Comemorando o Manifesto para a Regionalização de 2011: um contributo para história do movimento regionalista em Cabo Verde
O ano de dois mil e onze foi histórico e de charneira para Cabo Verde, por corresponder ao culminar do processo da consciencialização cívica sobre a problemática da Regionalização, mediante o lançamento do Manifesto para a Regionalização de Cabo Verde (1,2), o que apanhou de surpresa a classe política. Porém, e antes de mais, fazendo jus ao historial do processo, refira-se que foi Onésimo Silveira quem pela primeira vez deu o mote sobre a questão da Regionalização, nos anos 90 do século passado, enquanto Presidente da Câmara de S. Vicente, pedindo à Praia mais descentralização, sem no entanto especificar o conceito na medida em que dada às debilidades económica de Cabo Verde e vivendo ainda sob a euforia da Independência, fechava-se os olhos à questão do Centralismo e aceitava-se de ânimo leve alguma prioridade na infra-estruturação de Santiago e da sua capital. Todavia em matéria de paternidade da regionalização, António Pascoal Monteiro alega que há muito tempo (início da década de 2000) que individualidades do MpD, por conta própria, vêm defendendo a regionalização:
- Foi o MpD, enquanto partido e força parlamentar, que defendeu e fez introduzir, na Constituição, a possibilidade de haver autarquias supra-municipais.
- Ainda, ao nível de individualidades, António Pascoal Monteiro alega que, antes de muitos, defendeu, desde 2008, publicamente, em muitas conversas individuais, promovidas por ele, e em encontros colectivo, da iniciativa dele, não somente a regionalização político-administrativa, em geral, mas também e especialmente, a criação da Região Autónoma das Ilhas do Noroeste (Santo Antão, São Vicente, São Nicolau, Santa Luzia e Ilhéus Adjacentes), ou seja, de uma região político-legislativa (a não apenas administrativa).
- Por iniciativa dele e aproveitando as possibilidades que o estatuto legal de deputado lhe propiciava, foi criado, em São Vicente, um Grupo, um núcleo inicial, com pessoas de São Vicente, Santo Antão e São Nicolau, aberto a pessoas de qualquer outra ilha ou da diáspora cabo-verdiana, com uma comissão coordenadora, composta por ele, Américo Silva e José Melo Araújo. Esse grupo, com a dispersão dos seus membros mais activos e a eliminação de António Pascoal Monteiro como deputado (alegadamente por ser regionalista) viria a desaparecer.
- Há poucos anos, numa entrevista ao jornal Expresso das Ilhas, voltou a defender e a explicar a regionalização, em geral, para todo o Cabo Verde, e especialmente, a criação da Região Autónoma (político-legislativa) das Ilhas do Noroeste, assim como defendeu uma região para o grande interior de Santiago, desmontando os argumentos do Governo e, especialmente, de José Maria Neves, de ordem financeira, sobre o pretenso perigo para a unidade nacional (o papão dos fundamentalistas). Pascoal opõe-se frontalmente ao modelo Ilha-Região.
Finalmente participou recentemente num programa radiofónico, promovido e moderado pelo jornalista Carlos Santos, e que teve como intervenientes, o Luís Filipe, vice-presidente do MpD e o David Hoffer Almada, ex-deputado e figura conhecida do PAICV e de Santa Catarina de Santiago.
Assim António Pascoal Monteiro insurge contra o discurso de certo sectores regionalistas, que classifica de desfocado, vaidoso, e que devide os regionalistas em autênticos, preocupados com o destino de São Vicente e do Barlavento e outros que são simulados, fingidos e traidores, discurso, que no entender dele, só ajuda aos defensores da não regionalização, aos opositores da regionalização e, sobretudo, da criação da Região Autónoma do Noroeste.
Tirando estes detalhes de percurso, desde então, o tema entrou na agenda cívica, ainda que envergonhadamente e sem agregar suficiente militância, mas mesmo assim espoletando o surgimento de alguma reflexão em S. Vicente sobre o estado de decadência da ilha face à marginalização política a que ela vem sendo votada pelo poder central.
