A Virgem e os Meninos Mortos de Fome
Episódio II
SARDA (Cont.)
“ Tudo quanto há de vil, de fraco, de inconsequente, está reunido na alma da criatura humana.
“ Nós não somos que um bocado de lama viva.
“… Sabes como morreu o meu filho mais velho? Ouve: todas as noites eu me golpeio contando às sombras do espaço, e às nuvens que atravessam o céu, a história da morte do meu primeiro filho. E conto- em voz alta, porque quando simplesmente o penso, nem todo o meu ser ouve o meu pensamento, e conto-o em voz alta para que todas as fibras vivas do meu corpo, vibrem de dor na saudade de meu filho, no desespero do meu espírito inconsolável.
“ Naquela tarde, Lái descera à parai e se atirara ao mar. Brincava no meio da baía, como uma toninha. De sobre este rochedo eu via-o e amava-o. Veio um tubarão e cortou-mo pelo tronco. E os meus olhos viram o mar avermelhar-se com o sangue destas veias. Ó mar do inferno”! De pé, sobre o rochedo, calara-se a velha. O silêncio que cortou as suas palavras foi formidável. O próprio mar, lá em baixo coleou pela praia, rolando emudecido, submisso, como se fizesse à areia a confidência do seu crime, e chorasse, arquejando, arrependido, pela imensa praia enegrecida e silenciosa.
Escura nas suas roupagens negras desfraldadas ao vento, a bruxa parecia a sombra dolorosa das agonias maternais, a que um sonho tivesse dado formas estranhas. Tinha os braços erguidos, as mãos enclavinhadas na nuca, a saia negra erguida até os joelhos ósseos trapejava sinistramente.
Chorou alto; uivou com boca para o mar, como os cães que os donos embarcam e abandonam. Da garganta saiam-lhe soluços, vivos, estertores!
-- Ó! Mar de Deus! Ó! Mar sem entranhas! Dá-me os meus filhos! Era horrível.
A miserável mãe arquejava; estorcia-se. O “gamaré” traquejava-lhe em torno da cintura. O vento do mar crescera.
Em redor as cabras balavam procurando o refúgio da gruta. E a noite cerrava-se como uma tumba.
-- O mais novo Djôn – Ó! Meu pobre mais novo! – também nunca mais o hei-de ver?
Noemi enlaçava a velha pelos joelhos.
--Mãe! O pequeno chora…
A velha soluçava. Chorou uma grande hora, depois encostou a testa nos joelhos da americana, afagou a cabeça do pequeno, e começou a cantar, ainda sacudida de soluços, para acalentar o neto.
A noite subira pelas gargantas da montanha como vagalhões de sombras silenciosas. O mar rolara, lá em baixo, como um arrependido à espera de perdão.
Episódio III
NOEMI
Quando chegou ao conhecimento do senhor capitão-mor da ilha, que a bruxa do Insuão trazia amarradas à cauda da vassoura – em que nos dias de tempestade; galopava pelas areias negras da praia – A Virgem Maria e o menino Jesus, o povo alvoraçou-se, bramiu e prelibou os gozos do espectáculo de um suplicio.
Durante três dias rufaram os tambores e dobraram os sinos das duas freguesias.
Frei João, um santo que poucos anos depois devia mutilar-se quando lhe nasceu um filho, percorria, de cruz alçada, as aldeias, os campos, congregando o povo, acordando, em pacíficos corações de pastores e marinheiros, o odio religioso com todas as suas devastadoras paixões, com todos os seus requintes de malvadez, pregando a guerra contra os espíritos malignos que arrastavam, cativos, em correrias macabras, pelas ribas do Insuão, a Virgem e o Menino.
Um dia, finalmente, as rochas abruptas que fecham, em semicírculo, a praia maldita, apareceram aos primeiros alvores da madrugada, ouriçadas de povo, rufando tambores, alçando cruzes, ululando como feras, acordando os ecos sonoros da montanha, fazendo fugir os pacíficos rebanhos assustados, pelas ásperas quebradas.
Sarda apareceu à entrada da gruta.
Emergira das moutas espinhosas a figura hirsuta do regedor, de chanfalho numa mão e um grande rosário na outra.
-- Vade rétro Satanás! Gritou a autoridade atirando um rosário bento ao pescoço da velha.
-- Que é isso Manuel? Endoideceste?
-- Estás filada feiticeira do inferno?
-- Mas porquê? Que mal fiz eu?
-- Onde tens a Nossa Senhora e o divino Menino Jesus?
Noemi apareceu na sombra da gruta, com o filho ao colo, branca como uma estátua de mármore.
Então todo aquele povo que irrompia diante da gruta, caiu de joelhos.
Frei João, à frente bramiu um salmo que o eco repetiu cinco vezes.
E enquanto uns batiam com a fronte no chão e entoavam a “Luz do Espirito Santo”, outros derrubavam e amarravam Sarda.
Momentos depois, uma estranha procissão serpeava pelos carreiros quase que impraticáveis. À frente Sarda caminhava quase de rastos com as mãos atadas e o busto nu. Pouco atrás, num andor. Noemi com o filho nos braços deixava-se levar banhada em lágrimas, implorando piedade àquela horda de selvagens.
No dia seguinte, logo de manhã, muito cedo, a velha era arrastada ao suplício Noemi e o filho levados, à força, para a igreja, onde ficaram sob a guarda do povo. De cada vez que a misera implorava piedade e pedia uma xicara de leite para o filho, o povo ululava:
Continua...
(E-mail A.Mendes)
Simplesmente delicioso de ler.
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