A Virgem e os Meninos Mortos de Fome
Episódio III
NOEMI
“ É a tentação! É a tentação. Nossa Senhora e o seu divino filho não comem! É a bruxa a falar pela sua sagrada boca.
Ao terceiro dia, Sarda, atado ao poste infamante do Cutelo da Bandeira, açoutado, lacerado, ainda resistia. E sobre o altar da igreja, suplicando, numa aflição digna da mãe nazarena aos pés da cruz do mártir fazia sangrar o seio para dar um alento ao filho já rouco de chorar.
-- Pelo amor de Deus um bocado de pão para esta criança! – Gemia a mãe.
E a turba respondia:
-- É a tentação! É a tentação!
Frei João trovejava
-- “Mater admirablis! “
E o povo respondia:
-- “Ora pro nobis!”
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O céu estava vestido de crepes. O calor era asfixiante. Crepitavam as folhas das árvores como que tocadas de labaredas.
A noite fechava. As quentes lufadas de leste punham um farfalhar horrível nas folhas caídas. De redor do poste em que Sarda recebia os últimos golpes e os últimos insultos, a vozaria do povo calara de súbito: Ruídos subterrâneos bramiam como trovões longínquos. De repente a terra tremeu violentamente. Das montanhas, desgalgaram-se, com fragor, penedos enormes, formando saltos terríveis, deixando na sua passagem pelas encostas verdejantes, sulcos profundos de destroços.
Num momento o calvário de Sarda ficou deserto. A igreja meia desmoronada, jazia num silêncio sepulcral.
Soava a vozeria longínqua do povo desvairado: Os abalos continuavam. Relâmpagos riscavam o céu baixo e negro.
Na ilha vizinha o vulcão, como um canhão apontado para o céu vomitava a sua formidável metralha ensanguentando as nuvens e cobrindo a terra de cinzas.
Ao romper da madrugada Noemi, com o filho nos braços, chegava ao poste em que Sarda agonizava.
-- Mãe, gemeu a misera, abraçando-se à velha. Minha filha! Como é boa a morte depois do sofrimento! Dá-me a criança a beijar. Está frio, minha filha!
Está morto, o meu filho… Vamo-nos embora deste inferno povoado de demónios.
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Ao romper o sol, estavam três cadáveres junto ao poste dos suplícios no Cutelo da Bandeira.
Sarda morrera com a carne retalhada pelas duras varas de balneda.
Nosso Senhor e Menino Jesus tinham sucumbido à fome…
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Franque calara-se. Encheu o cachimbo, acendeu-o, soprou baforadas de fumo que o vento arrebatava. Debruçou-se e olhou para a água que passava, fosforescente e rápida.
O vento começava de soprar com violência.
Bolinava bem o “fisherman.”
Na esteira borbulhavam-lhe em moinhos que desapareciam velozes, longos e arredondados caprichosos, sobre os quais as almas de mestre, como grandes borboletas negras, voejavam tremulamente na atmosfera húmida.
--Pega nos gafelotes! – Comandou uma vez.
Anoitecia. E no fundo cinzento do céu esfarrapado de nuvens, os marinheiros trepando pelas enxarcias pareciam enormes aranhas escuras tecendo…
FIM
(E-mail A. Mendes)
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