Em 2004, realizou-se na Praia uma mini cimeira sobre Regionalização envolvendo algumas figuras políticas de Cabo Verde. Foi um acontecimento fechado, quase secreto e de difusão mediática astuciosamente manipulada, o que não surpreendeu de todo quem estava atento, uma vez que, desde a sua ascensão ao poder, o PAIGC se mostrou sempre avesso a essa reforma, invocando o pretexto da unidade nacional (um lema ideológico que serve de viveiro para o Centralismo) e recorrendo a toda a sorte de expedientes dilatórios para iludir uma clara tomada de posição sobre o assunto. Dir-se-á que, de forma capciosa, se lavrava um atestado de sobrevivência ao Centralismo. Tanto mais que, nessa cimeira, a abordagem ao tema fugiu claramente ao seu objectivo concreto e iniludível, ao pretender-se cingir a um conceito insípido de regionalização, o simples reforço do municipalismo: deste ponto de vista o debate da regionalização encerra muita desinformação e má fé. Com efeito a classe política cabo-verdiana toda formatada nos processos revolucionários de 1975-1992, parou no tempo e no espaço: é muito conservadora, dogmática e fechada na mundivivência do arquipélago, ficando alheia às novas tendências da modernidade e das democracias mais avançadas. De resto, já o governo do MpD havia anteriormente pisado o mesmo terreno difuso ao considerar que a descentralização política encontrava suficiente respaldo com a criação das autarquias municipais eleitas por sufrágio e com a criação de um “governador” em cada ilha nomeado pelo governo central, que seria na prática uma espécie de delegado administrativa do poder central, um menino de recado da conveniência dos poderes da Praia. Ora, considerar isto um importante ganho do processo de descentralização é tomar a nuvem por Juno, é pura falácia, já que pouco ou nada de substancial se operou como reforço efectivo do poder local, uma vez privadas as autarquias de adequados instrumentos viabilizadores da sua verdadeira eficácia administrativa ao serviço das comunidades.
O verdadeiro conceito de Regionalização só podia vir da Diáspora mais esclarecida, descomprometida, apartidária, desinteressada e generosa e nunca daquela que frequenta os salões e sempre pronta a curvar e espinha contra benefícios materiais e imaterias. A Diáspora conhecedora dos modelos jurídico-políticos vigentes em regimes democráticos avançados, onde os processos de descentralização e regionalização não são artes de prestidigitação para iludir o pacóvio, mas formas concretas e assumidas de organizar o espaço territorial visando o reforço da democracia local e ganhos de eficiência administrativa. Os modelos conceptuais de Onésimo Pascoal ou qualquer dos outros grupos de reflexão em S. Vicente eram deficientes e não passariam de emplastros administrativos.
Recorde-se que foi durante a parte final do período colonial que a questão da regionalização foi pela primeira vez levantada em Cabo Verde. Reconhecia-se, de facto, o carácter eminentemente regional de Cabo Verde, a sua diversidade geográfica, climática, cultural e sociológica, e havia intenção de alterar o paradigma e tirar todas as implicações políticas que isso poderia comportar. Mas o ovo não eclodiu porque entretanto ocorreu o 25 de Abril, pelo que se poderá dizer que lamentavelmente se perdeu uma oportunidade histórica de redesenhar a administração do território em moldes que certamente só poderiam beneficiar o seu desenvolvimento integral e participado em pé de igualdade por todas as ilhas. De notar que o PAIGC, que se arrogava progressista, reagiu violentamente ao projecto, acusando, injustamente ou não, esta inicitava do governo colonial de manobra divisionista para dificultar a independência de Cabo Verde. Os anti-corpos deste partido face à Regionalização vêm, pois, de longa data e prendem-se com razões de ordem ideológicas, por ser um partido de matriz leninista (embora a URSS e a China tenham tido regionalização).
