noite de insónia enfiado num saco-cama debaixo do camião...Felizmente, a chuva tinha cessado por completo e quando parámos, atrás do ultimo veículo da extensa fila,
já se sentia o aroma do café-de-brasa que alguém já tinha preparado para a malta aquecer os ossos...Como já estava muito escuro, a travessia com recurso à jangada estava suspensa até ao raiar do sol do dia seguinte. Na clareira junto à margem do rio já havia meia-dúzia de fogueiras acesas e o cheiro a ovos mexidos com salsichas começava a inundar o ar, onde já pairava o som das vozes de uma vintena de pessoas, das quais duas mulheres, uma garota dos seus 15 anos e um bebé de colo que só se calava  quando conseguiu abocanhar um dos mamilos da mãe, uma mulata de boas dimensões corporais e úberes volumosos...Só a cerveja quente, afinal, era desagradável para alem do facto de um primeiro-sargento, antes de os militares se terem recolhido ao seu acampamento me ter confidenciado que, no dia seguinte eu, na qualidade de funcionário administrativo, sería passageiro preferencial da jangada de bidões, juntamente com as mulheres e o bebé-chorão...
Afinal, a noite não foi tão dificil quanto eu antecipara talvez porque a dose reforçada de bagaço com que tinha acompanhado o café me terá concedido uma ajuda extra para penetrar no reino de Morfeu...Um tanto enjoado mas entusiasmado com a perspectiva de poder prosseguir viagem, acendi o primeiro cigarro do dia - um vício ao qual, 50 anos mais tarde, começaria a pagar juros altíssimos...
A jangada improvisada constava de oito tambores vazios, firmemente amarrados a uma série de pranchas de madeira branca e tendo, a meio, uma espécie de corrimão a que os passageiros se seguravam...Claro que a coisa não era totalmente isenta de riscos, apesar de a travessia se fazer muito lentamente, com a ajuda de dois cabos de aço esticados entre as margens manobrados pelas mãos possantes de quatro soldados negros, enormes e desmesuradamente musculados, como estátuas de ébano...
Amarrei a pega da minha pequena mala e a minha cintura ao tal corrimão e com a minha carabina BSA calibre 22.long a tiracolo e a máquina fotográfica ao pescoço, despedi-me, calorosamente do Clementino e do 1º sargento (Gaspar) e acompanhado de duas mulheres, uma moça e um bebé que, inexplicavelmente, dormia pendurado na morenaça da mãe, suspirei profundamente e, com o estômago encostado à garganta senti os primeiros balanços da nossa plataforma flutuante...Olhando, de olhos semi-cerrados, para a outra margem, lembro-me de ter estremecido com a sensação de que ficava a muitas milhas de distância!
(Continua)

5 comentários:

  1. A esta hora, faltam escassas 2269 visitas para o meio milhãooooooooooooooooooooooooo!!!

    Braça milhonesca,
    Djack

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  2. ...O QUE, À MÉDIA ACTUAL, DÁ 9 DIAS, 16 HORAS, 19 MINUTOS E 47 SEGUNDOS...DIA 16, TALVEZ...JÁ AGORA, SERIA LINDO SE FOSSE NO DIA 21 - SÉTIMO ANIVERSÁRIO!
    Braça iminente
    Zito

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    1. Muito mais lindo seria ser o Pd'B a colocar o indicador na hora da passagem do 499.999 para o 500.000. Veremos!!!

      Braça à coca (sem ina),
      Djack

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  3. Bem, por razões que o Zito compreende mais do que ninguém, dou um cavaquinho por estas crónicas sobre a África, esse continente bravo, misterioso e, infelizmente, sem merecer a bênção de quem de direito. Ouvir esta narrativa é recordar inúmeros episódios semelhantes em que fui protagonista em Angola e em Moçambique. Por isso, percebo bem o realce que o autor põe em particularidades que o leitor comum pode não valorizar. Aquele café a ser feito sobre brasa, aquela refeição improvisada para tapar um buraco no estômago, aquele bebé a mamar descontraído nas tetas da mãe, aqueles ruídos engolidos pelo breu da noite, aquela precariedade de mãos dadas com o improviso, enfim, a aventura a par e passo e só possível em terra de África. Ainda há poucos dias, falei em Lumbala Nguimbo/Angola, onde estive, e o Zito pensou que era o Lumbala do Cazombo, onde ele esteve colocado. Então esclareci que esse Lumbala era o Lugar que antigamente se chamava Gago Coutinho. Mas foi o bastante para convergirmos no mesmo imaginário africano.

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  4. Mais uma crónica interessante, de um dia, de uma parte de uma vida vivida no continente africano.

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