É consabido que a ilha que sofreu o impacte imediato do Centralismo foi a de S. Vicente. Sofreu-o numa dimensão tal que desde logo ficou clara que a intenção era declaradamente vitimizar a ilha pelo papel que ela exerceu no passado. Pulmão de Cabo Verde graças às vultosas receitas do seu Porto Grande, centro cosmopolita e impulsionador de todas as vertentes da modernidade em todo o território, as evidências apontam que a ilha foi vítima de um inqualificável processo de marginalização política no pós-independência, com o argumento pueril de que ela tinha sido favorecida durante a administração colonial e que doravante se impunha um ressarcimento em benefício da ilha de Santiago. Só a mais completa ignorância pode conceber semelhante raciocínio. Só por rematada má-fé se tenta ocultar que se a ilha atingiu níveis de desenvolvimento sem precedentes no arquipélago não foi por obra e graça da administração colonial mas sobretudo por acção dos ingleses, que a transformaram efectivamente no “pulmão de Cabo Verde”, com proveito para Portugal e para a colónia como um todo. Pelo contrário, é do conhecimento geral que a administração portuguesa, por laxismo ou por inoperância política, nada fez para em devido tempo dotar o Porto Grande de apetrechamento adequado para que pudesse competir com outros portos atlânticos congéneres no abastecimento da navegação internacional, como Las Palmas e Dakar. A ascenção foi, portanto, de pouca dura, travada pelo Estado Novo, e a sua curta visão sócio-económica e mesmo estratégica.
Embora isso, S. Vicente progrediu de tal maneira, graças à indução natural dos processos sociais que gerava, que se pensou que a capital devia ser transferida com vantagem para onde estava o centro de gravidade da colónia, quer do ponto de vista socioeconómico e cultural, quer anímica e politicamente. O que Santiago fora na era quinhentista passou S. Vicente a representar por inteiro na era industrial. A transferência só não se realizou por acção dos lobbies de Santiago e por tibieza política por parte de Portugal. Não houve, pois, nenhuma questão ou jogada política por parte da potência colonial com o objectivo discriminar Santiago, a ilha mais africana das ilhas de Cabo Verde, em favor do Norte de Cabo Verde, como alguns teóricos revanchistas pretendem afirmar nos seus delírios fundamentalista.
Perante tudo isto, raia o absurdo pretender-se que a ilha de S. Vicente devia ser arredada do pedestal do seu privilégio, quando tudo o que ela representou foi por esforço próprio e em benefício do todo colectivo. Pelo contrário, o que deveria impor-se era o aproveitamento do importante pólo de desenvolvimento que a ilha representava a todos os títulos no contexto do arquipélago. Em vez disso, a estratégia do regime de partido único, reforçado pelo governo do PAICV à partir de 2000, foi a centralização e a concentração do Estado, de todo o seu aparelho institucional, na ilha de Santiago, iniciando-se assim um processo capcioso que não tardou a revelar-se a negação do desenvolvimento equânime do território, castrando as potencialidades naturais das outras ilhas, e assim se comprometendo provavelmente a viabilidade futura do país.
O Manifesto para um S. Vicente Melhor de 2010 (3) proposto pelo núcleo duro regionalista da Diáspora (um grupo cívico que nasceu no início da década de 2000 para travar a predação selvagem do património da ilha), assinado por inúmeros intelectuais da Diáspora e por muitos residentes em Cabo Verde, condensa a preocupação de um número elevado de mindelenses relativamente à perigosa deriva social e económica em que a ilha de S. Vicente se encontrava e se encontra, e que foi publicado em todos os jornais cabo-verdianos (nomeadamente o Liberal on-line e o Notícias do Norte). O Manifesto foi dirigido ao coração do sistema político cabo-verdiano como uma advertência do que estava para vir, caso o governo centralista da Praia não revertesse a sua atitude, que lembrava os tempos do centralismo colonial.
Como nada mudou, resolveu-se accionar o Plano B que já figurava na agenda, a Regionalização. Este tema tinha já sido bastante aprofundado e debatido sob todos os pontos de vistas, e analisado sob as mais diferentes ópticas e implicações. Após algumas hesitações, e em face das evidências cada vez mais gritantes de endurecimento das políticas centralistas em curso em Cabo Verde, consolidou-se a noção adquirida de que não havia outra alternativa senão a Regionalização Política de Cabo Verde. O núcleo da Diáspora, mais uma vez ele, elaborou o Manifesto da Regionalização e fui encarregue de o levar para S. Vicente para ser discutido com os diversos núcleos regionalistas já existentes no terreno. Foi criado um comité adoc coordenado por Júlio César Alves e João Lima, responsáveis para impulsionar e dinamizar o movimento no Mindelo, ao mesmo tempo que disseminávamos as ideias pela Diáspora. O lançamento do Movimento ocorreu no jornal on-line Notícias do Norte, que mereceu a nossa preferência para o evento, através de uma longa entrevista concedida pelo Grupo no Hotel Porto Grande.
O Manifesto da Regionalização de Cabo Verde, assinado por Júlio César Alves, João Lima e por mim, em representação da Diáspora, foi, com efeito, publicado nesse jornal online e nos jornais em Cabo Verde que não praticam censura, nomeadamente o Jornal Liberal, que desde sempre acolheu com muita abertura o debate sobre o Centralismo e a Regionalização, assim como nos blogues amigos (Arrozcatum e Praia de Bote). Estavam lançados os dados para um debate sobre um tema importante para a sociedade cabo-verdiana, ela ainda sob influência de preconceitos antidemocráticos e cindida entre tendências conservadoras e progressistas enraizadas no processo da independência, mas em que a fidelização partidária se confunde hoje mais com uma espécie de clubite do que com um esclarecido posicionamento ideológico.
Desde então, nunca mais o debate parou: a Regionalização tornou-se ‘viral’. Em Fevereiro de 2015, o partido no poder, centralista e anti-regionalista, promoveu uma Cimeira da Regionalização que consistiu num não debate, em que o tema central passou completamente ao lado. Apesar de já ter sido publicado o livro Os Caminhos da Regionalização (4) em 2014, o poder, que já apresenta tiques de autismo, ignorou os seus co-autores, e convidou apenas pessoas alheias à problemática ou suas opositoras. Pois, como era de esperar, o objectivo era matar o próprio debate e enterrá-lo de vez com a ilusão do Municipalismo: debateu-se tudo e nada, fugindo ao tema da Regionalização como o diabo foge da cruz.
O MpD, que pretende ser poder, e a UCID, responderam desde o início positivamente ao apelo da Regionalização, ao passo que o PAICV, centralista, continua até hoje surdo e mudo e mesmo a emperrar a caminhada rumo às reformas de que Cabo Verde bem precisa. É de toda a evidência que os vícios do centralismo, cada vez mais a acumularem-se, e os lobbies políticos e económicos hoje instalados na capital, impedem a abordagem de tudo o que implique com o actual Status Quo, e desta forma a discussão em torno desta importante reforma se vê postergada ou por assim dizer esconjurada da cena nacional. A concretização desta reforma estrutural e crucial para Cabo Verde parece claramente atirada para as Calendas Gregas pelo sistema centralista, que continua a persistir alienadamente num modelo que debilita a saúde social, política e económica do país, não obstante a indignação crescente e generalizada a que vamos assistindo na nação cabo-verdiana, que cada vez mais se interroga sobre o seu futuro.
Até quando?
José Fortes Lopes
1-Manisfesto para a Criação de um Movimento para a Regionalização de Cabo Verde
-http://peticaopublica.com/viewsignatures.aspx?pi=MOVIRECV
-http://www.forcv.com/opinions/manifesto-para-a-criacao-de-um-movimento-para-a-regionalizacao-de-cabo-verde/
2-As Novas Encruzilhadas de Cabo Verde: Autonomia para S. Vicente, Desenvolvimento Sustentável e Renovação da Democracia em C. Verde
http://www.forcv.com/opinions/as-novas-encruzilhadas-de-cabo-verde-autonomia-para-s-vicente-desenvolvimento-sustentavel-e-renovacao-da-democracia-em-c-verde/
3-MANIFESTO PARA UM S. VICENTE MELHOR
http://mindelosempre.blogspot.pt/2011/02/se-e-para-um-s-vicente-melhor-o-blogue.html
4-“Cabo Verde – Os Caminhos da Regionalização”
http://noticiasdonorte.publ.cv/25754/cabo-verde-os-caminhos-da-regionalizacao/
Repito e tripito quadrapito.....
ResponderEliminarPara o PAICV a História de Cabo Verde começou em 1974!
Agora'!!!!????
Éfectivamente, merece ser relembrado o arranque da atitude cívica de alguns cabo-verdianos tendente à reforma do Estado cabo-verdiano. Lançada essa pedra no charco, aguardamos que os seus efeitos se produzam nas mentes adormecidas ou indiferentes dos que mandam na nossa terra e da classe política em geral. Felicito o José por esta iniciativa.
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